terça-feira, 28 de outubro de 2014

Merdocracia II


DEMOCRACIA:

Governo do povo; soberania popular; democratismo. [Cf. vulgocracia.]

Doutrina ou regime político baseado nos princípios da soberania popular e da distribuição equitativa do poder, ou seja, regime de governo que se caracteriza, em essência, pela liberdade do ato eleitoral, pela divisão dos poderes e pelo controle da autoridade, i.e., dos poderes de decisão e de execução; democratismo. [Cf.(nesta acepç.) ditadura (1).]

País cujo regime é democrático.

As classes populares; povo, proletariado


PLUTOCRACIA:

Influência do dinheiro.

Preponderância dos homens ricos. [Sin., bras., nessas acepç.: milionocracia.]

Sociol. Dominação da classe capitalista, detentora dos meios de produção, circulação e distribuição de riquezas, sobre a massa proletária, mediante um sistema político e jurídico que assegura àquela classe o controle social e econômico.

Fonte: Dicionário Eletrônico Aurélio


A tão falada e endeusada democracia vai ter que me provar que existe,
que não á apenas um chiste,
que não é somente uma catadupa de tristes balidos,
um blá, blá, blá, incontido
em época de eleição
a demo/cracia, se existe, é o governo do povo
ou é o governo do cão?

Ah!!! Dona democracia, dona democracia
Enquanto uns tchibum na piscina
outros tomam banho tcheco,
de caneca, sabão de tanque e bacia
Se não fosse tão patético seria uma desarvorada folia
Folia só comparável à logorréia eleitoral
Do carrapato ao piolho,
vermelhos contra azuis
como no tempo da guerra fria

Ó, Isis dos oprimidos, ó, diletante democracia,
onde está a distribuição equitativa do poder?
Cadê a liberdade do ato eleitoral?
Diga-me, sem estes eufemismos rebuscados pra me enganar
Sem esta verborragia falaz
Com toda a clareza verbal
Onde, ó Grande Guardiã da soberania popular,
te manifestas íntegra e isenta como vontade nacional

Democrático país onde o degradado filho de Eva não come
Democrática nação cujo o rei, o déspota ou o gigolô,
seja lá que for que nele impera, sem nem sabermos dele o nome
Democrático país no qual a plebe,
esta pústula exposta,
é uma massa faminta e esquálida,
amorfa, vassala e sem reposta
A plebe que entre uma eleição e outra torna-se invisível e some,
aviltada massa de manobra, Geni boa pra apanhar
Democrático país sem alma cujo eleitor majoritário é a fome

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Anda no mundo a cegueira

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos como animais envelhecidos;
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos;
como frutos de sombra sem sabor
vamos caindo ao chão apodrecidos
 
Eugénio de Andrade.
In Poesia.
Rosto Editora - Modo de ler, 2011.
 
 
Anda no mundo a cegueira
como labaredas acesas correndo no mato seco
Anda no mundo tanta certeza que chega a alumbrar a luz,
que chega a apeà-lo da cruz
Andam meus olhos tão cegos
Meus olhos encobertos por sofismas já não veem
os silogismos e as premissas que me exilaram de mim
Não tenho tempo nem verve para duplicar ouro qual um Zósimo
Muito pouco posso fazer pela sua dor
Para mim, impenetrável, indefensável, incolor
Fecho meu coração para o mundo e suas mazelas
Ando cego e hipócrita
Arrogante e falacioso
Indiferente e apático
Cuidando do próprio umbigo, e olhe lá
Não me comovem as chagas abertas em tantos Cristos,
de tantas igrejas e capelas,
de tantas ruas e vielas
Tão cego anda o meu coração
Que já não vê o que via o meu coração de menino
Que já não cantarola a música que o vento sugere
Que já não lê o poema
Que já se esqueceu do bairro da infância
Que já não se comove com a amorfa vida das ruas
Que já não se contorce ao ver e saber as guerras
Meu sentimento fez-se insondável madrugada
A transcendência do nada
Este desespero silencioso e afônico
Esta ironia escorrendo dos atos
Menoscabando o pranto alheio por não ser minha a dor
Andam moucos meus ouvidos
Andam sem fé as minhas mãos
Que já não se postam para a oração
E tateiam na escuridão em busca de uma possível absolvição e salvação
Na boca este gosto de mágoa, fogo, cinza e morte
Sinto no ar o cheiro do rastilho vermelho da bomba
Vislumbro no horizonte o seu cogumelo
Onde termina o ser humano e começa a bestialidade?
Minha consciência já não sabe
Meus sentidos já não sentem
Já não me são de grande valia
Estou anestesiado
Durmo o sono insonte e desatento dos justos e éticos
Coisas que não se vê muito por aqui
Ganho meu salário independente da tua fome
Independente se amas ou odeias a tua vida e as coisas da tua vida
Um dia havemos de enxergar quem nos marioneta,
nós, os fantoches, vítimas das injustiças sociais,
com nossos ventres galados e nossos sonhos banais 
Um dia, quem sabe, um dia
Quando Godot chegar
Quando voltar o que ia
Quando a canalha partir
Quando chegar a alegria
Quando vier o amor
Quando viver for fantasia
Quando me afagarem a memória as mulheres que amei
Quando brotarem as flores ao meio-dia
Quando a saudade for tanta
Que esquecer não esquecia
Enquanto a caliça dos sonhos se revelava na réstia de luz
Enquanto meu mundo se desfazia
Quando não mais jogar jogos de poder
E o medo de mim se apiedar
Vou viver minha utopia
Aqui ou em outro lugar


