quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Teu nome faz os pássaros dizerem versos


o silêncio coleante e forte do inverno
enlaça as mãos vazias do dia
saindo delicadamente da noite evanescente
acordando o destino da rua cativa, deserta
adormecida entre recordações
e volteios do passado
pousa nas árvores derramando
folhas alaranjadas dentro dos lagos vermelhos
o sereno caminha pelos galhos secos
o vento suspirando a noite em seu fim
recorta cores e põe retalhos coloridos na aurora
se elevando no horizonte entre delicadezas e acalantos

um sol,
incipiente e inconcluso,
toca o ar ainda frio,
tremelicante
e sonolento
espreguiçando
esfregando os olhos
diante da irrealidade inapreensível de um novo dia
as cores escorrem do ocaso para dentro da sombra
coligindo vidas tardias,
rasgando tempos e dores
semeando mares
e portos desmesurados de amores
ensinando o caminho aos rios
que te esperam
onde a ausência mais fala de ti

a aurora
clareia a manhã e suspira
ateia fogo ao céu
e no telhado das casas  mudas.,
miúdas
e impávidas
os ares,
translúcidos,
ressoam as primeiras palavras
que roubam ao silêncio do dia
e de sacadas que apenas espiam
as últimas estrelas balançando na noite indo embora
esboçando aqui e ali um rosto posto em alguma janela
admirando os pedaços de dia que a luz vai desnudando
e sobrepondo sobre os outros dias de lento esquecimento
por onde se insinuam os pássaros
invisíveis entre a folhagem
só o canto é grito e instante
entalhando a manhã do infinito dos dias

a lembrança dos teus lábios
ata-me aos barcos e aos mares inertes
sem sopro de vento que os mova
e sinto cair,
gota-a-gota,
a saliva do beijo que por não ter sido dado
é só memória
nos meus lábios entreabertos,
na minha boca irremissível
que pergunta pelo teu nome
e teu nome faz os pássaros dizerem os versos
que faço para ti
sem que tu saibas
e os dirão sobre os segredos e as ternuras do teu corpo
que de ti ainda não sei

ainda é meandros e sonho beijar as tuas mãos
tocar a inocência do teu nome e a tua beleza
deusa que és de toda a graça morena
flutuas sobre mim quando tu passas
e o meu mundo se refugia e abriga-se nos teus passos
e o ar em torno é um só soneto com cores e aroma de açucena

domingo, 27 de setembro de 2015

A flor


A flor é o devir da flor
a flor em si mesma
e a lembrança da flor

O momento tremente
em que a penso
e aprisiono a flor
já não é mais a flor
é idéia e posse
é o que os meus olhos antigos
e a minha mente viciada dizem que é flor
mas, não é a flor
é a imagem decalcada
pelas imagens de todas as flores passadas
é o sonho doendo dentro da vida

A flor é o que sinto no  momento
em que ela se entreabre só para mim
e cede-me as cores
e espargi-me aromas
e entrega-me o sol que também é a flor
e eu e ela somos uno
nas manhãs que regressam
pousadas em borboletas
e, lentas,
entram pelas janelas

A flor perfuma o instante
recendendo no sopro
das brumas e das saudades
que vêem das ilhas encharcadas
pelos ventos
derrubando pétalas
atravessando o rio e a minha alma
para perfumar os dias
de beleza
e da infinita mansidão
das garças esperando para
desaparecer
junto com as tardes
dentro do espelho oxidado
das águas da lagoa

sábado, 26 de setembro de 2015

Eu, quando?


Escrevo aqui:

Nada se movia sob o céu inacabado
ainda sem cor,
mas que será azul quanto estiver pronto

E afirmo:

São inexistentes as horas de onde pendem
o mistério e o azul do céu!

