quinta-feira, 30 de julho de 2015

Lava jato


Diz a aclamada sabedoria popular que
em tempos de lava jato
como em tantos outros "escândalos"
quem paga o pato é o povo
Será?

Somos o pato e o povo
o povo amnésico
o pato apoplético
doente
demente
crente
que esquecemos o passado tão de repente
e o mesmo trambique de ontem hoje nos parece novo

Somos aquele povo que se diz tão esperto
que se tem trambicagem se não estivermos envolvidos,
pelo menos estamos por perto
o povo pato
o povo rato
o povo sem eira nem beira
servindo-se da xepa da feira
o povo avestruz
que engole a vida sem mastigar
que na hora do pega pra capar
procura o primeiro buraco para a cabeça enfiar
que pensa que sabe pensar
e, sejamos justos, chegamos até mesmo a pensar
porém sem nenhuma clareza
quando nos danamos a pensar é só tramóia e safadeza
que vantagem vamos tirar

Somos o pato povo
deitado em berço esplêndido
rangendo os dentes
entre um talagaço e outro
num assomo de austera
e auto-decantada malandragem
rangendo os dentes
sem nunca morder quem nos submete
Não reclamamos nem protestamos em alto e bom som
provavelmente para não acordar a ira dos poderosos
só resmungamos
desembestamos a resmungar num solilóquio tacanho e vão
do "escândalo" do momento
não atinamos com as seculares mazelas
fáusticas e arraigadas no caráter nacional
ou, melhor dizendo, na falta de caráter nacional
choramingamos pelos cantos
nas rodas de amigos
que só resmungam também
dizendo
amém
amém
amém

Somos uma gente opilada
tapada
tartamudeando inerte
o sempre mesmo ramerrão
sempre a mesma ladainha
que a vida seria boa
não fosse o político ladrão
não fosse a política mesquinha
não fosse Vossas Excrescências (Eleitas por nós, diga-se de passagem)
não fosse o papa a rainha
não fosse o outro gatuno
não fosse o outro o que é
tudo de ruim é o outro
numa auto-crítica chulé
esquizofrênica
que nos exila da bancarrota moral do país
cada um se acha o mais correto
o mais apto a meter o dedo na cara do descalabro
panteão da honestidade
baluarte da moralidade
gente tão ilibada assim por aqui nunca se viu

Vassalos, a maioria, da lei do menor esforço
da lei de Gerson
do jeitinho canalha a tão brasileiro
este jeitinho brejeiro que ri insanamente de tudo
este jeitinho que sepulta a vida com uma grande pá de cal e piadas
onde todo dia é dia 1º de abril

Acomodados
braços cruzados
esperando...
esperando sentados pra não cansar
esperando que um Cristo enxovalhado e morto
pela voz e a decisão de um povo que bem poderia ser como nós
que bate no peito e se diz temente
católico apostólico
fervoroso crente
de bíblia na mão
e o cramunhão na mente e no coração
e que hoje range os dentes
destilando fel
jogando merda ao vento
esperando que um Cristo
venha nos tirar deste profundo desalento

Somos um povo dissimulado e hipócrita
que passa pela vida sem atinar
por sublime, preguiçosa e crassa ignorância
ou por leviana conveniência
que a vida é um grande espelho
onde a imagem que nós vemos não é a do outro que nos fita
é a nossa própria imagem vista pelos nossos olhos
convenientemente esquizofrênicos
buscando elidir de nós o mesmo comportamento sacana
que no outro salta aos olhos
agora sem esquizofrenia
e para o qual faltam bocas para acusar
Somos um povo que vive de proclamar as vilezas do mundo
como quem não tem nada a ver com isto
Um povo que de tão desatento
ainda hoje entre Jesus e os ladrões
crucificam o tal de Cristo
e depois ficam esperando que um Jesus vilipendiado
pela (falta de) memória de um povo igual ao nosso do brasilsão varonil
"malandro", cambaio e servil
desça da cruz
e sub-repticiamente resolva nossos problemas
e ainda vá tirar satisfação com nossos detratores

