sábado, 21 de fevereiro de 2015

Quando não houver mais perguntas


Ao encontrar um mestre Zen em um evento social um psiquiatra decidiu colocar-lhe uma questão que sempre esteve em sua mente:

"Exatamente como você ajuda as pessoas? Ele perguntou.

"Eu as alcanço naquele momento mais difícil, quando elas não tem mais nenhuma questão para perguntar", o mestre respondeu

Contos Zen
www.nossacasa.net

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Quando não houver mais perguntas
É hora de abrir as janelas
Colocar os olhos no céu
Tirar os olhos do chão

Quando não houver mais perguntas
É hora de pôr os barcos no mar
Fincar os pés e as mãos no rochedo
Prostrar-se, a testa no chão

Quando não houver mais perguntas
É hora de confrontar a ilusão do tempo
Tirar da areia o espelho baço e opaco
Deitar a cantilena dos pensamentos ao chão

Quando não houver mais perguntas
É hora de olhar o céu vazio e profundo
Tirar o escuro da noite
Recolher as sombras que caem ao chão

Quando não houver mais perguntas
É hora de se vivenciar a vida e a morte
Tirar a fadiga do medo
Ligar os sóis e os mundos ao chão

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Um instante e o silêncio


o silêncio recomeça de onde o desejo inclemente parou
e caminha sutil
vindo lentamente da mansuetude repentina dos sonhos
e da alma pacificada
carinho demorando-se nas águas e pedras e na intermitente vida
transpondo a grande distância entre o sentir e o falar
nuvens lambuzadas de azuis e ilusões
cobrem a vida como um alcobaça
cobrem-me e desinventam palavras e obliteram gestos
fecho os olhos
as cores adormecem, esbatem-se
na brisa que passa e respira abandonos
tudo é segredo, sensações e sentimentos
é de imagens translúcidas e de fluida eternidade o meu mundo
os pensamentos, irremissíveis, desnudam palavras
e o sentido das palavras é
fitas coloridas enfeitando árvores na noite escura
acesa pelo vazio de um sol desfeito em clausura
e pelo peso dos borrões de luzes vermelhas, laranjas, lilases
os pensamentos são nuvens silentes que passam e badalam como sinos
em indefinidos momentos que nos ultrapassam
pássaros de uma outra realidade sensível e estridente
antiga e incognoscível
de palavras e signos avoengos que se dizem a si mesmas
novamente me chamam, monótonos e insistentemente
como cigarras ciciando até morrerem
não respondo
os pensamentos retornam como armadilhas estagnadas
de onde vem e permanece o cicio adocicado
como um poema que anda sem pressa
colhendo as flores miúdas da alma?
antes não fosse em mim aquele medo
antes não fosse em mim as padecentes sombras
a dizerem:
"amor, amor, amor..."
sem que haja um som sequer
o amor pôs-se à espera: voo de pássaro em gaiola
poema misto de tempo e ausência de tempo
silêncio
quantos poemas ouvi?
quantos poemas se alastram pela palavra "amor"?
e o homem comum, engolido pelo precipício da pressa,
só enxergou vazio, tristeza e espinho
um rio, com voz seca e larga, canta o movimento dos caminhos
a musica se repete indefinidamente
sem pressa
as águas, costuradas à correnteza, carregam o assombro
e a suavidade das paisagens delineadas a nanquim
retas, curvas, ângulos, círculos e semicírculos
dentro do vento
as letras prontas e abertas
esperando o aconchego calado dos versos
enfim
sinais
para que se sentisse e se soubesse que
para se dizer e escutar o amor basta um instante
e o silêncio

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Para se ouvir no silêncio

"Apenas no silêncio
o amor
se diz e escuta"

Mia Couto
In Tradutor de chuvas, pag. 87, Editora Caminho, 2013.


Te amo. Com este mesmo gosto inocente se sem culpa de menino.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Tanto dizem de mim

 
EDITAL
 
Por este instrumento faço saber
que é verdade
o que de mim dizem.
É verdade o que alardeiam os inimigos
e os amigos enfatizam.
Sou tudo o que me pespegam.
 
Quando me acanalham, é verdade,
e é verdade
- quando me embalam.
 
Jovem, indignado,
tentei com engenho & arte
separar do trigo
a outra parte.
Já não consigo. Renegar o joio
é ter o trigo empobrecido.
Quando me atiram pedras é justo.
Quando me atiram estrelas, quem sabe?
Não vou de mim, de vós, viver a contrapelo.
Sou como Ulisses
na ida e no regresso:
a soma dos descaminhos
a contradição em progresso.
 
