sexta-feira, 31 de agosto de 2012

A noite fala

"O mundo é feito de esperas inconclusas"
   (Marco Lucchesi in Poemas Reunidos)


A noite fala a um canto,
alheia às rodas do tempo,
das velas abertas dos sonhos
imanentes
e dos mares insones
a refletir estrelas
e o murmúrio dos lagos
Segredos,
sons perdidos entre as cores
e o silêncio das flores
prateadas por uma lua fúlgida
A noite se esconde na praia deserta,
exílio inelutável do que fui,
e da dor entressonhada,
insondável e nua
calcinante como o primeiro espasmo,
inconsútil como o manto negro
que a contém para além da vida
e da morte
Séculos crepusculares reconciliam
Tempo e erternidade
É noite!!!
Acordam os medos inexaustos
As horas caminham para a madrugada
O vento traz de longe o aroma das cinzas
dos mares e de sua solidão prateada
Ninguém ouviu o ocaso vermelho
nas ilhas convulsas,
no labirinto de estrelas que orna o céu
e ressoa a nostalgia ignara do Destino
que  tece com suas mãos de artesão
os dias tisnados pela fuligem das sombras
Ninguém ouviu o queixume dos ventos
passeando na escuridão insciente,
levando nas mãos a areia das longas horas
criadas pela velha solitária,
indormida,
perene,
como os passos para a morte
Ninguém ouviu as vozes cantando barcarolas
enquanto os barcos desvaneciam-se
na fragrância da saudade que nasce
dentro do espelho aberto no abismo
como este severo rosto evanescente que trago
desde o fluxo escuro do rio e os mistérios
emaranhados onde me tenho prisioneiro
de um passado e de seus olhos tristes
e plangentes
Como dormir nesta noite suspirosa?
Como recusar a madrugada?
Como fugir destes meus sonhos
se é de ti que eles vêm e falam?
Como apagar a hora que agoniza
mal termina o dia
e começa o meu desaviso?
Como fazer da lágrima o orvalho
que freme na folha verde do dia?
Como não se encantar com o curso
das estrelas e suas vozes de um passado
onde há a insofismável prosa das origens?
Ó, honolável amiguinha,
são tantas as perguntas
tão grande o medo
diante dos jardins e vergéis
aonde brotam as flores que não dormem,
mas que convidam meus olhos noturnos
a sonhar com suas pétalas,
a beber nos seus rizomas,
a verter a lágrima com a qual a noite
mergulha na consumação inexorável
da dor que se depura
na noite que fala
e vaza pelas minhas janelas
abertas para ti
e por onde eu busco teu rosto
no rosto angelical das estrelas
O pensamento, insone,
vasculha a casa dentro de mim
e vê na escuridão que flutua
sinuosa e espessa
um passado escrito em
impertubada memória
cuja melodia infinda
cantam os séculos noite afora,
Um toco de vela aceso traça
a minha sombra na parede muda
Pedaços de luar vazam
e sibilam entre as telhas,
quietamente escorrem pelas paredes
roubando de mim a solidão
e o mundo onde eu guardava o teu nome
entre as rosas da rua e a primavera
grudada nos muros inermes
onde as flores teimam em brotar
a tua lembrança
Ergo os olhos na penumbra,
a casa,
a vida,
a alma,
estão vazias
Amanhã,
quando um outro sol entrar pela janela
e apagar as sombras nas paredes e tudo
o que fui na tua vida,
a dor na minha alma será levada pelo vento
dolente incendiando o dia e a distância 
E a tarde adormecerá nos rosais
e entre os meus braços
se calará o silêncio


Imagem: Fernanda Cordeiro

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

1920

Em 1920 eu era assim como este rio que recordo
como estas águas que fazem a sede de um final de agosto
como este caminho silencioso que leva meus passos para o mar
e no mar a aurora espera a primavera e as cores de um tempo trêmulo de amor,
trêmulo de estrelas e da noite que traz na concha das mãos o passado
fragrância doce das madrugadas de chuva que tamborila tristonha nos telhados,
barcarolas de saudades que não deixam a noite dormir,
a vida feita de instantes onde morro no sussurro dos ventos fugazes que arrastam a noite e a solidão

Solidão...

ainda não provei de todo o teu sabor
ainda não chorei todo o teu  mundo
ainda não tirei de ti os meus olhos
será sob ti, solidão, que dormirá a neblina dos meus dias?