Neste arruado de espertos
tão farto de salafrários
onde o que falta é otário
em cada esquina nos espera
algum conto do vigário

Somos um povinho que se proclama "esperto"!!!
que olha a vida com olhos gastos
e de soslaio
que diante dos "poderosos" abaixa a cabeça
e põe os olhos no chão
cegos e perplexos
enfiamos o rabo entre as pernas
submissos como o mais obediente dos cães
com uma enigmática ojeriza para pensar nossos problemas
sem atentar para os caminhos
luzindo de tão óbvios
Sem sequer cogitarmos a possibilidade
de acender a luz para sair da escuridão
Mancomunados com a apatia
e com uma cômoda inércia inata
quedamo-nos moucos e calados
à gargalhada sarcástica e impiedosa
dos eternos e inextinguíveis senhores feudais
(sempre atuais graças a nossa pasmaceira geral)
diante do nosso gemido estudado
falso e supliciado

Grande parte de nós tende a serem mudos vassalos
servos submissos
lacaios empedernidos
sórdidos
embriagados pelas aparências
de uma mansuetude e obediência canina
com suas almas ausentes
trôpegos de tanta vileza
fingindo asco
e lambendo os testículos daqueles
que os põem a andar de quatro
nus de si mesmos
e sem dignidade

Somos um povo sem memória
e sem moral
um povo, de fato, morto
que se esqueceu de deitar
que dormiu dentro do ônibus
e só acordou no ponto final


Enquanto isto, uma voz de arquibancada ecoa em tom de verde e amarelo:

Ah! Eu,
Sou brasileiro
Com muito orgulho
Com muito amor...ôôô

Moral da musiquinha infame:
Quem canta seus males espanta

Comentário da moral da musiquinha:
E mantêm-se néscio, distraído e com espírito ovino

PS: Onde lê-se "Nós", entenda-se a grande maioria da população
       A generalização seria leviana.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Quando


Olhando nas faces da vida e da morte
chorei ambas
Morrer não é apenas a ausência que se faz
a madrugada repentina
Não é simplesmente fechar os olhos
sem lágrimas
Não é só o silêncio esquecido nos lábios
A morte é o cárcere do instante que passou
inocente, tenso, translúcido e luminoso
como são inocentes, tensos, translúcidos e luminosos
os instantes todos dos dias
E eu clamo, então, pela vida
e pelas flores de mais um amanhecer
que me toma as horas no despudor das manhãs
que, ignorante e desolado, não entendo

Há esta dor no peito da noite
se noite houvesse
e não houvesse estas jaulas sedentas de liberdade
e não houvesse medos e muros dentro dos instantes
ansiosos e atormentados
acobertando o mistério e o segredo
de tanta solidão pousando envolta em enganos
na trama ingente da vida
e nas flores brancas dos jasmineiros
E que tudo não fosse apenas a cambiante imagem
de uma desmesurada colagem
montada em conúbio sobre a areia e a agonia dos ventos

Tudo o que digo são as palavras que meus lábios buscam
quando a brisa sopra
quando me afogo em mares semoventes
quando a chuva cai
quando nasce a flor
quando o filho dorme
quando lembro de chorar
quando esqueço de sorrir
quando apago a lua
quando apago a luz
quando fala a noite
errando em meu quarto
quando vem o amor
quando o amor se vai
e fica tanto adeus
e fica no tempo este exílio
que fito dentro do espelho