O rumor dos ponteiros escalavra a ilusão infinita
de um tempo escondendo-se, escoando
e ecoando dentro de mim
treme e me embosca
me arrosta
o tempo introjetado não me deixa sozinho
encurrala-me no matraquear incessante
do tartamudear delirante e mentiroso das horas
angústia inventada,
invertida
vértice de tanta loucura,
artífice de tanta paúra
já criada e aceita ao longo dos tempos
pelas mentes sombrias do homem
o tempo
caindo,
caindo,
indefinidamente,
caindo...
entrementes
tolhendo os dias tão claros onde eu canto para ti
pervagando as noites escuras onde eu te amo
relutando letárgicas lutas sustentadas
pela miscelânea que abriga passado, presente e futuro
na mesma cela, da mesma prisão
e, então, o tempo é tão inútil
quanto os olhos procurando-me no espelho
onde vejo uma imagem que suponho ser eu
Mas, eu quando?
Eu no passado?
Eu no presente?
Ou eu no futuro?
se o tempo é fluxo escoando ao longo dos momentos
e não movimento
sombra do infinito aprendendo gestos

Meus passos caminham o que fui
o que sou,
o que serei
meus passos caminham chãos e sonhos
trago palavras doces e maduras
e vinhos bêbados
e flores suspirando aromas que,
pela sede e pela fome de tanto te amar,
nunca,
jamais te entregarei

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Zome


De batismo chamo-me José
na infância e na adolescência
chamavam-me de Zome
porque Zome?
o que vem a ser Zome?
de onde vem isto?
o que vem a ser isto ao certo?
perguntará alguém mais curioso
visto que tem sempre algum por perto

Eu vou contar,
eu explico,
enquanto o passado respira e pervaga quintais e saudades
e o pensamento olha para os dias que ficaram sob o sol
causticante
e a neblina empoeirada das manhãs
envelhecendo com a memória
silencia e se desprende deste sabor
de terra desatenta

Como quase tudo nesta vida "Zome" tem uma explicação

Quando nasci, meu irmão mais velho que eu três anos,
por não saber dizer homenzinho
chamava-me de Zominho
Zominho, Zominho, virou Zome
e assim ficou
atravessei a infância e a adolescência
com Zome sendo meu nome


A vida fez e desfez dias e noites
o circo de lona rasgada foi embora, partiu
foram embora os parques de diversões
foi-se a música oferecida de fulano para fulana,
como prova de amor e admiração
ficaram no ar sons e nomes atravessados de amores...
que de amores ainda serão?
foram-se as meninas que amei em silêncio
no prenúncio das mulheres
foi-se a rua de terra, de folguedos
os dias criando brinquedos
as noites inventando medos
a mão chamando
pra muleque entrar
pai vai chegar
entra pra casa quem não quiser apanhar
o mundo chorou e riu
cresci
crescemos eu e a saudade e os corpos mirrados
dos amigos e das amigas de então
todos cresceram
ninguém falou em saudades ou solidão
os retratos amarelados escondendo-se do tempo

Quando cresci
quem não me conhecia/conheceu
como o Zome lá da infância chama-me de José
(Bem poucos chamam-me de José
parece-me que há nisto uma certa dificuldade
que até agora não entendi: como este nome sui generis
pode ser tão difícil de ser lembrado,
chamam-me de tudo, Pedro, Paulo, João...
mas de José não chamam não)

Sendo José,
por consequência óbvia e corriqueira, virei Zé
(Mas assim como José, poucos, bem poucos, me chamam de Zé
aqui não por dificuldade própria da língua, mas, talvez, por comiseração
ou aversão aos simplórios de nomes simplórios... não sei
cada um que tire a sua conclusão

A maioria chama-me Leite,
sem perderem a oportunidade de fazerem
a famigerada, infame e gasta piadinha
quando nos encontramos no cafezinho:
vou tomar café com o Leite
ria quem puder

Chamam-me ainda de
José Leite
José Milk
Zé Leite
nos anos 80, no auge da desolação, chamavam-me de Zezão
miúdo que sou o apelido era uma aberração semântica
e uma grande piada, fisicamente falando

Hoje só o passado e a família ainda me chamam de Zome
minha irmã, por um carinho desmedido que acaricia todos os meus dias
quando nos falamos, chama-me de "Me"