domingo, 26 de outubro de 2014

Merdocracia

 
CANSAÇO HISTÓRICO
 
Triste, tardio descobrimento. Outrora
pensei: somos o acúmulo de re-cobrimentos;
basta revelar.
Revelei.
Revelei-me.
Revoltei-me.
Cansei de relevar.
 
Triste, tardio descobrimento: a história
é a estória dos desvios, múltipla ficção;
a ilusão, sim, é linear
e eu cansei de me adiar
Quem for ex-brasileiro
que me siga.
Quem ainda for ingênuo
- que prossiga.
 
Affonso Romano de Sant'Anna.
In Poesia Reunida 1965 - 1999 - Volume 2.
L&PM Pocket, 2004.
 
 
 
Hoje é domingo de sol
Seria de praia e diletante pachorra
Não fosse de eleição
Já fui votar
Não por consciência,
mas, por que podem se apossar do meu salário,
em rito ordinário
 
Cansei da televisão!!!
As noticias são requentadas com cores gastas e muita empáfia
Pra dizer o sempre mesmo ramerrão,
simulando em vozes empostadas uma pretensa isenção
Como disseram anos atrás: eu sou eleitor patrão
Meu patronato dura um dia
Depois vem a expiação
 
Dizem que eu não sei escolher candidato
Que se me colocarem pra cuidar de duas tartarugas
uma foge e a outra eu não sei onde está
Que entre a marmita azeda e o pão duro
Escamoteio a minha opinião (ou a que eu penso que é minha)
Entre Jesus e o ladrão
Escolho o mais fanfarrão
 
Depois de presenciar uma campanha funesta
Muitas ofensas debalde
O texto decorado, viciado e sufocante
Vomitado junto com os vossos cinismos
e a dialética dos parvos
Ambos, sabendo da minha leseira, me prometem o paraíso
Mas, espera aí, pergunta pra quem tem um pingo de juízo
Vão me dar o paraíso?
E as contas quem paga?
E quem vai pagar o condomínio, o IPTU,
o laudêmio, o prejuízo?
 
Hoje foi um domingo de sol
A praia vai ficar pra outro dia
Sequestraram o meu sonho de ócio
Impingindo-me esta merdocracia

Palavras


CONSELHO
 
Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.

Eugénio de Andrade.
In Poesia.
Rosto Editora - Modo de ler, 2011.
 