Affonso Romano de Sant'Anna
In Epitáfio para o Século XX e outros poemas. Ediouro, 1997.



tanto dizem de mim
e cada um a seu tempo e seu gosto
e cada uma com a sua verdade resignada
e cada uma com a sua vontade e propósito
conforme a luz que chamusca seu mundo
sou a palavra dita assim
sem cessar
debruçada sobre o vício
ou sobre a virtude
silêncio entre elogios
e palavras em ruínas
 
nas horas tardias
que ficaram do outro lado
distantes e sós
qualquer cansaço é sentido
qualquer mistério é refúgio
qualquer ideia é prisão
qualquer discurso é obscuro
qualquer pedra já é muro
qualquer coisa dita é insígnia
qualquer pássaro é este vento
voltando pra casa lentamente
sou o que a palavra consegue
despir de mim
devorando insaciável as notas invisíveis
que anotei no reflexo do ruído dos espelhos
espalhadas em meio ao caos que sou
 
de tantas maneiras a água desce
e ressoa distinta nesta descida
até encontrar o rio ou o mar
até encontrar as raízes dos pinheiros
e incendiar-se nos fogos da compressão das margens
assim como as águas
sou o que as palavras descem
até encontrarem-me, mar ou rio
de sentimentos desatentos e contraditórios
e evocam ao desespero de quem as ouve
surdamente
ou leem com a paciência prisioneira dos dicionários
sou o silêncio dos que não me conhecem
e nada têm a dizer de mim e, portanto
a eles não sou nada antes que possam me rotular
e frequentar minha vida como um vento árido
e transpor para as minhas dores
as dores que eles sentem
 
o que sou é o que dizem
os sons cheios de admiração e afeto
ou de desprezo e de um insopitável desdém
sem mais, nem menos
sou como uma noite de estrelas:
todos os pontinhos tiritantes
fragmentos de mundos díspares e oblongos
chuva desnuda caindo numa primavera escura
fazem parte da verdade da noite e seu céu


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Viajar

 
Viajar, para que e para onde,
se a gente se torna mais infeliz
quando retorna?
 
Waly Salomão
In Poesia Total, pag. 224, Companhia das Letras, 2014.
 
 
 
 
tantos caminhos possíveis para se chegar ao mar
e, de repente, não se chega
o mar foi engolido pela tocaia da noite
evaporou-se na luz infrangível do sol
tantos destinos escondidos nos postais
de antigamente
e nas saudades que me esperam
em ingênuas  miragens
de ingênuos mundos, que esquecidos,
orbitam eternos dentro de mim
portos aflitos
ardem no tremor da despedida dos cais
cidades ocultas
pela neblina que sublima e se funde ao céu
terras onduladas acabando no mar
o tempo tão escasso
o tempo desconhece o sonho
e a alma infantil e insonte
ir traz a ansiedade da espera
de se chegar ao destino que se escolheu
voltar traz a sensação
de que se deixou os sentidos
em rios
tão longes
em ilhas
e suas palavras noturnas
numa lua
roubada ao céu do meio dia
nas nuvens catitas
içadas ao mastro da noite derradeira
no cansaço de um hotel
ou em alguma varanda
onde a chuva criou cenas translúcidas
e o viajante, olhando em volta, pergunte:
onde a resposta pra tudo isto?
o vento flutua e rodopia
farfalhando como papel
a distância não me devolve
como quando parti
quem volta é outro
e a tristeza de haver morrido
dias e noites
tentando sustentar
o que o engano insuspeito disse que eu sou
põem-se inextinguível em meus olhos
que retornam sem nunca terem saído do passado
intocado e incognoscível
retornar e trazer as sombras
e os espaços por onde mistérios
e pássaros cegos de longuíssimas asas
espreitam um tempo de ser infeliz
e as águas do lago já não refletem o céu azul 


terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Quanto amor

 
Na vida, não importa quantas coisas maravilhosas
Você é capaz de fazer,
Mas, sim, quanto amor você é capaz de pôr
Em cada pequena coisa que realiza.
 
Enio Burgos
In O Semeador de Imagens, pag. 15, Editora Bodigaya, 2005.
 