Sendo José,
como todo bom José
gastei pedra
pé ante pé
andei
me arrastei
virei
mexi
remexi
fiz xixi no céu
me isolei
me degluti
regurgitei-me
vassalo que sou
um dia senti-me rei
perdi a fé
em mim, nos santos e nos homens
vi-me incréu
"E agora José?"
chorei
cravos vermelhos
pus-me de joelhos
nos desertos da mania
quando, quando e como a alma ardia
entreguei-me à poesia
estraguei a poesia
ao meter-me a escrevê-la

Ainda ouço,
em momentos de alegria, de catarse,
da velha dor incestuosa
ou nas noites de cismas ardendo em mim
ainda ouço
vindo dos quintais pungentes de liberdade
como um sussurro tardando a passar pelas tardes
sem tempo e sem idade
andando, tropeçando
caindo e levantando como um sol dilacerado
o antigo apelido:
Zome, Zome, Zome...
que me chama pelos lábios ressequidos de meu irmão
naquelas grotas, lonjuras, barro, fome
e o vento tangendo a poeira e o grito magro do sertão
ainda diz
vem pra casa Zome...
não come barro Zome...
Zome, Zome, Zome...
mas, Zome no dia a dia
nunca fui mais
nunca fui mais não

O que em mim era Zome por pura alegria
por vivacidade e vadiação do meu irmão
agora é Zome quando a saudade acaricia e alicia e cicia
os redemoinhos girando memórias nos terreiros
de instantes zunindo nos galhos secos dos pés de pau
encobrindo com  a poeira os dias que não vingam
e morrem dentro de mim,
infatigáveis,
pela derradeira vez

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Quero o grito que ouço nos sonhos



quero o grito que ouço nos sonhos
e as respostas
dos sonhos que se perderam
na apatia
e na indolência descompostas


segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Quem não tem origem não sabe o seu destino


Vim...
a vida me chamou, eu vim
assustado
cismando
chorando
pelado
desdentado
os olhos ardidos pela poeira
a boca seca
o cuspe seco
me espojei no chão rachado
comi barro
lambi o sarro das gretas
botei lombriga
cativo de uma sina seca e faminta
sobrevivi
fugi
arrastando a alma pesada
e pejada de tanto barro que comi
o corpo tomado daquela terra imantada
pela maldade,
pelo mistério,
pelo esquecimento
pela mentira do rio ausente

Vim...
não gostei do que vi
o homem trazendo dores,
rancores
a fera em mim emboscada
o todo menor do que o nada
o nome escuro das guerras
os inescritos donos das terras
a peleja desenfreada
a espada desembainhada
alçada sobre as cabeças
os bergantins movendo-se para o confronto
pervagando nos desertos insensíveis
da sordidez dos homens calhordas
indolentes
homens ignaros conluiados com a morte
fascinados com o gume afilado
das armas com as quais atacam
e sufocam a vida e o pensamento

Não entendi os segredos
atraiçoei-me em meus medos
que ganem
o que eu não quero ouvir

Não gostei do que vivi
procurei nas auroras
azulando e azulando o mar
tão devagar
emergindo no horizonte
um seio a se mostrar
procurei nas tardes imóveis,
intocadas
e quentes
nas noites distendidas e úmidas
e suas horas imensas cicerônicas
procurei nos meus caminhos assustados,
vilipendiados
não encontrei em mim o gesto
não encontrei dia, noite, madrugada
que interpretasse os meus carinhos
aos carinhos da mulher tão singularmente amada

Eis-me aqui,
antigo e vário
diante da insubsistente poesia que,
sozinha,
diz muito pouco ou não diz nada

A noite indistinta não cessa
de bater à minha porta
o vento sussurra sortilégios inumeráveis
junto à minha janela marchetada pela mão da madrugada
o cansaço e o silêncio movendo-se em lenta fuga
o relógio proclamando melancolias
faz a noite mais escura e hesitante
a noite em mim já não dorme
já não acordam os dias
a vida já não é o bastante
tudo em mim é este momento entardecendo
com tanto empenho,
com tanto esmero
tudo em mim é este abismo inexato
ingente
e este inconho desespero

