segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Noite

Ó, noite,
que levas do dia para o mar?
Levo a luz que calcina,
as cores das flores,
das folhagens,
as cores que esplendem
no horizonte nos finais
das tardes sobre os lagos
levo a tocaia da tua saudade
e o lume dos teus sonhos
levo as tuas horas cativas
e o grito ao qual te inclinas

Ó, noite, de promessas e de
silêncios
de ausências e de contemplação
repousa teus olhos negros
no sono dos meus olhos crassos
e canta a cantiga de acalanto
que o vento murmura
ao passar pelos rochedos
onde entre as frestas brotavam
flores que a tua mão encobria
e onde ouve-se o augúrio do
gorjeio da ave noturna,
segredos, seres encantados
acalantos que a chuva traz

Agora que atravessas o mundo
carregando em teus cabelos
as cores do dia e os instantes
com os quais vivo a ilusão
de um tempo fragmentado
e com o qual transcrevo o
passado no presente,
criando o engano de um futuro
Agora, acende os espelhos onde
a vida se reflete cortando a
escuridão rumo às latentes
luzes que tecem as auroras

Ó, noite, teu fascínio se
imiscui aos crepúsculos dos
fins de tarde, sombra cinza,
amalgamando-se às cores
do dia e a elas se sobrepondo
estendendo  o manto negro
para que as estrelas iluminem
as lembranças por onde me
procuro no absoluto tão cheio
de presságios e afetos,
vem e traz contigo
os hieróglifos indeléveis
da poesia, o mel de uns versos
colhidos à noite singular e terna
e que pulsam no instante milenar
onde a idéia une-se à forma
onde o murmúrio dos anjos
confortam os náufragos da noite
quando em seus braços dormem
os teus olhos de infância
e o nosso primeiro amor

domingo, 30 de dezembro de 2012

Manhã de domingo

Manhã de domingo
Dia nublado
A vida acorda sem o instante amarelo e menino do sol
Na rua soa a monotonia dos ruídos dos carros
a encobrir a vida e ignorar a barulhenta certeza
da sandice que o homem acalenta
O homo sapiens sapiens fere a cidade suprimindo o silêncio
e encobrindo a Voz imanente à Alma
E a cidade geme e explode e grita...
Um alarme dispara
para proclamar em voz alta a insensatez humana
Indiferentes à insanidade pássaros cantam
Nas árvores os pássaros aliam-se aos anjos, e cantam,
por que é de ser pássaro cantar
Em algum lugar um bem-te-vi
lança, súbito no ar, o seu mantra:
bem-te-viiii
Outros pássaros se manifestam,
cada um no seu idioma,
encobertos pelo ruído dos carros
São tristezas a vida nesta incessante
dicotomia,
nesta afronta plangente
onde a vida caminha para o ignaro fim
Em algum lugar da cidade nasce uma flor,
em um jardim?
Uma flor irremovível,
que alguém espera
Nasce a flor
e com ela nasce mais um verso
e quando a chuva cair o verso se fará poesia,
independente da ignomínia daqueles para quem
o amor e a poesia têm outra existência,
outro devir que não o de ser amor e poesia
Mas, a flor desabrocha,
por que é do sentido da vida da flor desabrochar 
Flor de orvalho e eflúvios de estrelas
mais um acalanto de ternura dos poetas,
mais um milagre em busca do equilíbrio
Nasce a flor e o som da flor nascendo
confunde-se com o som do Universo
expandindo-se e contraindo-se
Há na vida e na morte expansão e contração
Nascer é fazer um pacto silente com a morte
e a cada instante a impermanência entoa, nua,
o cântico cego do tempo a passar indolente
após o giro da ampulheta,
após a intimidade do amor
Após o exílio silencioso da minha face na
candura do teu colo
e dos versos trêmulos
que leio de olhos fechados, com as pontas dos dedos
na manhã nublada de domingo
onde borboletas voejam aprendendo as flores
para apagar as noites crispadas pelo teu nome nos ventos
Os pássaros cantam sonora e comoventemente
compondo a claridade do verão
com a qual o Amor entrará pela minha janela
e o sol se fará
atado ao instante absorto dos meus olhos


(*É a poesia ficando repentinamente como a lembrança
  da primeira noite em todas as outras noites...)