 
A palavra derrama cores nas flores,
Embaraça-se às borboletas, e voa,
E trina com os pássaros acordando
O silêncio
Para, só então, apascentar a manhã
 
A palavra despe o rei
Põe a pedra no caminho
Põe os dedos sobre os lábios
E diz silêncios

Eu nada dizia
A cabeça encostada ao peito,
Os olhos postos no chão
Não veem a vida em volta
Escutam o coração
À espera da palavra
Esquecida, escondida, reticente
Maturando entre os sonhos carregados de ilusão
Úmida de sereno que o sol da manhã transforma em orvalho
E brotos pejados de poesia

O vento vem, vermelho e viandante, rodando redemoinhos
O vento passa soprando sem pressa
Desenhando arabescos com a poeira que sobe do chão
Propondo sortilégios de toda sorte
Deslindando algaravias
Rimando vida com morte

O vento passa sem pressa por entre os cacos do dia
Desprendendo o fruto maduro que o sentimento amadureceu
O vento passa cobrindo a semente que cai no chão
Que se dirá, ventura ou desdita
Conforme venha a ser objeto da fala ou da escrita
Um grito na noite ou a trêmula miragem no dia
Não importa!!!
A palavra amadurece ao vento ou ao sentimento que a mereça
E brinca entre os meus lábios
Antes que eu possa supor o sussurrado poema sem fim
Que perora em minha cabeça
E faz cócegas e morde dentro de mim
Olorosa dentro de mim
A palavra recendendo a lírio e a benjoim

Tão linda quanto a manhã surgindo vermelho-amarelada por trás dos morros
É a palavra surgindo de trás dos véus, abrindo baús, para libar sensações
Em plena floração de inverno
Apenas a palavra é mais bela do que a brisa de agosto
Apenas a palavra é fruta de tanto sumo e gosto
A palavra anima a prece ligando a terra ao céu
O corpo à alma
O menino choroso ao adulto estupefato com a vida
A palavra é iluminuras gravadas em ouro e prata na solidão do papel
Ou na escuridão e na neblina da noite em que sonhei com você


sábado, 25 de outubro de 2014

Tempo

ESTOU DIZENDO PARA ESTA LAGARTIXA
 
Estou dizendo para esta lagartixa
na parede do meu quarto
que o século vai acabar
mas ela não me olha
nem me entende.
 
Já tentei falar com a formiga
com a aranha
fui ao limoeiro da horta
e ninguém liga.
 
Olho os objetos da sala
minhas coisas no escritório (os óculos)
e no quarto (os sapatos).
 
Todos indiferentes.
 
Não estão em pânico
não devem nada
e não têm planos.
 
O tempo é mesmo
uma doença humana.
 
Affonso Romano de Sant'Anna.
In Vestígios.
Rocco, 2005.
 
 
 
Compungindo, submeto-me aos fragmentos de algo que não existe
Deixo-me negacear por relógios e calendários, 
e me pego crente da mentira repetida muitas vezes
Explico: dentro do sonho que é a vida não se sustenta a existência
do que se convencionou chamar de horas, minutos e segundos
enclausurados em números e nomes fraudulentos
 
O tempo escoa, singularmente,
ao longo da jornada do planeta e sua ingente solidão,
concubinado aos preceitos da natureza
O tempo nasceu sofisma sob o som e as luzes do Big Bang 
e dissipa-se mística e impunemente
 
A elucubração mecânica e racional
de um tempo retalhado e medido
mensura meu desatento sofrimento,
reduz a minha essência à violência
de um tempo urdido, falaz e mordaz,
encarcera as minhas ações,
enrodilha e cerceia a multidão que há em mim,
me cobre de ansiedades,
me exila de mim mesmo,
açodando a minha morte,
e morro,
morro tantas vezes quantos forem os meus sonhos surrupiados
pelo engodo do tempo
Perco-me na falácias das horas
Pego-me perplexo diante do anacronismo
de um passado presente no futuro,
de um futuro caminhando tão igual para o passado
Moinhos de tempo giram sem se preocupar com o tempo,
giram ao vento
e cospem o matraquear dos relógios
e o silêncio inacabado das ambulas ignaras das ampulhetas
Moinhos de tempo contra os quais eu luto e reluto
na minha quixotesca existência,
os olhos em fuga,
pasmo e cronofóbico,
com medo da sombra que vai subindo pelo muro e levando a tarde consigo
 
O tempo despótico e inverossímil me cerca
e avança
testando a minha angústia e solidão
como se alhures houvesse o infrangível passado,
um presente a lapidar,
o inescrutável futuro
O tempo arvora-se senhor do meu coração trespassado pelas luzes da manhã
Luzes que permutam noites em dias
neste planeta de 7 bilhões de discípulos (ou algo parecido com isto), girando, girando,
independente do fim e da fome metafísica do homem,
insolente,
alheio aos calendários e relógios
São quase 7 bilhões de incautos vivenciando o mesmo engano,
com seus segundos inventados,
a roer os dias e as almas
Segundos espevitados,
maquinados,
criados,
mal criados,
numa ilusão delirante, difundida e aceita
sob precária e incognoscível explicação.
 