O que penso saber é o que foi dito
e o que foi dito aquieta-se
nos milênios incontáveis
em caminhos fatigados e distraídos
e, então, começa o silêncio ensimesmado
começa o outono de folhas caindo no colo da poesia
começa o retinir enganoso das horas
amadurecendo os anos
os danos e as ilusões
começam os jardins
sem flores da tua ausência
de resto
eu nada sei

domingo, 26 de julho de 2015

A cidade entardece


A cidade entardece
faz-se cantiga
ritmo
concerto
harmonia
no bimbalhar dos sinos
na hora da Ave Maria
A cidade enternece
em incipientes jardins
no canto invisível e desmesurado dos pássaros
ressoando nas árvores mal termina a madrugada
A cidade é súplica e prece
carpidas no recôndito de memórias ancestrais
no mimetismo do destino
A cidade envelhece
irrequieta menina
frágil senhora
idosa olhando o branco infrangível dos lírios
o viço da relva
o róseo perfume prenunciando a primavera
o poente sendo levado para dentro da escuridão
A cidade mente
despudorada/mente
incoercível/mente
inelutável/mente
inte/mente
A cidade treme
diante dos clamores do vento
A cidade é corrupta
parasita
pervertida
extorque a morte
locupleta-se de indeléveis sombras e medos
A cidade é arrivista
marginal
nunca tem ponto final
A cidade geme
sonâmbula
letárgica
roga piedade
a cidade
A cidade implora
demora
como o verso escondido na memória
como uma lembranças da infância
como o beijo e a carícia dos namorados
como o seio acalentando inefavelmente a mão
A cidade chora
antes de cair desmesurada
junto com as folhas das árvores
e o silêncio quieto do outono
A cidade é nervo-exposto
latejando dolentemente
A cidade enlouquece
cuspindo ruídos e sombras
A cidade esquece
flores felpudas nas janelas
abertas para a tarde afetiva e terna
esquece
segredos de lugares
distâncias temporãs
ilusões físseis
A cidade grita
aflita
solitária
entesada
A cidade se encolhe
quando o inverno chove
sobre o casario e a claridade
como um punhal gelado
A cidade rosna
para a vida que passa
nas rodas dos veículos
A cidade abriga a massa
amorfa
indolente
vitimizada
estigmatizada
impotente
inerte
abusada e violentada
em nome de uma pseudo humildade
A cidade sangra
sete dias
sangues de mulher
letárgica e despossuída
desvalida
A cidade segue à deriva
insonte
réplica transfigurada
aviltada
feudo de injustiças
submissa e  muda
A cidade diz poesias
em alarido
quando o vento passa na vegetação da praça
quando o pingo cai na poça da chuva da manhã
e círculos concêntricos aspiram a esfera
que espera e roça em ondas a superfície da água
a cidade declama poesias
durante os espasmos da hora do rush
durante a cadência da dança das luzes
nos longos caules das flores vermelhas e amarelas
dos faróis dos carros deslizando refletidos sobre o asfalto molhado
no rosto indecifrável da fadiga da existência
na delicadeza da máscara kabuki acentuando a doçura das tardes
na hora do dia indo embora na ladainha dos relógios

A cidade me invade
fragorosamente
num alarido
de cores
cheiros
e sons
que o vento lento e alheio carrega escondido
como uma ausência tristíssima
como o instante imperdoável de acordar do sonho
como o silêncio murmurando entre as palavras do poema
que não diz o que poderia dizer
e não enternece a impressentida meiguice da cantiga
cantada à toa para a solidão
para as ruas desertas
para as janelas abertas
espiando, serenas, o burburinho tremeluzente dos carros
uma cantiga
entoada pela cidade para uma noite sem estrelas
para um céu escuro e sem lua
para uma madrugada sem ventura
para um mundo andrógino e sem Deus
sem arrimo e sem muletas
sem lembranças

A cidade corre
escorre
e discorre
como o canto difuso das cigarras
zune
sibilando nas praças
tangendo as pálidas sombras das árvores
debandando pássaros
despetalando rosas