*Lêdo Ivo in Poesia Completa - 1940 - 2004

sábado, 29 de dezembro de 2012

Canteiros

Minha casa não tinha jardim,
mas tinha um canteiro de flores,
colado ao muro,
onde a chuva que caia do telhado no quintal
respingava nas plantas o gosto imanente das águas
No canteiro havia
rosas rubras feito um soneto a um amor antigo
cravos brancos e as rimas rugosas
das suas pétalas
pequeninos pés de maria-sem-vergonha
multicores, pintadas pela luz macia das estações
margaridas de um amarelo pra vida inteira,
antúrios e suas flores fálicas
Tinha outras flores que ficaram pelo tempo
Outros tempos que ficaram neste rosto
que busca o passado do outro lado do espelho
Nas lembranças, visitantes noturnas,
que me dizem coisas da infância
Nesta mão trêmula de agora,
Nestes olhos que quando olham olham  o mar
e as praias ao crepúsculo tecendo cores túrgidas de sol e sal
e os passos na areia fofa que vão ficando como um sinete
do silêncio que me leva ao mar 
e o ser fechado para a poesia
que tateando na escuridão ignota
faz das palavras
pássaros sem asas

Do canteiro e sua floração saiu a primeira flor
para a primeira namorada,
Enquanto entregava a flor,
a meninada na rua,
devagar, soprava
diáfanas bolas de sabão,
translucidas,
que o vento levava
até onde os anjos brincavam
com as crianças,
soprando-as,
com suas bocas sonhadoras
no ar azul da tarde bordada de sol,
perpassada de sonhos e de faz de conta,
onde brilhavam pequeninas gotas de chuva,
ornando a verde folha,
escorrendo pela pétala
reordenando, suavemente, a beleza da natureza

Nas noites sem lua a negra cortina escondia o canteiro
Noite sem estrelas,
só mantos de nuvens
onde a meninada construía os seus sonhos
e os seus medos e o medo do medo alheio,
noites imensas na escuridão,
longe da primavera
soprando a brisa vinda de um mar intangível
ondulando os lírios brancos
e as rosas em suas longas hastes
dentro de uma noite antiga a despedir-se 

É preciso lançar os barcos aos mares
como as folhas que caem na correnteza dos rios,
e são levadas pela pureza dos anjos
É preciso o escuro da noite,
sem lua,
sem estrelas,
para ouvir as antigas vozes,
a primeira lágrima
de um antigo amor,
de uma nova saudade

É essencial cultivar os canteiros
e as palavras
que podem ser flores,
mares,
amores,
poesia,
pequenos gestos de amor
dentro de um amor imensurável
o azul e a sombra do azul,
o sonho que
dorme náufrago e anônimo na minha existência

É essencial cultivar os canteiros
e o inaudito murmúrio dos ventos.
o belo,
o encanto,
o indescritível
É essencial resgatar
a inefável alegria da infância

As manhãs, sejam azuis ou cinzas ou douradas,
caminham sem tempo que as tolham,
sem ruídos de agoras
trazem o canteiro da infância
e as flores vicejam
por entre as emoções que irrompem
somente no absoluto da poesia
inexprimível
como os ventos imponderáveis

No canteiro do meu quintal há flores no outono,
do outro lado do nevoeiro
por detrás de qualquer domingo
no qual se ouve ao longe uma flauta que toca
para nossos sonhos imaturos
sedentos de estesia
como o amor sedento de amor
como o poeta sedento de um verso
meigo e suave
como o beijo de um colibri
como o sorriso de um palhaço
como o amanhecer que floresce nos quintais
das infâncias imperecíveis
e onde começa a infinda poesia