Na tela branca da tarde
o horizonte se desvela em laranjas,
vermelhos, amarelos, lilases,
o dia deposita seus pincéis,
a ave busca seu ninho,
os passos do dia buscam a noite,
meu medo busca outro ser numa espera atemporal
num acontecimento sem hora ou dia agendados
 
Testemunha do engano vejo
o sol (dia) preceder a noite,
ou é a noite que precede o dia
Quem puder que me responda
 
A noite, amorosamente,
esbate-se e dá continuação ao dia,
que não é dia primeiro, nem é dia 16 ou 30,
nem á março, nem setembro
É dia!!! Apenas dia
Assim como a noite é noite, apenas noite
E se manifestam numa sucessão de momentos
que nada têm a ver com segundos, horas,
com dias num calendário imposto e impostor
 
O tempo é esta convenção espúria,
derrisória invenção (des)humana,
minutos, segundos emergindo do mundo dos conceitos,
com a mesma lógica da mente que um dia pensou a pedra ou a flor
materializando-se em esquizos e torpes senzalas
desta sísifa escravidão
O tempo é esta perversa e mofina loucura embalada em segundos,
minutos e horas
 
A alegoria do tempo contempla o espasmo da lua
e a precisão do sol
num maniqueísmo de luz e sombra
O nascer poderia ser o início do meu dia e o morrer o ocaso deste mesmo dia
Quanto tempo se passou entre um e outro fenômeno?
Não foram dias nem horas
Passou-se uma existência
O deslindar de um segredo
 
O tempo existe?
 
Há o momento de plantar,
o momento de colher,
o momento da chuva ou do estio,
aquele instante do cio,
o momento peremptório da sina,
o momento das pragas e dos males pervagando os mistérios,
infectando e devorando os sentidos
 
Por mais que eu procure não consigo encontrar
a hora exata de amar,
de ser feliz,
de compor uma música,
de fazer e fazer-se poesia,
de visitar um amigo,
o tempo exato pra alegria
para se locupletar e se achar na liberdade,
para viver-se a utopia,
para ver a flor nascer do friável teorema do dia
que se quer esquartejado
 
Há tempos anacrônicos de paz
onde voam colibris e pequeninas flores sem nome,
de todas as cores,
cobrem o chão
e tempos infindáveis de guerras
com seus cogumelos pairando sobre nossas cabeças
Há o tempo meretriz
o qual desfruta de mim e pelo qual sou pago
tendo vendido, assim, os melhores anos da minha vida
em nome da minha usura
 
Mas, o tempo, assim, esquartejado não existe,
não me ilude e não me engana
o tempo hora, minuto, segundo
o tempo, empilhado nos relógios,
asfixiando o mundo
em ano, mês e semana
é, destarte, uma subvertida doença humana
 

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

MÃÃEEEEEEEE!

CANÇÃO
 
Tinha um cravo no meu balcão;
veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?
 
Sentada, bordava um lenço de mão;
veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?
 
Dei um cravo e dei um lenço,
só não dei o coração;
mas se o rapaz mo pedir
mãe, dou-lho ou não?

Eugénio de Andrade.
In Poesia.
Rosto Editora - Modo de ler, 2011.
 
 
Mãe, meu peito bebe o repentino silêncio
enquanto eu bordo o lenço,
enquanto o cravo enfeita o balcão
 
Mãe, quisera saber de ti
se uma vida basta para o amor,
se não basta diz porque não
 
Mãe, o outono despe-se para as tardes,
e os passos do rapaz avançam pelos caminhos
traz o cravo na lapela
o lenço traz numa mão
já o vejo da janela
deveras há de rogar-me
vem pedir meu coração
Mãe, dou-lho ou não?

Mãe, respondei ao meu senão
respondei à minha aflição
trazei a cesta com flores
apagai a escuridão
que ele é já na platibanda
mãe, dizei o que é que eu faço
dou-lho ou não meu coração?