A cidade consome-se em momentos
de euforia e de aflição
A cidade entardece...
entre a síntese e a contradição

sábado, 25 de julho de 2015

A cidade acorda

 
A aurora telúrica banha mansamente os edifícios
com a tessitura branco rosada que traz os dias
A manhã embaraça-se à vida
mistura-se ao burburinho rouco da cidade
dissolve-se, gota a gota,
no orvalho que molha a flor e molha a máquina
A cidade acorda
sem saber ao certo
se estão longe ou se estão perto
os fragmentos do momento esquecido dentro do sonho
A miséria ainda dorme sobre papelões
sob as marquises e o concreto e maciço des(a)tino
atravessado pela indiferença
e o cansaço da solidão sem resposta

A cidade boceja longamente
para as ruas ainda desertas
para os faróis ainda ofuscados pela nudez da luz do dia
As primeiras luzes arrancam à castidade do nada um sol
grafado em inscientes vermelhos,
vertendo lilases e laranjas
incandescendo o horizonte
antes de ser a clara essência do dia

Pássaros trinam
e se lambuzam de sóis e de poeira
O ar se move
e desaparece nas ruas e vielas
As ruas andam os primeiros passos
As horas mordem e mutilam a vida
entulhando os momentos de mentiras

O bulício acorda a cidade
A cidade se apieda
dos sonhos que deixou engaiolados
nos ventos que tangeram a noite sem rumo
expostos à fuligem quebradiça e densa
A cidade espera
que a madrugada se dissolva
num espectro de cores novas e fugidias
absorvendo o crepúsculo
entreaberto sobre ruas, praças, viadutos...
A cidade é linhas
traçadas no espaço derramado nas plagas
A cidade é quase nada
é latente nostalgia
signo enigmático
ruínas adormecidas
brincadeira de faz de conta
A cidade é sombra amassada
é cacos e ruídos soçobrados nas esquinas
A cidade se ilumina
desbordando o dia
A cidade arde
no vapor e gases cuspidos
pela febre convulsa dos escapamentos
A cidade respira
o ar cinzento de aziagos e intangíveis gases
A cidade transpira fadiga
de mansinho
pelas frinchas nas paredes das construções
A cidade rumina
o ruído seco e difuso dos motores
A cidade vomita
gasolina e óleo diesel
A cidade urina
na neblina sem nome que esconde os postes
no que restou da escuridão

O carro que passa buzina
inconcluso
indiscreto
translúcido
dentro da neblina retorcida
e inaudível

Abro a janela apendoada de monotonia
e vem a cidade junto
e assenta um grão de tumulto e sublevada agonia
uma certa incerteza
de ruas por enquanto inconcebivelmente vazias
de calçadas ermas, passivas e abstratas
de caos
de quimeras
onde o vento carrega papéis e pontas de cigarros

A vida recomeçando do outro lado da janela
sutil e à toa
infinita e sem nexo
atemporal e esquecida
incapaz e confusa

A cidade e eu somos um
íntimo reflexo que se esconde
no lado cego do escuro
A cidade e eu somos o "x"
a incógnita soma do nada

sexta-feira, 24 de julho de 2015

A cidade dorme

A cidade dorme
Os jardins da cidade dormem
Dormem as flores e as pragas
embalam-se no afeto do vento
envoltas pela luz da lua
Dormem os chafarizes
sob um arrepio de estrelas
e os olhos cerrados das palmeiras imperiais
Todas as varandas e terraços da cidade dormem
Dormitam reposteiros e janelas
Dorme, esvaída, a vadia vergonha
A cidade sonha
sonhos esconsos e desgarrados
A cidade ressona
imperceptíveis segredos
manietando palavras
e o silêncio tátil que não sai nem tenta
enchendo a noite de apreensões
ardendo dentro dos medos
Sombras caminham pelas ruas vazias
penetram pelos vãos das mentiras
pelos desvãos dos telhados
mancham a neblina
tocam as vitrines
a efêmera nudez dos manequins
trocam de lado
Um gato preto salta para dentro do escuro
que se desprende fortuitamente do ar
Em cada esquina assomam mistérios
pervagando os cruzamentos
A cidade recende a pressagos silêncios
lugares já esquecidos
ao gosto salobro do mar
ao perfume suave e intenso da luz da lua
a algo entre a melancolia e a mansidão
ao astros acordados
com medo da solidão
enquanto dorme nas esquinas
o nada em meio à escuridão