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Chove

A aurora apregoa a manhã como quem lê um poema
O dia vai amanhecendo
oscilando no ar úmido da chuva que cai
Cai uma chuva fininha
sobre o mar, sobre as vidas... sobre o poema
Trinam os pássaros a chegada de um novo dia
Debicam lentamente os sonhos e o silêncio
A madrugada recosta-se ao horizonte
As útimas estrelas pulsam
no ritmo da pulsação primordial
memória do Primeiro dia intangível,
sons viajando através dos tempos,
corações palpitando o momento 
infrangível das longas noites,
arquétipos
rumores dos milhares de anos
A vida nascendo da água primeva

Num tempo que dissipa este silêncio intangível
a madrugada caminha para fora do poema
Traz de longe resquícios da noite que o precedeu
Resquícios dos versos sonoros
Momentos...
de estar só
O dia amanhece na ilha
Por detrás dos farelinhos de chuva
o poema se insinua

Cai a chuva fininha
Perfeita
como um toque impreciso
de pele com pele
de palavra com palavra
Nasce, sob a chuva fininha,
a manhã definitiva
Lá longe o mar se confunde com o céu
traço feito a nanquim
sombras esbatidas
pelas pequenas frestas de luz
que vazam desde os séculos sozinhos
e este tempo de ausência
que eu não sei dizer o que é
Barco?
Vento?
Vela?
Vôo?
Ilusão?
A idéia contida na palavra,
estórias e lembranças
signo movendo o mundo

Olhos ofuscados pela luz acetinada da manhã
Águas cinzentas como o céu escuro
desta manhã
que chove plácida
e lentamente
Insondável nostalgia
escondida
na solidão da poesia
oráculo silencioso

Num céu perene,
sobre o mar antigo, milenar e profundo,
polvilhado pela chuvinha que cai,
voam alvas gaivotas de algodão

Nasce o dia
Sopra o vento
A vida acorda e suspira ao som da chuva
O amor dorme no coração do poeta

sábado, 22 de dezembro de 2012

Silêncio dos quintais

O amor esperando
do outro lado do olhar
do mesmo lado da rua
no tempo das manhãs
que surgiam por entre
as brumas da aurora
escondendo a lua
do amor
que esperando fica
do mesmo lado do olhar
do outro lado da rua

Voam os pássaros do passado,
Maria
Trazem raminhos nos bicos
Raminhos de solidão
que apanharam no silêncio dos quintais

Quintais...
Quintais de terra cochilando
nas tardes ermas
As tardes feitas de terra
feito de terra o luar
de terra feita a minha vida
e a lágrima na terra caída
só não guardei o lugar

O tempo envelhecendo
inelutavelmente,
Maria
O tempo envelhecendo dentro
dos espelhos
dentro das distâncias esbatidas pelo lento
esquecer
Tudo o mais são estas miragens
sem nome
Apenas este sentimento que espera
inutilmente à janela,
contrito
dia após dia,
noite após noite
entre as flores
que a primavera deixou
em meio ao trinar dos pássaros
cântico das manhãs
mantra orvalhado pela névoa antiga
No mais tudo é silêncio
Ouve! Maria,
o silêncio continuado...

...é as borboletas no céu

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Cai a folha no rio

A tarde quente elevou as mãos do vento
e as pousou sobre os olhos irisados do sol
A tarde e a vida rebentaram em dourados tons
O vento soprou sobre a sombra
que trazia a noite entre silêncios
A tarde enlanguesceu ao crepúsculo
de cores iridescentes
Fez da seda vermelha do céu
rosas incandescentes arrancadas à terra
As luzes do ocaso cobriram os telhados
mansamente
A noite ainda demora, distraída,
a perfumar de leve o horizonte
com as nuvens esbatendo o azul que toca o chão
(...)
Quando a noite chegar
estarei te esperando
para ver a noite nos teus olhos
para beijar os teus olhos
e adormecer sobre o teu braço
o meu sono de criança
(...)
A tarde quente elevou as mãos do vento
e as pousou sobre os belos olhos do sol
Aquietou-se a ventania em meu coração
Esbateram-se as cores do dia
suavizando, lentamente, este tom de poesia
que o abandono dos campanários choram
ao final do dia
Os pássaros adejaram de volta aos ninhos
O vento soprou sobre a sombra
do tempo que levou o dia
e colocou no céu
as estrelas despertas do sono fugidio
Há silencios que vêm de antigos desertos,
imensos mares de areia que afogam os passos
nas sombras que vêm no vento
As luzes dos desertos recriam miragens
acentuando o pôr do sol
se equilibrando no firmamento
Escuta a folha caindo no leito do rio
se queres entender a tarde irresoluta
e os olhos tristes do poeta
A voz do poeta abre a escuridão da noite
Bruxuleiam as luzes prisioneiras das candeias
O mar úmido de sonhos embala
a quietude do dia
Cai a folha no rio
molhando-se de poesia