A manhã traz seu tanto de ilusão habitual,
dois ou três passos de um destino antigo,
de um tempo medido em receios

A poeira azinhavre do pensamento sobre o papel,
pelo qual flutuam astros e luas
e tateiam rios inteiros de várias cores,
vai e vem por entre as vogais e consoantes 
das palavras que eu nunca soube te dizer,
pedrinhas rolando no leito do rio antigo,
de águas amarelas,
tendendo à ferrugem,
dobras da vida por onde escorrega o lápis e a letra,
por onde fogem os sons ignotos do eco vazio das ilhas oscilantes

Em 1920 eu era assim como estas palavras
reflexos de pequenos pedaços de sóis
vermelhas,
brancas,
lilases,
labirintos,
suspensas,
letárgicas,
mergulhadas em mim,
e nesta ilha que me tornei ante a negação da vida,
ante a negação dos dias esboroados em cinzas,
simulacros de entrelinhas do que se dizia "amor"

Agora mimetizam-se no falso vento que emana da borda da noite
palavras soltas,
conversas que vêm de fora com seus sons diacríticos
Sons escorrendo nas areias de uma ampulheta
de um fevereiro fragrante
dizendo a cada instante o gesto sustido nos estilhaços do espelho
que a alma ainda remói

Em 1920 eu era assim como esta distância alheia à desinência do tempo,
das esquinas contidas no espaço das noites possíveis pela luz da lua,
passíveis de se dividir em cores pontilhadas,
chamas azuis

Em 1920 a lua se esvai...
desfeita pelo vento sobre o mar
e o meu coração arranha a transparência do céu
sustentado pela trama do que sou...
ou do que penso que sou
O homem não é o nome que o nomeia
O que fui e o que sou é obscuro:
rio,
argila,
rumor,
espelho,
pergaminho,
serpe,
formiga,
pensamento de um Deus...?
Não sei!!!

Quantas vidas há dentro do rito?
Com quantos olhos olhei e não vi?
Com quantas mãos tateei o mundo iludido que que o tato decifraria o mundo pra mim?
Ouvi você dizer, baixinho, rente ao meu ouvido: "Te amo"
e foi tudo que guardei do desenho da tua voz


Em 1920 eu era assim como o pássaro mergulhando na espuma azul...
...da vertigem repentina de um mar tocando o céu

O silêncio não coube no mar,
nem nas mãos inertes da angústia
em 1920

Imagem: Fernanda Cordeiro

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Onde estavas?

 
Onde estavas quando te procurei?

Oh! lua que na noite  apascenta estrelas
e colhe uma mão de beijos suavíssimos,
colhe pétalas de carinhos a recriar o mundo

Onde estavas quando o vento passou
derrubando as folhas e as flores
e meus sonhos no chão?

Oh! lua que na noite crava seus punhais de prata
no ar soluçante que busca teu nome nas madrugadas,
busca teu nome nas palavras indecifráveis
com as quais disse ilusão
já tendo nascido saudade

Onde estavas quando a aurora escorregou da madrugada
e no espelho que foi clareando uma gota de lágrima chorava
a tua ausência?

Oh! lua que na noite perfuma os campos de primaveras
acende a bruma entre as flores da primeva solidão,
entre os arcanos dos dias nascendo da inquietude das cores
fazendo-se e refazendo-se,
umedecendo o azul do céu com seus vermelhos e lilases
e o infinito da vida
palpitando a emoção da manhã

Onde estavas quando tudo que fomos ficou
na melancolia das dolentes letras
com as quais escrevo saudade
como quem bebe veneno?