Mãe, tua boca silencia
não me dizes nem sim nem não
o rapaz roubou-me um beijo
enlaçou a minha mão
mãe, avia com esta resposta
mãe, já tirei minha calcinha
abri o último botão
mãe, sinto que já desfaleço
MÃEEE, que merda, responde,
meu, Ahh! coração, Ahhh!, Ahhhh!
 dou-lho ou não?

domingo, 19 de outubro de 2014

Cisma da noite

ADEUS
 
Já gastamos as palavras pelas ruas, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
gastamos tudo menos o silêncio.
Gastamos os olhos com o sal das lágrimas,
gastamos as mãos à força de as apertarmos,
gastamos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
 
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro
nada
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao
outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha pra te dar.
 
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes
verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
 
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um
aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
 
Já gastamos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
 
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
 
Adeus.
 
Eugénio de Andrade.
In Poesia.
Rosto Editora - Modo de ler, 2011.




Houve um tempo no qual 
o sol abria e encerrava o dia sem palavras,
lírico e imarcescível
gestos insontes

Houve um tempo no qual
o amor fazia-se audível entre os silêncios 
das tardes que ardiam em rubras cores
face e máscara, luz e sombra
dando contornos à noite

Houve um tempo no qual 
o céu jungido ao mar
era o começo do céu na terra
era o começo do mar no ar

Houve um tempo no qual
a poesia lia os meus dias
e escrevia, escrevia, escrevia,
nas pedras que sustentam
e que separam
as terras e os mares do mundo

Houve um tempo no qual
a canção era o silêncio
e o sentimento dedilhava as tessituras
do amor indiscernível
como alegoria em meu corpo

Hoje as palavras estão gastas
restaram, teimosamente, alguns versos por fazer
restaram muitas perguntas e vicissitudes
que a cisma da noite traz,
alheia às sombras que já dormiam

Hoje o dia amanhece com o seu tanto de assombro
os pássaros cantam promessas
o dia é folha em branco que estremece à brisa
e o passado é como um lago
onde vejo a circunstante aleivosia do mundo
mas não sei o que lhe vai no fundo

O passado, como forma verbal e temporal, passou
eu passei,
tu passastes,
ele (o passado) passou
passaram os textos e as cartas insondáveis
sonhos contidos nos textos e nas cartas também passaram
nós passamos,
vós passastes,
eles (os sonhos) passaram

O passado, passou
os pássaros, indiferentes às vilezas humanas,
gorjeiam como fazem a bilhões de amanheceres
fastos ou nefastos,
apascentando o meu presente (brinde, dádiva, mimo, oferenda, oferta)
transbordando de trinados o meu silêncio
e o meu destino

sábado, 18 de outubro de 2014

Flores e alfaias

Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.

Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde dos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.

Eugénio de Andrade.
In Poesia.
Rosto Editora - Modo de ler, 2011.



rumores de outubro no céu da noite antiga
o vento passa e com ele
a primavera flana por entre as flores
inadiável, aspiro o perfume da rosa
na respiração da noite,
na brisa inocente
ou nos versos 
onde banho as minhas lágrimas
e queimo o mistério 
que traz a aurora
embora a madrugada
ainda procure e traga, enternecida,
a lua posta no céu para ti

olha que a tarde goteja o verde dos pinhais,
inelutáveis
o poeta deslindou tanta palavra
e tanto signo
e ouviu anjos
e as canções que vinham com as manhãs
e recriou a criação do demiurgo
para ti,
só para ti

de que matéria poderia o poeta criar rosas
e lhes dar perfume
se não da tua meiguice 
do teu corpo desnudo 
e banhado nos sonhos 
que adormecem em teu silêncio

para ti são os ribeiros e a lua
e o dia amanhecendo
entre os ramos e o orvalho
derrubado pelo vento fatigado
de percorrer a noite azul
dando perfume aos roseirais

a última estrela ainda brilha
a cidade suspira dorminhoca e sonolenta
o céu inacabado e sem contornos
aos poucos se revela e sangra lentamente
enquanto a luz vacilante discorre cores
fulvas no crepúsculo da manhã cinza opalescente
o dia espia as sombras se dissolvendo
e se diluindo ante os olhos negros da madrugada
o dia desperta e afaga as flores
com extrema ternura
trinam os pássaros
o mar cintila purpúreo
sob o azul aonde começa o céu
o dia nasce
                  a luz frágil da aurora alumia as rosas
                     é tua a manhã que se deita devagar
                                                    por sobre o mar
 foi pra ti que se fizeram doces os lábios ternos da poesia

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Inquietação

CIDADEZINHA QUALQUER
 
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar
 
Um homem vai devagar
Um burro vai devagar
Devagar... as janelas olham.
 