(Dezembro de 2012
Os dias saem do mar)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Final de primavera

Dezembro
As noites já pressentem
o final próximo da primavera
A brisa ainda traz o inebriante
perfume das flores noturnas
e o plangente repicar dos sinos
meditando a imprecisão das horas
e a pulsação da vida
O campo florido de pirilampos azuis
que ilumina a noite ditosa
vem da candeia
de um céu cintilante
rendilhado de flamantes
estrelinhas
A lua traça no céu
um arco de linha nacarada
sobre o fundo negro que se
ergue dos montes que dormem
na noite diáfana
No ar uma palavra pejada
de silêncios e ausências
doridas se esconde
e tonta de melancolia
se esvai com a primavera
e as areias que o vento leva
A poesia dorme
no colo nu da folha úmida
dos pingos da chuva
que desenha arabescos na vidraça
Uma ave adeja na noite
solitária
Chove
Não a chuva que chovia
nas gaiolas abertas da infância
entoando no telhado
o som ritmado dos pingos
Hoje a chuva não cai
sobre telhados
e não junta seu som
ao som do barro das telhas
Hoje a chuva não escorre
pelas ruas de terra
Não deixa no ar o cheiro quente
de terra molhada
Não há canteiros
nem flores
nem cores
onde vicejava a eternidade
dos sonhos
e das estrelas
que a chuva, então, avivava
Hoje a chuva é o instante
sem a cor do sonho
sem as memórias e as histórias
e as fábulas
interminavelmente azuis
da imaginação
que pasce num mundo
onde a semente espera latente
e longe dos segredos dos meninos
reprisados noite após noite
O momento passou
trazendo a obscura noite dos
sóis sobre os quintais
Busco em mim o que
o que eu fui
o que eu era
Esta não é a primeira
primavera
nem a útlima lenta agonia
que os meus olhos soluçantes
vêem passar
Busco-me entre as flores do passado
Lá onde a vida nunca deixou
de ser jardim
onde as flores balouçam, suaves,
aos pingos da chuva
e que balouçam, também,
os labirintos do meu mundo
Ó, doce flor do jasmineiro
a tarde chora
outra primavera
espargindo aromas voláteis,
derramando folhas e flores
levadas pelo vento
para além das palavras
e do encantamento
outro mar
caminhando para as areias
outro tempo
desapegado e incomensurável
Entre as mãos,
molhadas de ventos e de cores,
outra solidão
com a qual finda-se o dia
e começa a poesia

sábado, 15 de dezembro de 2012

Chuva

A janela
aberta ao vento
ao orvalho
e à nostalgia
dava pro mar
Quando chovia no mar
era possível ver, da janela,
os pingos de chuva
e seu gosto singular
de água sobre água
decompondo o azul do mar
Na consumação impenetrável
das espumas rendilhadas
escrevendo poemas na areia
eu via a ilha colorida pelos
invelhecidos ventos azuis
que traziam a chuva
e céus imersos na gota de chuva que caiu
vindos como barcos de um passado
cheio de silêncios que se quebravam
em direção à eternidade dos portos
Apenas fuga à deriva
antes e depois
da mágica
quando a chuva
acabando de chover
deixava-se atravessar por uma réstia de sol
e impunemente fazia do silêncio
um arco-íris