Os muros ao redor do homem não dormem

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Toco


Toco os bosques e as matas
toco o tempo e as épocas
já me fiz barco, canoa,
veleiro, vento,
morada
de esvaídos pensamentos
toco o medo e sua fadiga
toco a noite e sua penumbra
que escorre pelas vielas
caminhando por entre o vazio
e o espaço onde antes havia um poema
com/passos encharcados de não ter sido
tudo demasiado longe
rasgando horas
dissolvendo instantes
cansaço
o tempo entornando medos e cismas
e velhas auroras
deixando pra sempre no ar
sua essência
e seus segredos
esquecidos os dias
que nasciam do rio
e no rio se acabavam
e(s)coando por entre as pedras
em diminutas mortes
esvaindo-se nesta descoberta
renascendo nesta rósea poesia
que a queda da estrela escreve
na extremidade escarlate e antiga do céu
incauto
terra pronta para a semente
lento caminho
onde azuis peregrinam
e arcas de nuvens improvisam rasantes figuras
esculpindo a forma
lapidando os fragmentos do horizonte 

Toco o som e o eco
toco o desejo e o asco
já me fiz desfiladeiro, penhasco
lago, rio
cachoeira
de evanescidas palavras
toco o menino e o velho
toco o fim e o começo
buscando o tempo oculto
atrás do tempo
ensimesmado pelas pessoas que fui
pelos olhos que me olham desde o passado 

Toco o amor e o silêncio
toco o exílio e o degredo
toco a sombra e o medo
atravessando insaciáveis madrugadas
carcomidas e escuras horas
em noites inexoráveis
enrodilhadas ao ávido abismo
ruminando amores
entre intenções
beijos que desperdicei
o ciciante aroma das noites
o íntimo perfume de mulher
o sopro de antigamente
rodopiando lentamente
e alucinando
as miragens e os desertos
por onde flutuam os caminhos em movimento
flutuam estrelas num céu solitário e onírico
flutua a lembrança do mar pervagante 

Toco a tristeza e a melancolia
toco palavras e as letras
toco os redemoinhos e a ventania
apinhados de poesia
se dispersando
em ausência

domingo, 19 de julho de 2015

Antes não era assim

 
Antes não era assim,
estes momentos indiscerníveis
tardios
espessos
cansados
só hoje é assim

antes não era o poema
não era o regato
não era a meiguice
não era o dilema
contido em tudo
não era a sombra da noite
a colecionar horas
não eram os olhos da Criação
e os redemoinhos prenhes dos quintais
só hoje

só hoje o regato escorre cúmplice das pedras
a meiguice afaga a face e o bulício dos meninos
emboscando lembranças que foi buscar no futuro
e no dilema singular onde crepitam labaredas
e os anos todos saindo de velhos baús submissos
acordando as madrugadas
bordando suspiros e imagens quiméricas
o dilema enrodilhando-se absoluto e desafiador
fecundando outro dilema
alaridos ondeando na cama
sem sono

só hoje
o silêncio alegórico das sombras
o tempo contemplando a solidão
os segredos
os medos
o pensamento,
mudo receio
despindo-se
dançando nu
na noite galopando rumo à claridade
portas
janelas
fechadas
namoro
o amor arfando
o beijo
o portão
a vertigem
acolhendo os corpos
seios e mamilos acariciando mãos
o jardim ondulando ao luar
emergindo da crisálida primavera
a rosa aberta em três versos
desmanchando a noite
manipulando perfumes
fascinando
inscrevendo sutilezas no ar
organizando a aurora sobre o mar