Eta vida besta, meu Deus
 
 
Carlos Drummond de Andrade.
In Antologia poética.
Editora Record, 2008.
 
 
 
A vida exauria-se indiferente
a ter ou não ter sentido
Sob a luz fraca e amorfa do dia havia este tédio
Havia estas palavras sem ato
Sombras escondidas pelos vãos
O tempo escorrendo pelas mãos
Dia após dia
a vida carecia de liame
e da greda primordial
A vida era um cansaço só
O vento era um cansaço só
A chuva caminhava desfazendo o barro,
deixando um perfume doce
de ausência
e de um insonte desespero
A dor que erra e me perde
em meio ao arrastar do dia
carreava figuras tão nobres,
na lama empapada das poças
e nos claustros onde se arredam
os passos vários da infância
e este silêncio tão comovido,
irreversível e inadiável
Resta da lama esta escória
de viventes cansados e indigentes,
tão pobres,
para o indecifrável mistério desta vida vazia
Ainda que a existência
seja toda graça e expiação
ouve-me, Senhor,
eis que sou,
todo mágoa em meu coração
Ouve-me,
que a sombra do silêncio
projeta-se sobre o cotidiano frangível
e sobre toda esta vida besta derruída de significação


Sentimentos insontes

ARTE-FINAL
 
Não basta um grande amor
para fazer poemas
E o amor dos artistas, não se enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.
 
O grande amante é aquele que silente
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.
 
Uma coisa é a letra,
e outra o ato,
 
- quem toma uma por outra
confunde e mente.
 
Affonso Romano de Sant'Anna.
In Que país é este?
Rocco, 2010.
 
********************************************************* 
Entre a letra e o amor
Entre o amor e o ato
Entre a pele e o tato
Entre o ritmo e a rima
Ficou tanto sentimento
no carinho e no sonho que não acorda,
no segredo que não se esconde,
mas se sente neste gosto de ternura
                                   que não se acaba
                                   e mais se apura
Ficou em um nome da infância
Ficou nos intervalos de um tempo,
                                       beijos inquietos,
                                       revolvendo a memória, amiúde
Ficou nos momentos e tardes...
a música tocando num rádio
esperando os meus lábios dizerem poesias aos teus,
esperando que as nossas mãos escrevam os poemas
aos quais um grande amor não baste
E tudo em ti foi carícia
e todos teus foram os meus instantes
Foi tua a música tocando no rádio
num tempo em que amar era o silêncio dos dedos
deslizando nas tuas costas,
era o gesto de abrir as manhãs (tímidas),
como são as manhãs ao despertar
Ficou do amor esta sensação inexprimível
de uma atemporal eternidade
Ficou do (no) amor teus olhos negros
como a canção das noites,
como o verso espontâneo das noites
                                          entrelaçado aos teus braços
Alguém poderá dizer: De tanto amor ficou tão pouco!
Pode ser...
Pode ser que seja pouco
Mas este pouco é tudo e é tanto que continua existindo
"Não basta um grande amor
para fazer poemas,"
nem basta um grande amor para dizer segredos e saudades,
para ouvir a pausa e o silêncio dos corpos insontes,
mas basta um pequeno poema feito para um amor
que se enrodilha no nosso colo
para que o tempo viva para sempre
e me procure
num mundo de faz de conta
onde teu cheiro e teu gosto
misto de suor saliva e chiclete
espalham nas noites estes momentos
enquanto o tempo passava lento distante
sem dizer palavra ou verso
sem buscar a rima negra que teus olhos pedem
para que eu fizesse um poema, sujo que fosse,
poema que mesmo diante de tão grande amor
eu não sei fazer
No céu as nuvens caminham nos ventos,
nuas de águas e inúteis tempos,
propondo enigmas,
elucubrando ilusões
do que a vida foi sem ter sido

sábado, 11 de outubro de 2014

Tenho medo e invento...