O descalabro
desolado e mudo da vida suicidou-me
enojou-me
enojei-me
enojei-me de mim mesmo
da minha falsa candura
da minha real covardia
do olhar baixo
procurando-me pelo chão
enojei-me da fuga clandestina
enojei-me da minha inconsumível pretensão
e da minha falsa simplicidade
que me faz condescender
com aquilo que eu não quero ser

O que serei pouco importa
não vejo nem a luz nem a porta
que me tire desta cava
onde inelutavelmente o tempo cai sobre mim
a poesia que eu sinto e que escrevo
e que me escreve
é a vida que achou uma forma terna e leve
de resgatar os sonhos todos que me deve

Sou antigo
como a luz do primeiro dia
como o balbucio do primeiro homem
como o brilho da primeira estrela
como a primeira noite onde a luz preclara dormiu
e o Universo, enclausurado, se abriu
sou antigo
como as margens desoladas deste rio de recordações
como o navegar sem rumo das embarcações
a desembocar no meu peito
indiscernível, irrefreável,
soturno, retinto
menino assustado,
não tenho fé que me sustente,
não tenho fim
como não tem fim tudo o que eu sinto
como não tem fim este fim eterno
fremindo a pulsar dentro de mim

domingo, 20 de setembro de 2015

Poemas, quem os enxergam?


Poemas,
quem os enxergam?

com tanta guerra começando
com tanta fera assomando
com tanta miséria grassando
com tanto amor se acabando
com tanto adeus acenando
com tanta vida blefando
com tanto sonho gorando
com tanta luz se apagando
com tantos céus desabando
com tanta virtude execrando
com tanta mediocridade pervagando
com tantas vozes calando
com tantas mãos se fechando
com tantos olhos chorando
com tanto medo assustando
com tanto desespero desesperando
com tantas saudades falando
com tanta tristeza no mundo
em cima
dos lados
embaixo
bem embaixo
no fundo

Imagem: Santiago Carbonell

sábado, 19 de setembro de 2015

Preciso ser delicado

 
"Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida"
 
Vinicius de Moraes
   In Nova Antologia Poética. Ed. Cia. das Letras. 2008. Página 31.  
 
 
 
 

Preciso ser delicado
todo o tempo, delicado
preciso ser poeta e água de choro
e o soluço ritmado depois do choro
e o ritmo dos anjos cantando em coro
esperanças
preciso ser o beijo nos olhos que choraram
e choram os dias sem um destino
que os viesse tocar
sós...
tão sós como as velas gemendo sem peso
aos ventos em alto mar

O que eu fui ficou enlaçado
nas estrelas azuis me espiando
ficou no choro e no riso
ficou no instante conciso
na saudade dentro do retrato
ficou no ruído do vento falando
às velas mudas dos barcos
ficou na ausência do ato
ficou no sal solidificado do mar
ficou no chão que pisei
ficou no chão a me pisar

Sombras seculares andam nos becos
atritando as pedras do calçamento
tirando do ventre frio das pedras
faíscas e indizível lamento
incendiando palavras
acendendo fogueiras na memória
arrostando a mansidão dos silêncios
delineando meus sonhos e o meu destino
fazendo dos dias campos semeados
de tanta ventura, de tanto desatino
por onde só se vai e se esvai
no sem caminho das nuvens
e nas distâncias que me perdem
onde cada pedaço meu
sou eu mesmo que despedaço
e me estorço
e me desfaço
e me refaço
entre os espaços e os medos
entre a compreensão e o perdão
entre poemas de uma tristeza longa e exausta
uma tristeza que dorme esquecida na minha mão
entre poemas enlaçados ao passado que nunca passa
condenados a mais de cem anos de solidão
deixando no ar este aroma de cravos e rosas
entre o sim expletivo do infinito
e a eternidade opressora do não
enchendo a vida com o grito infindável
crepitando na escuridão saindo da noite