só hoje o poema se revela
e se arremessa como seta
como um tigre inefavelmente belo
incomensuravelmente ágil
emergindo furtivamente do meio da folhagem
antes que o vento o denuncie
salto
abandonado no ar
sonhos em fuga
para o tigre (ou o poema) não lhes pegar

antes não era assim...
não era...
só hoje

sábado, 18 de julho de 2015

Diz o poeta

COISAS ANTIGAS

Certamente que entre babilônios e sumérios
entre persas, egípcios, gregos e romanos
entre mandarins e samurais, incas e astecas
inúmeros
foram os que             
como os medievais, os renascentistas, os barrocos
e de lá para cá
incluindo os enciclopedistas
- que sendo racionais
tinham lampejos emocionais
certamente                                            
que todos esses
filósofos ou não                      
chegaram a conclusões
idênticas                                       
às que temos sobre a vida, o amor e a morte.
Independente das roupas e comidas
se viviam a beira-mar ou na montanha
se foram nobres ou plebeus
a sabedoria humana
resume-se a duas ou três pequenas coisas
difíceis de alcançar:
conseguir a casa e o pão                         
equacionar o amor e a morte                         
e constatar
que o poder                    
leva alguns a delirar                    
Coisas assim, tão comezinhas
que nos tomam a vida inteira
não para entender
- para aceitar.                           
Affonso  Romano de Sant'anna
In Vestígios. Pag. 89. Editora Rocco. 2005.
 
 
 
Diz o poeta que a vida toda é isto
conseguir
o morar,
o comer,
encaminhar a solução
do amar,
do morrer,
e a estreita constatação
de que alguns podem ter delírios de poder
 
e, desde então, caminhamos tantos caminhos errados
nos enredamos em fugas e escapes
ficamos paralisados diante do escuro abismo
diante do inextinguível desconhecido
entre
gritos,
imprecações,
palavras envenenadas,
muitas vezes ensandecidas
como se a vida fosse um medo
que nos assusta e subleva
e nos impele uns contra os outros
em monólogos ininteligíveis e pretensiosos
em sórdidas disputas ególatras
em monótonas e insanas guerras exteriores
vazando de dramas pessoais
da insuportável aflição que é não conhecer-se
e ignorar a guerra interior
que redime e liberta

guerras exteriores
vazando da inesgotável e cansativa intolerância
das ilusões que exasperam
das incompreensões viscerais
crenças incontinentes
seitas onde moram o desespero
e a ausência de fé e compaixão
da ausência da alma
embaçada pelas falsas imagens no espelho fosco das vaidades
guerras feitas de interesses escusos
e da ausência do humano
mimetizada em ódios
preconceitos
e o arraigado conceito enganoso de sermos melhores
do que aqueles a quem atacamos
 
e a vida inteira se dissolve no tempo
e no desespero das contradições
em busca da explicação (constatação?)
que nos faça aceitar
a morada em que vivemos
o alimento que comemos
o amor que nos sustêm
e a morte,
esta noite que acontece de repente
intempestivamente
este encontro com a névoa
e o imponderável
sem se saber se haverá outra(s) vida(s)
outra oportunidade de extirparmos a ignorância
numa segunda,
terceira,
enésima vez
sem se saber se haverá outro lado
céus e infernos
sopesando erros e acertos
decompondo os detritos do drama
que se viveu (que se vive?)

e todos os dias o assombro do entardecer
derrama-se mar a dentro
por vezes deixando um espasmo vermelho nas águas
deixando a noite a espremer-se entre o ocaso e o cotidiano

a vida boceja e acomoda os olhos à escuridão
o dia esvanece
sem remorsos
sem culpas
ou medos
cicatrizes
entre descansados segredos

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Brasilinos

 
Projeto de Constituição atribuído a Capistrano de Abreu:
 
Art. 1º - Todo brasileiro deve ter vergonha na cara.
Parágrafo único:
Revogam-se as disposições em contrário.
 