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Sem poesia

Bom dia
sem poesia?
pode?
poder podia,
mas não devia

Sem poesia
o dia finge que dorme
o poeta finge que escreve
versos em imaginários papiros
a manhã finge que nasce
a paz finge que pasce
a estória finge ter fim

Sem poesia
o néscio pensa que é feliz
a noite vende a meretriz
faz-se a guerra em algum país

Sem poesia
faz-se a noite igual ao dia
o vento não toca o chão
o hermeneuta se compraz
em apanhar tristes frases
em meio à solidão

Sem poesia
não tem "era uma vez"
a vida passa
assim, sem graça,
sem encanto
a vida passa e nada diz

Sem poesia
não há estrela cadente
não há teus negros olhos de chamas
há só o espelho e a espera
e esta sombra na alma da gente

Sem poesia
pra que desfolhar o amor
nas pétalas de um malmequer?

Sem poesia, amor,
tudo é tão triste,
é tão triste
amor sem poesia

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Soturno

A aurora dissolve-se na mancha
vermelha alaranjada do sol
ressumando na manhã
esbaforindo a face triste do chão ressecado
a tremeluzir tudo o que é no horizonte
O menino nu come o barro queimado
das paredes da casa
Os dedos dessangrados
de cavocar as paredes mortas
pelo sol desgarrado
No infinito da paisagem desolada,
ondulando no ar,
galhos secos e uma cisma de esperança
A esfera rubra do sol soluça de sede
abrasando as pedras que assomam sobre
as estações desfeitas
em poeira vermelha e pegajosa
Nem inverno nem verão
nem outono nem primavera
Tudo a mesma poeira grossa,
o mesmo torrão rachado de chão,
as mesmas mãos vazias,
o mesmo olhar sedento para o céu
A vida passando sem pressa
morosa em se acabar
enchendo o vento de soluços
As flores e os frutos não se modelam
no barro seco indistinto
e na paciência dos quintais
que sangram o que um dia foi mar
As mulheres carpem os cântaros vazios
sorvendo dos lábios a sede
No céu nenhuma ave,
na terra nenhuma criação sob as sombras
dos galhos secos das árvores
A vida carecendo de sentido e de tamanho
Carecendo de saberes e outras palavras
tão uivantes quanto o silêncio que,
embaraçado nos gravetos
que rolam pela terra em fogo,
insiste em ser a trilha dos dias
amorfos e anônimos
onde o rio inexiste sem rumo
e só o vento quente tem vida

O menino nu carece do barro custoso das paredes
e de um olhar de esquecimento
que esqueça a sombra da tristeza
e do desassossego
que o tire da letargia destas terras
que evolam-se no ar esturricado

Chora o menino nos seus poucos anos
a tocaia que a vida deserta de si inventou
Suja os pés neste ar solitário que seca
a lágrima no rosto vincado pela terra
e pelo medo
máscara informe de poeira e suor

Ao longe a tarde crepita em brasas
tremeluzindo o braseiro de tudo a sua volta
O sol oscila num céu se dissolvendo
em vermelhos
O olhar incendiado pressente a noite
adejando portas e janelas
O dia mastigou o menino e deixou-o
nos braços magros da noite inerte que se rompe
nas lascas das paredes em soluços
A terra ressequida não dá cor ao noturno cantochão
com que a noite põe fim ao dia
A noite denota a imarcescível lua e um ror
de estrelas, colunas de um antigo templo,
de um antigo tempo, de antigos guias
poeira derramada nos milhões de anos,
trazendo para as noites seus olhos afeitos
a viajarem nos céus de poeiras também
A fome deita o menino e seus olhos cansados
Ouve-se soluços entremeados de suspiros
As indagações adormecem
nas ilhas sonâmbulas dos astros
e na impermanência do destino
A noite se aquieta
Silenciam as pedras que há pouco crepitavam
sob o braseiro urdido com as mãos coruscantes
de um sol que parecia brotar
do centro flamante da terra
O menino dorme
a sua infância exilada
Num canto escuro da vida
a casa geme ao passar do vento pelas taquaras
A lua, silente, alumia as veredas insones
Nestes cantos não tem flores nem jardins
Só a poeira grossa igual
a dos meses e anos anteriores
e as crassas paredes que se vai comendo
aos pouquinhos
conforme a carência e a tristeza
esquecidas, aqui, em todo lugar