Vê, amor, que há poemas onde o amor só nasce para sofrer
poemas que as minhas mãos teimam em escrever
inquietas em meio a erva daninha dos jardins abandonados
dos homens e das mulheres desamparados
o coração delicado decepado de forma irremissível
bateando nos lagos impuros
faiscando passados e culpas
no coração onde o amor é verso e dor
em tudo o que o momento deixou de ser ou não foi
nas lágrimas inertes que invento de repente,
sem poesia aparente,
invento simplesmente,
condescendentemente
para chorar tanta tristeza que se deita
e se aninha
e se enrosca aos meus pés
por tudo que fomos
por tudo que és
e arde em febres indizíveis
e sofre
bebendo lentamente o claro argênteo da lua
vagando e tropeçando na rua
e nas miragens que o vento volitivamente traz
de desertos mirabolantes

Invento lágrimas
para me sentir comovido e minimamente humano
em face da melancolia
adaga dessemelhante que se roça em mim
tocando e lanhando o meu corpo
e o mistério que me alucina
ao entardecer das paisagens sem sol
sem a corda vermelha no céu tesa e estendida
sem riachos ou rios seguindo
o caminho das margens inapreensíveis
no mar sem equilíbrio
nas nuvens desmesuradas que passam me/ditando
no meu olhar a olhar
o olhar confrangido do anjo,
triste e profundo
na felicidade que antes de ser
a minha felicidade,
a tua felicidade
a felicidade que se oculta bem fundo
é o sentimento levado pela cabotagem
das estrelas enamoradas e pequeninas
pervagando pela senciência do mundo

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Metades da primavera


Eu e você...
abandonos e carinhos
gestos sem passado
as roupas nuas sem amanhãs
teus olhos negros erguendo o dia
teus lábios frescos e inocentes aspergindo as palavras
ninando o dia
a tangível fantasia
brincando
com a infância acordada em nossos corpos
brincando com o poema
que nós éramos (que nós somos e seremos)
e com a eternidade vivendo em nossos poucos anos
em toda as coisas
que nas flores da lembrança ainda eclodem ou se inventam
e nos botões que florindo ainda virão
no gesto que ficou e que ainda guarda o afeto
e no teu jeito sem jeito de olhar para o segredo
dos nossos corpos despidos
o teu jeito de se ajeitar sobre as letras e as palavras
e aconchegar-se em meu colo como
se no mundo não houvesse o medo e o desamor

ficamos, meu amor, tu e eu, cada um
com metade da primavera
e, então, a primavera só se completava e acontecia
quando nos encontrávamos e bebíamos o amor aos goles,
ávidos um da metade do outro
na minha mão a tua mão
e os nossos sonhos entreabertos
e a ingenuidade dos nossos brinquedos secretos
sem promessas presas às nossas bocas
mansamente chamando pelas aves que voavam
e levavam a dizer palavras
anunciando a ternura do gozo impressentido
e a poesia balbuciada
nas tardes amadurecidas
nas cinzas do calor dos nossos braços
entre abraços
envolvendo a gente e o dia
dentro da mais estonteante alegria

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Dona Maria

 
O vento erra arrastando este canto
de pássaro pressentido na noite
que vai e voa e ondula
por céus extenuados
inapreensíveis

A noite é as mil folhas
dos espelhos fatigados
é a sombra doída
barco solitário e silente
grito crescente
a noite é a vida
reconciliando-se com o primeiro dia
entre lembranças e sonhos

A noite interminavelmente me chama
entorna a lua no lago e arde em silêncio
caminho lugares e retratos de sombras
dentro das lembranças
caminho tardes indo embora
que me levam a mim e este doer sem pressa
quando a chuva cai
e os pingos escorrem chorosos pelas janelas

Ando pelas ruas da infância
e deito-me ao sol
sobre a relva acariciante e  nua
a porta entreaberta a este silêncio
e a este sentir que murmura em mim nostalgias
um passo sem rumor dentro das areias frias
o mar quebrando tão longe
lesto e sozinho
paisagens vazias