há sempre um dia em que não se morre
porque morrer seria redundância
e reduzida à sua essência mais secreta
a vida continua pulsando porque seria
mais difícil estanca-la que continuar
assim, a seco, coração anoitecido
pela sombra e a soma de todos os desencantos,
[sem rumo algum pelo/sem sentido de todas as coisas]*
 
há sempre um dia em que se tem vontade
de expor aos passantes a chaga aberta,
como os mendigos expõem feridas nas calçadas,
chapéu ao lado, para que nos joguem moedas,
olhares de pena, desprezo ou simplesmente nojo
mas tão difícil mostrar as cicatrizes quando a vida
foi ensinando, lenta, o jogo necessário de escondê-las.
 
há sempre um dia em que  nos perguntamos
fui eu quem me fez assim ou me fizeram?
e a resposta importa pouco, importa nada;
seja qual for, não voltará jamais o que perdeste
em alguma esquina do caminho, não sabes onde,
não sabemos como, e mesmo o choro então é pouco para
[tua dor
E ainda que compres rosas ou vás ao cinema ou cantes
uma canção qualquer, o que persiste é a morte
com seu roteiro de vermes e distâncias.
 
no dia seguinte ao dia em que não morremos,
iniciados na tarefa de tecer o inútil
trocamos os lençóis, lavamos o rosto, arrumamos a casa e
partimos para a rua
sem que ninguém perceba o epitáfio sobre a fronte.
 
*No original constam as duas possibilidades
 
Caio Fernando Abreu.
In Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu.
Record, 2012.
 
*************
Tenho medo e... 


invento este silêncio tonitruante,
indecifrável imaginário
Invento horas e dias me manietando à prisão
Invento o escuro da noite
para o sono dos meus olhos cansados
Invento janelas oblongas e vazias
sem floreiras nem beirais,
sem paisagens ao longe
Invento jardins sem flores
Invento flores sem cores,
sem perfume,
a flor cheirando a estrume
Invento a sede de respostas,
por pequenas que sejam,
mas que sejam verdadeiras
Invento a rede
para embalar um poema
Invento a tarde
esconsa pelas sombras
que se deitam pelos cantos
Invento um céu sem estrelas
Invento estrelas sem céu
Invento o vento passando,
derrubando meu chapéu
Invento um mar origami
para os meus barcos de papel
Invento um sol álgido e escuro
Invento a lua pardacenta e fatal
Invento a sombra subindo pelo muro
Para que peses e ponderes
invento o bem e o mal
Invento a pedra sensível
Invento a dor autofágica
e palatável
Invento a culpa,
o grito
Invento um Deus arrivista
Invento o papa anarquista,
meio proteu,
meio artista
Invento o tempo macambúzio
Invento olhos vazados para não ver
Invento a fome e o dente
para mastigar lentamente
os restos que caem das mesas
Invento a dúvida
e desdigo tantas certezas
Invento esta côdea mendiga e mofada
Invento a personagem que vos fala
sem dizer nada
que vos toca,
que vos mente,
tão vil e sinceramente
A personagem indolente,
imarcescível,
demente
Em contra partida
a vida me inventa incognoscível,
maniqueísta,
dual,
entre o claro e o escuro,
sem lastro sem porto seguro,
entre a sombra e a luz,
infame
A vida e suas garras de pus,
A vida rampeira,
indecente,
traz consigo este gosto afogado de mar,
esta razia de opostos
traz o inferno sulfúreo
e sob a névoa a euforia bipolar

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Fragmentos

Gazel fluviante
 
Enquanto dormes, fico a contar
as cores do teu rosto, o fluvial
corpo levíssimo no sono, chilreando
as pernas verdejantes, fogo,fogo
que vai plantando o inverno. Enquanto
dormes, fico a discorrer as falas
da tua imóvel boca. Cabisbaixos
os pés apenas tocam, os lençóis,
e a alma toda, um corpo, somos nós.
 
Carlos Nejar.
In Poesia reunida II, jovem eternidade.
Novo Século, 2009.