domingo, 9 de dezembro de 2012

Versos úmidos

No rio hierático e cativo da poesia
dormitam todos os sonhos que
eu não soube sonhar
cabem todos os sígnos
e tantas outras palavras cuja
simples expressão faz o
tempo difuso flutuar
e os dias e as noites
perpassarem implacáveis
nos vales onde correm e soluçam
as águas perenes e avermelhadas
dos rios que choram e suspiram
ao  ouvirem as pétalas dos versos
que caem
e pelo perfume da névoa umedecendo
o sussurro da aragem ondulando
no bambuzal

Nesta brisa soprando nas noites azuis
evolam-se estrelas deitando fagulhas
ao vento
urdindo nuvens de algodão
e abrindo o remanso onde cabem os
meus silêncios quietos e vulneráveis
cabem estes ecos de nostalgia
e aonde acorre meus olhos
buscando teus passos nas
tardes iluminadas pela ternura
transparente e comovida de um sol
caminhando para a noite sem sono
e onde uma lua derramando prata
admira na inquietude da madrugada
os sinos a dobrarem as horas
e a voz do vento doce e distante

Nesta chuva turva que embaça o dia
lanço barquinhos de papel
Ouço saudades tamborilando no telhado
no plim plim plim dos pingos pingando
É final de primavera
Os ypês já floriram e suas flores pequenas
cobriram o solo em sombras amarelas
brancas luas
ametistas roxas
A noite treme sobre o mar
e o vento recita versos solitários de sal
e séculos na noite que freme sobrer o mar
No poema que se abre e fere a tua lembrança
morre um menino
pequeno viajante de tempos e de sonhos
tão pequeno e já envolto em solidões
tão pequeno para a angústia dos séculos
corpo sem alma
guarda sua lata de barbante e areia
para o incognoscível amanhã

Nestas mãos que amalgamam o ar em busca
de desertas madrugadas 
cabem o anjo
e o aroma angelical dos jasmins
cabem a voz da flor
e a aurora que resplandece em ouros e azuis

Nestas mãos que tocam o noturno escuro
e vário
e que tocaram teu rosto
enlaçaram a tua mão
acarinharam teus cabelos
acenaram um adeus no vento triste de uma
tarde sem nome
nestas mãos ficou a nívea flor dos teus seios
e todo o lento silêncio que embebe a poesia

Estas mãos,
molhadas pelas chamas das lágrimas,
não sabem da saudade que
eu sinto dos caminhos que andei
sob espelhos
A imagem invertida fazia voar meus pés

Estas mãos...
Estas mãos não sabem da saudade que
eu sinto da noite negra dos teus olhos
Nem estas mãos
nem os anos todos que passaram,
nem as estrelas que cairam sobre o
caminho de pedra
enquanto eu te esperava
nem as noites
nas quais teu beijo não era meu

E na rua, entre teus braços,
a noite escondia a eternidade
A lua, lírica esfera sob o pêndulo negro
do céu, vestia de cinza o extenso mar
cortado pelas ondas e entregue às terras
pelas marés
As águas  erram na penumbra indecifrável
que a tua ausência deixou
e levam consigo as canções e os versos,
sem métrica e sem limites,
com os quais te amei