Na noite vagueando pela névoa dos jardins
canteiros de cravos
e de ternuras vermelhas, brancas
rosas, roxas, amarelas
rosas flutuando antigos dias
lembro de você, mãe
tenho a nítida sensação de que se eu gritar "mãe"
você responde
e os cravos eclodem densos entre os meus versos
que são todos teus
e desando na noite a aprender saudades
até a noite ir embora
ou esconder-se dos meus olhos
e as estrelas fecharem os braços e os olhos pro novo dia
que não demora e se inicia
recomeçando esta mesma e sempre eternidade
que dia a dia se fia
sem que os meus lábios tenham aprendido a dizer adeus

Saudades, mãe,
saudades, Dona Maria
que deu um sentido definitivo
irremissível
inelutável
imensurável
para as palavras saudade e solidão
quando o silêncio pousou e dormiu em seus lábios
pondo fim à agonia do verão

Minha alma
minha única Nação
minha inapreensível
minha incognoscível
e insofismável explicação
chorou
verdades e dores de um rio
que em meus olhos corria
para dentro dos teus olhos,
minha mãe,
minha e/terna poesia,
serás sempre a  flor obstinada
neste mundo que era teu
e que me destes
num mundo onde se via
o clarear das manhãs
lavrando as flores do dia

enquanto você morria
saudades,
Dona Maria

terça-feira, 15 de setembro de 2015

As quatro estações


PRIMAVERA

Entre a cor e a árvore
passa o pássaro
no ar o perfume imemorial
da grama aparada
onde os passarinhos debicam insetos
e o vento matinal lembra poemas
na certeza de uma estação bordando cores
e de canteiros floridos
pendoando as manhãs de eternidades
e aromas
e o som sibilino do orvalho
sendo o orvalho a lágrima da brisa
sob as pétalas dos tempos e dos poemas
sendo o poema o amor posto
fora dos parêntesis
o fator em evidência
sendo o leitor
a condição de dois seres
a palavra mirando-se no espelho
na primavera insonte e perquiridora
poeta e leitor, por ventura, se pensarão?
as flores abrem-se
e nos nossos olhos a tarde tateia pétalas
abrem-se murmúrios e enlevos
como no primeiro dia da Criação

VERÃO

O sol cintila e espera nos grãos de  areia
as águas e suas reentrâncias
molhando os quiméricos feudos e quintais
castelos de areia e senhores feudais
barcos de papel e os sonhos álacres e lestos das crianças
carrosséis de cavalinhos multicores giram nas praças
rodas gigantes amarelas e azuis rodam no ar
levando o encanto nos olhos do menino
levando a graça da menina, o sol, a paisagem
e o sonho que inventa os quatro
dentes de leão empurram o ar e o dia
a luz empurra o barco
as velas
azuis, brancas, amarelas
como um outro jardim
ligado à alma onde cavo
buscando a mim
enfunam-se de fantasia
estrelas saem das árvores
mal começa o fim do dia

OUTONO

As noites crescem,
soberanas e jacentes
e a paisagem veste-se de escuridão
tão de repente
morosa e ternamente
as folhas caem
morosa e ternamente
as folhas caem
onde antes eu pisava e escrevia chão
aprendo o refazer dos caminhos
a volta à foz do rio
aprendo na árvore desnuda
o silêncio de um deserto cheio de perguntas
esquecidas
escondidas
contidas pedaço a pedaço
mastigando palavras quebradiças
como os galhos secos
da estação
às vezes mastigo-as devagar
às vezes com ânsia e sofreguidão
a luz do outono me sustenta
levito sobre o instante e a estação