 
 
Quanto de amor está presente naquilo que a gente faz
se tudo se faz sem passado ou consequência
ou numa parvoíce desatenta?
Às vezes lembro-me de sorrir às pessoas
e pássaros voam e vão pousar nos pendões do trigo
que tremem ao sol e deixam cair sementes
Raramente as ouço
Olho-as, mas não as vejo
São as nuvens de ontem que passam
e apagam sóis e derramam chuvas
que os espantalhos bebem com suas sedes imóveis
O mundo é um grande alcobaça
encobrindo os insondáveis corações de tanto sentimento
O que cada um tem pra mim no íntimo da sua madrugada?
Não basta ter e/ou sentir amor, é preciso expressa-lo
É preciso amalgamar o amor aos átomos
Talhar com amor o dia-a-dia
Sem pressa
Suave/mente
Sútil/mente
E/terna/mente
Há um mundo diferente esperando gestos de amor
E a recordação do silêncio que ainda não aconteceu
E do grande amor que nos trouxe aqui
Apesar do nosso medo
 
O amor é um sopro morno
O instante quando o homem é singular e divino
O amor é essência
Premência
É o aroma das flores
É a eloquência dos sinos
Alforriando corações
É o vento passando, refrescando o momento
 
O amor é palavra antiga
mas o amor não está na palavra
a palavra é só palavra
signo
som articulado
Silenciosa
Despovoada e vazia
Fragmento das sombras e dos enganos
Que se locupletaram em meu peito
 
Tateio a vida, mas não a toca com amor
Falo de amor, escrevo sobre o amor, mas minto
Nem bem acorda o dia
Meu amor se comove, mas não se move
O amor em mim ficou ardendo na solidão
e no abandono
das cartas que nunca mandei
da poesia que não consigo escrever
do céu constelado pelo qual me encanto
e que só posso olhar e sentir sem tocar
da tua lágrima que eu nunca sequei
do choro dos sonhos e das sementes
da tua mão estendida que eu nunca afaguei
da tua dor e a tua nua pobreza cheias de resignação
desta sensação que me toma
e fecha meus olhos
e me enche de mundos e coisas possíveis
 
Esquecer a palavra
Desaprender a culpa e o medo
Manter os olhos abertos
O coração desperto
Despertas a compaixão e a ternura
Repetir o gesto e o gesto
Dar de beber aos Deuses
Que em nós habitam
Trazer o amor de volta pra casa
E fazê-lo acontecer na vida
Motivo soberano
Suave
Acontecendo entre o humano e o divino


sábado, 7 de fevereiro de 2015

Instante de mim


Assim como quem marcou um encontro,
antes de compreender o tempo
às tantas horas dos tantos dias você estava lá
na praia do Moçambique
na tarde antiquíssima e insonte
de horas ausentes
de areias tardias e trêmulas
como se não houvesse tanta saudade no tempo
e o acaso fosse o momento onde o sonho
andasse pelos caminhos da alma
e falasse a voz da eternidade
como se houvesse só a canção ouvida na chuva
a nostalgia somente
de uma tarde na qual nos esperávamos há tantos anos

nossas palavras e gestos tão
quietos
nossos olhos que adormecem nas tardes como os
girassóis
nossos lábios que dizem sílabas e sons
solitários
segredos escondidos nas fogueiras acesas
iluminando e aquecendo a nossa noite
nossas mãos singelamente entrelaçadas sobre
o nada
nossos passos a caminhar pelo mesmo momento
Me diz!
Me diz!
em quantas outras existências impermanentes já nos
encontramos?
e por quanto tempo vivemos a solidão inacessível da primeira
estrela?
os dias e os anos caindo segundo a segundo sobre as nossas pálpebras
cerradas
sobre a nossa espera

você chegou, instante de mim
esqueço pensamentos e medos
te abraço, e sinto o teu corpo deslindando o que sou
onde o silêncio guardará as palavras que te digo?
com qual memória?
onde o tempo guardou o primeiro dia?
onde esta ternura interminável vai guardar
a saudade imensa de cada dia?
onde o céu guardou a nossa chuva e as nossas sombras molhadas?
aguardemos, amor, que as flores perfumem a aragem
dissolvida na noite infinda
e os véus do passado sejam a doçura das frutas que os pássaros trarão
aguardemos o vento passar trazendo o rio ou o mar
e segredos que apanhou por aí
amor,
sinto saudades e sou só lembranças
dos tempos que ainda virão

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Minhas vidas fui eu que fiz

 
Há os que atiram para tão longe
Quanto os céus e os astros,
Ou mesmo para vidas passadas
A responsabilidade por seus infortúnios,
Por seu destino, por sua vida...
Numa atitude sem transformação, sem crescimento...
Melhor conduta é observar, atenta e radicalmente (pela
[raiz!),
A realidade da vida em si mesma...
Examinar a sociedade, aqueles que nos rodeiam...
Esta atitude revolucionária requer, sobretudo,
Um olhar mais que profundo
Para dentro de nós mesmos!
Mas é preciso coragem, toda coragem
Para abandonar as fantasias que tanto nos embriagam!
 