Oh! lua que chove semeando o branco som da canção
e o quieto perfume dos jasmins
penetra o poema das minhas solidões,
deita em teu colo o meu cansaço,
depura a mentira dos meus dias
e adormece em teu seio minha ilusão

Oh! lua, onde estavas quando o sonho,
morto em silêncio,
jazia envolto na bruma extensa das palavras,
pássaros de uma primavera dissolvendo-se...
...na canção fragrante da tarde solitária?

Onde estavas,
quando em mim, subitamente, recrudesceu a dor antiga...?

Hoje já não sonho
Não canto a candura dos beijos... rubros frutos
À tarde já não me espera o crepúsculo,
nem os ventos de terras distantes

Hoje, nas minhas tardes, contemplo o som do mar na ilha,
os amanhãs que flutuam com as nuvens 
e os devaneios que me transpassam a alma...

e nada mais

Imagem: Fernanda Cordeiro

domingo, 26 de agosto de 2012

Um minuto no labirinto

O silêncio move-se no labirinto
ao passar o vento e a noite falante,
a voz sem nome,
renitente
e demorada vai-se a divagar
aflita e confusa
impiedosa
treme
entre tormentos que o tempo teceu
Um tempo mais velho,
sombrio,
fala de agonias,
gorjeantes culpas,
infindos nevoeiros,
a encobrir as sombras,
como mantos a sufocar
a própria vida,
mirrada e abalada,
a duvidar da memória
prisioneira destas sombras que me acompanham
e que se insurgem em
antigos sonhos injetados de ira,
ajuntados a velhos preconceitos,
cismando desesperos,
a voz rude,
anacrônica,
sem nome,
e suas palavras saídas da neblina da memória,
lâminas insones,
vento a soprar as velas da sandice,
a falar quando adormeço,
triste suspiro ardendo enquanto morro
A fúria,
o delírio,
a alucinação,
tudo enlouquece
em solitário momento,
em horas longas que os meus olhos cegos as sustêm
neste tormento tão meu,
nesta dor que é tão minha
A insânia esvoaça lentamente
enquanto a tarde se finda em vermelhos
e o frágil ocaso derruba gotículas de orvalho negro
que tão sós ornam os céus e a lua
... no silêncio que se segue tudo se move
deixando a porta entreaberta para o próximo medo
Um minuto no labirinto,
antigas vozes,
vozes cativas de um mundo turvo,
um mundo trincado,
cacos ocultos na sina,
imagens saem de um passado onde os  espelhos
não refletem mais,
são meros vultos disformes dissovendo-se em aflita agonia
queimam nas chamas da culpa o engano das lágrimas
e as sombras pousam a dúvida sobre meu peito,
sobre o deserto delirante da loucura
onde flutuam
e fustigam
os ventos monótonos
da solidão
e a Alma,
desconhecida,
faz-se epigrama
nesta voz incessante
como os ventos devassando
a dor e o perigo e a ilusão de viver
a soar cambaleante
e lentamente em mim
lentamente
Como os passos que andam nas noites
delindo entre pressagos medos
E abertas as portas a vida se dissolve
no ar fendido por antigas vozes vindas de qual passado?
Momentos dilacerados
primitivas tardes
porções de mim
poeira onde o amor se evola
no minuto a minha frente,
no minuto no labirinto
no barro esgarçado das paredes da casa
que enganava a fome de então
Neste labirinto (sinistro)
eu não sou eu
sou tristezas imortais
de um tempo onde os sentimentos fenecem sob saudades
escondidas em meio à bruma que encobre o dia,
a mágoa
e o sussurro incessante das madrugadas
debruçadas sobre a lágrima inamovível
de um poema que flutua à beira do ar que chora
pedaços de ilusão
com os quais vive-se a vida,
cativa dos mistérios,
longa
ou
breve
insondável quimera,
gota amara,
perfumadamente nua
profana e divina
flor levada pelos ventos úmidos do tempo atemporal
Quantas vezes ainda me matarás no mesmo sonho,
no mesmo engano?
Tão longos são os enganos da Vida
tão obscuros os segredos da Morte
que os meus olhos vêem, imprecisos,
na vida assim,
nesta loucura fremente,
que se entrelaça e torna aterrador
e range
e despedaça
um minuto no labirinto

Imagem: Fernanda Cordeiro