 
 
Somos
indolentes
impudentes
indecentes
insolentes
indiferentes
impenitentes
impersistentes
incongruentes
inscientes
intransigentes
irreverentes
imprevidentes
inconscientes

somos ardentes dementes
 
entrementes
e entre dentes (os que sobraram)
resmungamos
das mazelas do país
tudo culpa do outro,
este desinfeliz
que não se exauri
de tramar maracutaias
e falcatruas
viver de pequenos
e grandes golpes
culpa das Vossas Excrescências
dos políticos ladrões
sem complacência
sem competência para a virtude
culpa do bispo e do papa
culpa da sanha cafajeste
deste povo fanfarrão
e brejeiro
culpa do mundo inteiro
culpa do povo brasileiro
culpa de Deus e do mundo
culpa deste povo vagabundo
do qual, é óbvio, não fazemos parte
apesar de termos nascido
neste país rubicundo
e aprendido desde cedo
que o legal é levar vantagem
que a honestidade é uma vergonha
que mesmo com muita farinha
meu pirão será o primeiro
que estudar e se instruir é pra babaca
que o bacaninha é se dar bem
é dar um "jeitinho"
olhando só pro próprio umbigo

falta muita coisa neste país
faltam otários
sobram espertos
repetindo sempre o mesmo discurso surrado
"se os outros fazem o que é que tem?"

falta muita coisa neste país assombrado
e atraiçoado
pelos fantasmas de cinco séculos
de servidão amoral
de rapinagem aclamada
de culpas
sem responsáveis
da carência sibilina e primordial
deste insopitável alento
chamado "VERGONHA NA CARA"

domingo, 12 de julho de 2015

Eterno


O vento sopra
caminhando entre enganos
e penumbras
e memórias
seus passos somem sob as folhas
que ele mesmo sopra e derruba
faz girar os cata-ventos
que girando catam o vento
e espalham pelo ar momentos calados
idênticos em propositura
inventando ocasos e auroras
das nódoas coloridas e indefinidas do ar
demasiadamente puras e inocentes
inefavelmente belas
feito bolhas de sabão
ardendo inigualáveis infâncias
fitando o viandante com olhos de mistérios
imprecando num caminhar cúmplice da cegueira
na estrada maltrapilha que não se mostra
com tanto passado atravessando perguntas
suplicando candura e aceitação

a morada é longe
e apenas a promessa do retorno
goteja e lhe dá dignidade
são repousantes as águas do regaço
indo embora...
indo embora...
outra vez
fugindo para os bosques
onde cabe o outono e suas luzes amenas
os pássaros que vieram de longe
e a neblina que os trouxe
cabem os poemas vagarosos
límpidos como campos em silêncio
suavemente olorosos
enternecidamente amorosos
incontidos como as chuvas
batendo nos telhados de telhas de barro
escorrendo nas janelas amarelas
curtinhos como a luz limitada das candeias
imensos como as vidas eternas
levíssimos como dentes-de-leão
com suas florezinhas delicadas espiralando
desafiando o ar
cabe o fim de tarde sem girassóis
a noite sem estrelas,
sem fé
cabe o rodopio do mundo
as contumazes madrugadas palreando egolatricamente
de onde voltar não é mais possível
cabe o pensamento e a forma
a pulsação das flores
as folhas arrebatadas
as corolas pueris
os caules aveludados
as cores esplendorosas
pois que tudo está em tudo
e tudo está no Eterno

domingo, 5 de julho de 2015

As vidas e as mortes

 
O vento passa sem pressa
desmanchando as pedras e a vida, lenta e resolutamente
verga o capinzal sobre o lago
crispa as aguas
arrasta as folhas desfazendo o silêncio da noite
que se esconde dentro da tarde
onde tudo finda e recomeça
uma noite apos um dia apos uma noite...
que não são percebidos igualmente