INVERNO

os dias dormem cada vez mais cedo
a luz entregando-se a ser ausente
dias curtos
inapreensíveis
o vento morde as casas
o nevoeiro esconde a rua de si mesma
e põe lassidão nas esquinas
o sol, hermético, engana que esquenta
posto num canto do céu
o céu mistura-se às nuvens bojudas
chora neblinas
os dedos frios do ar
tocando rostos e mãos
como nos toca o frio momento que acorda
e se põe a nos enlaçar incontinente e sozinho
o corpo, tolhido e álgido, pede calor
a alma pede carinho

domingo, 13 de setembro de 2015

"Nunca poucos fizeram tantos de pinico"*


Poucos
Bem poucos são
os que nos turvam a visão
nos embaralham a emoção
nos embotam a razão
deitam a última pá de terra ao caixão

O torno e a forja midiáticos
montados para dar sustentação
à transformação de um homem
num gordo, rotundo e esmaltado pinico
aparelhou o "making off" desde a criação

Povo...   Ah! O povo...
com esta imanente vocação
para pinicão, para pinicaço
tornando o rico, ricaço
sai pra rua
põe nariz de palhaço
como quem entendeu
quem lhe dobra o espinhaço
mas, basta bater um tambor
para esquecer toda a dor
e sair dançando (em todos os sentidos)
prosaicamente
talvez para encobrir o medo
e enrolar o lençol que vem junto com o fantasma
talvez sem se perceber
de que o nariz de palhaço lhe cai bem

A TV, o  rádio, o jornal, a revista
modela a matéria prima do pinico
na confeição que bem entende
sem deixar rastro ou pista
o que não falta é "doutor" e artista
desfilando à nossa vista
dizendo como, quando e onde fazer
a nossa festa arrivista

A TV te vê,
nos engole
nos tolhe
dessangra nossos miolos
e cospe
pinicos de toda sorte
semeia a estupidez
em nossas mentes tementes

A TV quer que a gente rebole
a gente rebola
como um bando de dementes
descendo até a boquinha da garrafa
baldes de mediocridade
ministrados homeoapaticamente
enquanto a gente nem pisca
ela nos pesca
peixe para a fria marmita
sardinhas enlatadas
aonde foram parar as cabeças?
espinhas entaladas
na goela de uma realidade escamoteada
rançosa
ela nos iça
e vai transformando em carniça
ou matéria para uma outra missa
este povo descartável
que o "establishment"
oprime
reprime
enquadra
pasteuriza
e vomita
num déjà vu "Orwelliano"

George Orwell era aprendiz
quando descreveu em "1984"
como tornar gente
em pinico o incauto desinfeliz

Ah! eu quero tanto ser feliz
mas a minha ignorância não deixa
o que eu tenho é só pergunta e queixa
e estes olhos estatelados
fitando os momentos atabalhoados

O gosto amargo da vida
a futilidade dizendo asneira
ditando moda e comportamento
falando a estudada besteira
a cultura catando xepa na feira
a propaganda ideológica
a visão ginecológica
a curetagem cerebral
a lavagem emocional
trazendo à tona o animal do animal
a luz e a sombra tratadas com esmero e lógica
para vender "Merry Christmas!" no período de natal
tudo absorvido subliminarmente
pelo vivente pinico e seu destino fatal

O jornal
A revista
Idem, idem...
Tudo tão igual...   Tão igual!
A parvoíce geral

Eles são poucos,
muito poucos
mas detêm o conhecimento
de fazer cantar o jumento
e cumprem exemplarmente
o papel que lhes foi designado:
transformar gente em pinico
que pode vir vazio ou lotado

Todos vendem o mundo
que lhes deram pra vender
e há até certos conceitos
bem fáceis de se entender:

"a propaganda é a alma do negócio"
e o ócio
é o momento do negócio
de se pegar o beócio

Espanto!!!  
Quase confirmação
Tenho a clara sensação de que
estamos nos bestializando cada vez mais
e mais cedo
Ou é apenas a constatação de se estar vivo
e seu inerente medo