Enio Burgos
In O Semeador de Imagens, pag. 7, Editora Bodigaya, 2005.
 
 
 
As minhas vidas fui eu que fiz
com as minhas tantas ignorâncias,
com as ilusões que trago no gosto travo do vinho
bebido nas esquinas do ontem,
com a minha soberba:
fuga e medo,
voragem,
folha ao vento,
tolo,
sem rumo,
em letárgica suspensão,
em adiantado estado de degradação,
embriagado pelos prazeres, desejos, concupiscência
vi a vida entardecer sem sentido
vi as vidas morreram tantas vezes
e tantas vezes, em si mesmas, refletirem as velhas imagens do espelho
vi as madrugadas postas em espedaçadas ilusões
que o escuro engoliu
não posso alegar que não sabia, não sei
o que a  minha alma aspira
há flores nas veredas que a chuva matutina teceu
não consigo entrar no riacho sem  molhar os pés,
sem sentir o toque firme e macio dos gorgulhos
há tanto passado movendo o presente
há tanto segredo interpelando a solidão das épocas
há tantos mistérios nos silêncios das palavras que voz nenhuma dirá
há os dias que são a expressão das minhas escolhas
o destino dá à semente o que a semente é
o tempo corrompe o devir
e seca as flores da janela abandonada ante o desespero dos tantos pecados
os pássaros voam
carregando o crepúsculo para a poeira das águas
tudo voa, se assim escrevo com minha verdade e meu pranto
e repito no ar o gesto com a mão
mimo todos os sentidos
tudo ilusão
meus olhos estão cegos de tanta ilusão
perdi-me, matei-me, respirando o ópio dos desejos
perguntando o "aonde da realidade?"
e outra vez é janeiro e um vermelho esquecimento
encheu de figuras meu reino
e as noites gritavam sentenças
no escuro do quarto
deitadas comigo
há dentro de mim um mundo sem entendimento,
um sentimento a discorrer poemas, gotas da alma
de quando em quando abrem-se portais
e vultos vão às margens dos rios escolher palavras,
num quase silêncio,
somente um sussurro
sibilando dentro da solidão dos dias e das noites
e dos mundos por onde caminha a verdade
expressando a incoerência fria entre as palavras e os atos
É preciso coragem para deslindar a alma
É preciso coragem e o coração pegando fogo
para o gesto portentoso e inesgotável do inicio
É preciso a inteira emoção inteira para suplantar as fantasias
e o mundo insaciável dos desejos


segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Aonde eu estaria

Acordo
penso em você
penso onde eu estaria
neste dia e nesta hora
se meus braços não tivessem
enlaçados a tua cintura e aos teus gestos?
Aonde eu estaria se meus olhos ainda soluçassem
a tua ausência e o teu silêncio
e a minha boca passasse as estações
sorvendo o mel que era a tua primavera?

Ainda é fevereiro na clausura do tempo
nos regatos consumidos pela nudez das tardes
pela solitude dos ventos
Ainda é segredos na inexorabilidade do outono
que dorme sob o céu cinzento ali mais adiante
aonde cantarão barcarolas os inexprimíveis pássaros
e a vida se aquecerá cheia de encanto,
por que te gosto
Ainda é demora a palavra que te conhece
e que espera na minha pele a tua pele
noites inteiras guardam teus segredos
tão antigamente pra mim
quando passa o verão
vermelho e cobre e diz teu nome junto à minha janela

Penso...
aonde eu estaria
neste dia e nesta hora
se o amor é vasto e louco
e basta apenas um pouco
destas águas afogadas na tua entrega
como um rio engolido pelo mar
para que eu me sacie em teus caminhos
que agora, suavemente,
levam-me à noite que sempre vem
junto com teus cabelos molhados,
teu corpo suado,
junto com o silêncio dos teus olhos
e o barulho do mar a nos embalar
levando cama e corpos e esta canseira boba,
este exílio momentâneo da vida