Assim como creio que não são precebidos igualmente por todos as noites e os dias
creio, sinceramente, que a percepção da morte não é igual para todos
pode ser parecida,
mas não igual

Assim como a percepção da vida não é igual para todos
pode ser parecida,
mas não é igual

Creio que, como na vida, a percepção na morte
depende das vivencias e dos pactos de cada um

Creio que morre-se como se vive
e o depois da vida está mergulhado e emerge do que se viveu
e creu
e negou-se
e se viveu
nos castelos
nas tavernas
nas cidades frágeis e canalhas

Os mundos da morte são os mundos e labirintos inacessíveis,
porém, possíveis da vida,
da alma, da mente humana e seus ocasos

Não há nada do outro lado que não esteja dentro da gente
céus e infernos
anjos e potestades
tão vários quantos são os seres humanos
e seus passos adiante e suas angústias
aqui e agora
como um compromisso

Os dias, emergindo de auroras cheias de cores,
fazem-se poesia
e confundem-se com as coisas elementares
entre uma vida e uma morte
sem fazer distinção entre o que é uma o que é outra
sem saber o que há entre uma e outra
ignorando o monólogo tortuoso de obsoletas certezas

Como se a vida fosse um longo e obscuro pensamento
que eu não sei despensar
e que me mantém entretido
longe da
Vertigem e da Pergunta
que torna e retorna suspensa e dissipada em momentos de distração
a Ideia Primordial que faz do ser humano ser o humano do ser
que vem na Canção vinda das estrelas

Os dias evolam-se em sua perfeição
Mais um dia de sombras arredondadas
de chuvas e sois equidistantes,
vernaculares,
e uma lua pousada na noite da infância

As cores da tarde submergem no escuro da noite
e suas emanações reverberam, devagar, nomes e sorrisos
conversas troando no lusco-fusco
e a inquietante Pergunta
que retine intermitente e aparentemente inaudível
na essência e no vir a ser
em tantas madrugadas e dias claros
de um sol intenso e silencioso
tornando-se sombra segundo a segundo
sob o disfarce do tempo

A vida é uma brincadeira entre um suspiro e outro
entre o gesto e o acaso
ensonada de instantes e eternidades
brincadeira que eu não sei brincar
num mundo indecifravel que eu não sei olhar
e falho na indecência dos olhos amargos que trouxe comigo

A vida é brincadeira inconsequentemente perigosa,
sutilmente inefável
séria
lúdica
por tudo ser possível desde que caiba num sonho
e tudo, então, se transforma em escolhas minudentes
muitas das vezes audaciosas e intementes
muitas das vezes só escolhas
que farão de uma proposição uma pessoa
ou um amontoado de frustrações e humilhações

Para além do sonho escorrem as águas imponderáveis e secas
e caem as folhas das árvores, sem rumor
sob as nuvens desigualmente brancas,
desigualmente voláteis

Na outra face do sonho o amor vindo nos livros
nas noites de bares
no sussurro eloquente das divagaçôes nas madrugadas
de amores todos possíveis
vencido o medo que aflora umido e dolorido
o amor aceso no fogo das eternidades das sedas dos papéis
presente nos vazios intangíveis e trêmulos das labaredas
que o vento tece

Viver tanto para não ser nada,
por que os caminhos misturaram-se com os ventos
encobrindo a Pergunta e as coisas da vida
quente ou frio,
e sonhar com a morte
e temer as dores da morte dentro dos segundos
a memória afogada em nuvens
que passam daqui para lá
como eu hei de passar
com meus sonhos afetados,
minhas máscaras
e o enganoso silêncio
coberto dos rumores do lado de cá

E pensar na trôpega ideia da morte,
para muitos,
já é, enfaticamente, a morte
como se morrer fosse opção
ou trapaça