 
 
Enquanto dormes dedilho as cordas do teu sonho
ressoando junto ao que em mim falta de ti,
junto à espera e às mãos em silêncio
cúmplices anônimas das florações
que dão cores ao dia,
dão perfume à flor que brota nos jardins desta vida compassada
e voz ao canto alegre das crianças
Dão ao dia vislumbres de eternidade
e recriam a aurora consoante a face de ébano da madrugada,
e a ternura imanente ao gesto intangível 
que transforma o teu nome
na ilusão indelével e ausente que ficou
meigamente enternecida no pouco que sei de mim
Foi tanto medo
e um inverno de cores densas
O amor que suplicava à noite que não se fosse
e suavemente sentia o sopro da brisa da manhã bruxuleando a luz das estrelas
Teu nome que a brisa sussurrava entre as acácias e os instantes tímidos do dia
E que os meus lábios espreitavam
sem se atreverem a dize-lo
posto que tudo foi fantasia
Fantasia o que não teve fim,
fantasia o que sempre foi noite
resvalando das inconsúteis lembranças que se derramaram de jarros antigos, 
entre verdades e mentiras
e tantos véus turvando a visão e esboroando sonhos
 
Amanhece, e as boninas ousam ser
mais amarelas e vermelhas
do que o sol que se alça de chama em chama
aos teus suspiros, somente 
A noite desperta cansada de ser escura, e se esconde,
enquanto a luz da manhã flutua
inocente em teus cabelos
e brinca travessa com a eternidade fugaz da manhã azul,
efêmera e diáfana
Bela, quando ao passar lá fora faz caminhar as sombras
e girar os girassóis

Amanhece,
e o dia vai deslindando-se pouco a pouquinho
Intemente, rabisca o crepúsculo
sangrando o sol,
avermelhando o mar,
rolando os seixos,
suspirando alcovas,
arrastando folhas magoadas pelo ar,
enquanto o orvalho soluça deslizando nas folhas geladas e quietas
e a vida espera em silêncio um linimento para o "nonsense" da existência,

O poeta, com sua alma ébria e antiga,
escreve verdades e mentiras e cata cacos e fragmentos de solidão,
pespega estórias banais
e se reconhece
nas merencórias e mal traçadas linhas
de extraviadas e esquecidas cartas de amor,
naquilo que o amor, redivivo, chamou de sonho,
naquilo que a vida, diletantemente, chamou de dor

domingo, 5 de outubro de 2014

O tempo está morto

Passou o tempo
Passei eu
Passamos todos nós
Passaram as árvores na estrada
que vai de lugar nenhum a nada
Passaram as minhas estórias nas noites que dormem nos livros,
na folha seca amarela-dourada do outono à espera das borboletas,
na folha cônsona ao sono,
na insidiosa e consabida agonia
Passou o aroma da flor na brisa azul da razia fria do dia
Passaram as cores do dia nas flores da cerejeira
Passou a essência do sândalo
nos lençóis postos de lado com os pés,
carinhos esquecidos sob fronhas de linho e organdi,
sussurros murmurados tão docemente,
miragens de um amor que já não comove
Passaram as pedras seculares dos caminhos,
das torres açodando os céus
que amanheciam entre a neblina e as gotas de orvalho
solitárias caindo com o vento no chão da manhã
Passaremos muitas vezes, sondando o que veio antes,
prenunciando a ilusão do futuro,
e nos perderemos ao nos percebermos sozinhos,
inelutavelmente sozinhos,
tentando descobrir da onde vimos
para onde vamos
Aonde estão as arcádias para nossa moradia?
Passou a vida,
pequena demais,
fugaz demais,
frívola demais
A caliça da existência pretensamente eterna,
incomensuravelmente friável
Passou o tempo,
criando séculos, histórias e estórias,
a adaga esquecida da memória
O tempo exaurido e asceta tartamudeia preces
aos Deuses silentes
criando e recriando pétreos mundos,
eis que basta o pó para que haja estrelas e planetas
e galáxias tão distantes para aonde irei pra me encontrar,
como o filho e a dor do filho ausente que um dia volta ao lar
O tempo avaro manquadra sobre o que te digo sem saber,
sobre o poeta que não sou,
conciso,
esboroado,
ausente e deposto
Lavo com as lágrimas o meu rosto
e rego a flor da melancolia
O tempo não passou...
                                   ...o tempo está morto
Donde vem esta agonia?