Aonde eu estaria
neste dia e nesta hora
barco aprendendo chuvas,
mares demorados,
areias ancoradas ao destino,
olhos cansados,
as mãos presas ao passado
que envelhece interminavelmente

Quando tu vens?
não me esqueça dentro dos espelhos
na praia anoitecida
no silêncio
despido de perguntas
ocultando sílabas,
cortando o ar
não diga "te amo"
se não queres,
se não é assim que sentes
e se no amor há tanta insensatez
nem diga loucuras afins,
não embale a minha agonia,
menina da praia do Moçambique

Vem...!
Que todos os astros falam de nós,
e só tua boca, só o teu corpo
sabem dizer o que eles falam de nós

Vem...!
Que escolhi pra te amar os versos mais puros
que encontrei na madrugada
eivada de ternura

domingo, 1 de fevereiro de 2015

A presença ou a ausência do amor


Há os que sofrem por amor
E entregam-se ao gozo das lágrimas
Remoendo no espírito uma dor infinda...
 
Há os que sofrem por medo de amar
E entregam-se ao gozo das lágrimas
Por remorso e arrependimento
Pelo que não tem coragem de enfrentar
Amargurados por mil infortúnios interiores...
 
Há os que sofrem por não amar
E Entregam-se ao gozo das lágrimas
Pela solidão e pelo vazio que deles se apossa...
 
Todos, entretanto, a sua maneira
Bebem a cota que lhes é cabida,
Construindo, no sibilo da noite sorrateira,
A esperança da humanidade
A força interna da vida...
 
Enfim, há os que sabem amar
E, por eles,
A humanidade persiste.

Enio Burgos
In O Semeador de Imagens, pag. 16, Editora Bodigaya, 2005





o que me intriga não é a presença ou a ausência do amor
o que me intriga é o que esta presença ou ausência fazem de mim
abre as portas dos séculos para a névoa que encobre mais que um olhar hesitante?
faz ausência, ânsia, lembrança, cada dia mais distantes?
coloca borboletas no céu, enchendo o silêncio de ruflar de asas?
ata-me aos atavios da vida falaciosa e fútil?
prende-me ao sonho dos homens cegos de si?
torna-me cativo da ilusão?
carrega-me de mim?
 
estou longe de casa
correndo campos de frívolas promessas,
quimeras e devaneios,
falaciosas sensações
mas, daqui vislumbro as portas e janelas abertas
da casa que me espera,
com seu telhado encantado de telhas de barro vermelho
com os segredos escondidos no quintal
e um jardim aberto onde nascem os ventos
e brotam todas as flores cujas cores sequestram o olhar
mesmo quando não a vejo no escuro das farsas,
ela está lá
é a minha casa
e eu estou tão longe
perdido em enganos
um dia a habitarei
e ouvirei a chuva no telhado de telhas de barro vermelho
e cuidarei do jardim
e juntarei aos segredos do quintal
os segredos que há em mim
 
meus passos caminham bêbados e trôpegos
acorrentados ao passado,
sem entender o presente,
morrendo impressentidos
ante o futuro construído a cada ação,
a cada gesto, desejo, medo
 
meus pensamentos ondulam como a folhagem ao vento
quando as manhãs surgem das lembranças
olho para as águas do lago onde o céu descansa o azul
as sombras das nuvens apagam o céu no lago
assim como as paixões apagam o amor no coração
a lascívia,
a sensualidade, a libidinagem,
não são o amor
são jogos de posse e poder
cinzas recentes levadas por um vento quente
as lágrimas choram as iniludíveis fantasias e taras,
agonizam num gozo narcotizado
o instante cresce dentro do escuro e me alcança
sombra espessa
rostos e corpos de ninguém
no fundo do quarto,
sobre as minhas escolhas,
uma rosa negra deita sua sombra no chão
onde antes um fiapo de luz levitava partículas no ar
como uma alma sustentando o corpo no tempo/espaço
 
intriga-me a ausência do amor...
não do amor com gosto e efeito de droga
mas, do amor transformador
o amor que cante cantigas
o amor que me deita na grama
e sussurra carinhos nas sombras lilases do vento
o amor indelevelmente ternura
o amor feito origami
em delicadas e precisas dobraduras
o amor cuja a beleza está em não ser nada além de amor
o amor sem fúria animal
sem a vassalagem feudal
o amor que não se compra, não se vende e não se troca
o amor não negaceado
o amor que não se define
e que não se definha
o amor incondicional