sábado, 8 de dezembro de 2012

Maio

Por que maio?
e não outro mês qualquer
Talvez porque em maio
as manhãs acordavam entre
neblinas e a graça do teu
sorriso inocente
Talvez porque em maio
você enlaçava o meu pescoço
e me dava beijinhos de
esquimó
tão frios nossos narizes
tão linda a tua maneira
de se deixar existir
Sorrias quando eu dizia que
a poesia é como jardins
e que as palavras florescem
nestes segredos suspensos
em nuvens vermelhas
em ramos de vento
em flores de luas
O ano?
O ano não importa
Infindável é o tempo
e a chama que o consome
Importante mesmo
era que fosse maio
e que o beijo
me atordoando
em ofegantes salivas
dissolvesse-me, menino
O beijo pousado no teu colo
no teu ventre
Nas nossas mãos enlaçadas
nos nossos olhos fechados
faziamos o dia conforme
a nossa magia de lentos segundos
o tempo parado em cada fibra
em cada toque flamante
E o amor era maio
e de dentro da bruma
de um mar que não tinhamos
vinham teus olhos
de menina
tua boca miúda
os dedos sobre os lábios
entoando o silêncio repentino
os segredos ainda úmidos
zonzos
Meu corpo o mesmo que o teu
lenta poesia a desnudar-nos
nos teus limites da bruma
nos teus calores de sóis
nos teus olhos de noite
casualmente sem lua
Em maio inclinavam-se os dias
que traziam você e as tardes
de incandescentes ternuras
traziam o teu carinho
e risos de era uma vez
traziam a canção de amor
tocando no rádio
e a flor ressumando no jardim
e brincos de princesa
e lírios florescendo no
horizonte
entre mar e terra
para o meu instante
de bardo
para os meus versos
imaturos
Vinham os versos
com o silêncio
que teus dedos
em mim compunham
sublimes
inquietantes
inefáveis sonhos
a brincar com nossos dias
com nossos maios
a brincar com amanheceres
que ficaram em mim
como a estrela esquecida
ficou no céu da nossa manhã
rondó decifrando a lua
e a tua ausência despida
ante os meus versos noturnos
ante o preto e o branco da vida
Eu ainda posso ver
teus olhos negros
indeléveis
me sorrindo
desde as rendas diáfanas da neblina
dissolvendo-se, assim,
na sede da aurora
e dos primeiros raios de sol
Com a última estrela da manhã
eu sinto que o tempo passou,
incerto
molhando com o teu nome
este passado onde me escondi
Pingo...
para mim serás sempre Pingo
Pingo d'água
da onde sorvi da tua boca
a gota da minha
primeira lágrima de amor
e de inauditos maios
que hoje me trazem os ventos
entre cantigas e poesias
entre pétreas solidões
desvelando esta saudade
e este silêncio
com os quais recito o teu nome
reescrito no lago dos meus sonhos
e nas poesias que não te fiz
e que adormecem nos meus dias
e que derramam nas noites
lembranças dentro de mim

domingo, 2 de dezembro de 2012

Também

Também deste poema se morre
letra após letra
o som inteiro e intenso da palavra
que cria rios e desertos e miragens
grises como o meio da noite
onde o poema descreve arabescos
e o agora dissolve os segundos
na farsa do tempo que é morte

Também destas horas se fartam
o incandescente amargor coleante
da areia escorrendo amarela
como um rio ruminante
entre o passado soturno
e o futuro incognoscível
que nos mantêm de joelhos
há 512 anos

Também nas madrugadas se chora
o choro longo ou breve
como chora o rio fora do seu leito
um choro que se pensa infindo
que se chora até se adormecer
no engano
e na absorta letargia do sono
onde dormem os olhos incompreendidos
da infância
que nem você conseguiu consolar
trazendo a flor ébria e a cinza neblina
que se esvaneceu deixando
a primeira palavra do poema
sem resposta

Também se vive a contemplar o mundo
constrangido
náufrago
anacoreta
a estacar diante das reticências da vida
a mergulhar no espesso lamento da dor
das guerras profetizadas nos gabinetes
incesto e morte 
e o desespero natimorto da platéia
diante da face do medo
diante do cansaço da espera exilada
e da ausência de perguntas
enredadas na vontade empoeirada
de quem, sequer, vê o muro

Também de fome se vive
de sonâmbulas bocas esquecidas
esperando o pão nosso de cada dia
ardendo em febres
e esperanças forretas
Pai,
perdoai a nossa inércia
assim como nós perdoamos
a quem nos tem debicado
não deixeis cair o parco pão
no chão conspurcado
pela nossa apatia
e pela nossa "candura"
livrai-nos dos néscios
e da submissão

Amém