*O título da postagem foi pego no livro "Poesia Completa - Manoel de Barros" - Página 150

sábado, 12 de setembro de 2015

Depois de ti o mar vagueou

 
depois de ti o mar vagueou
pelo passado sem memórias
pela canção dos próprios passos
embriagou-se
soçobrou
afogou-se
derramou-se nos rios
lanhou-se na noite
e nas pedras cobertas pela neblina
exausto de si
bebeu as pedras nas fontes
murmurou,
gemeu nos horizontes
disse palavras
chorou desencantos
e tantos
desmanchou-se em vãos pedaços
e o mar, então, foi só cansaços
respiração ofegante dos anjos cansados
madrigal
dizendo as cinco estações
primavera: derramando flores no ar
verão: espraiando sol nas vidas abertas
outono: derrubando flores, brincando de pega com a  luz
inverno: fria solidão doendo nas nossas mãos incompletas
a quinta estação não tem nome
é o silêncio andando com a lua
é a noite andando casualmente na rua
é o silêncio que eu pressinto,
mas não ouço
a quinta estação
é o calar de todo este alvoroço
é a estação do silêncio
dizendo o desassossego inteiro do teu corpo
e o marulho comovido,
envelhecido
e ritmado das estrelas

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

O mar veio depois do teu nome

 
O mar veio depois do teu nome
Pingo
escorrendo da tua
pra minha boca

A minha mão acariciando o teu corpo
por cima do teu vestido encantado
como o farfalhar de folhas antigas
e tu me contavas devagarinho
os teus segredos mais verdes
deixando na boca um travo

Eu te beijava
como se beija o primeiro amor
inseguro
desajeitado
ansioso
querendo dizer paixão
sem saber
um sem saber de criança
sem saber que a tua boca
guardava anjos e prostitutas

Eu perfumava meu rosto
nos teus gemidos
nos teus cabelos molhados
do banho no tanque
onde tu banhavas as tuas alegrias
e as águas todas eram rios fugindo

Nós éramos dois bobos
que o mundo não alcançava
nem corrompia
só o silêncio sabia dizer
o que a minha palavra não dizia

Aí veio o vento
era domingo
no ar havia cantigas
e o poema fazia
e desfazia versos
e com o vento
o mar veio vindo
veio vindo
o mar veio
depois das tuas mãos
do teu colo
dos teus seios
dos teus olhos
dos teus lábios
depois das tuas pernas
depois do teu suor
Pingo após Pingo
deixando o sal adormecido no teu corpo
e, então, tu já vagueavas e vadiavas em mim
entre o amanhecer sussurrante dos meus braços
e os soluços da tarde encostada comovidamente
na ilusão extrema da noite dissolvendo-se em carmesim

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Ecos da neblina


Por mais que tentem
não me escondem
não me furtam
não me assaltam
não me elidem
não me levam de mim

a neblina
o abacateiro
o cachorro
os cheiros escondidos pelo quintal
o galinheiro
o poço, onde Tita morreu (Tita era uma das galinhas
                                          e morreu afogada ao cair no poço)
o vão da escada e suas safadezas
flor nos canteiros
a rua de terra
bola de gude
pipa no céu
o vento chamado no assobio
show de calouros
o carrinho de rolimã
os pés de lata
a bola de plástico
o campinho e o campão
Dona Rosa que, pegando na minha
com aquela mão de enleio e delicadeza
e ao me dar o meu primeiro livro, O Patinho Feio,
enveredou-me pelo caminho
a juntar detritos e gritos
encantos e sustos                                                     
as meninas que tanto amei (sem que elas soubessem)
dentro dos arcos de noites de sonhos remendados

Tudo isso é meu
não...
não é isto que quero dizer
o que quero dizer é mais grave: tudo isso sou eu
bicho arrastado e embriagado pelas lembranças
e o tempo não me toma
jamais tomará
morra eu quantas vezes devam ser as minhas mortes
faça-se a noite mais precária
ou faça-se o mais precário dia
é eternamente meu
o que o meu sonho me fia

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Cenas do cotidiano

 
Chego ao prédio onde moro
na portaria
uma senhora de certa idade
discorre afetada
sobre as mazelas humanas
do homem e seus delírios de poder
a sua insaciável ânsia de ter
fala da necessidade de colaboração
da falta de união
o porteiro parece ouvir
ou seria os ossos da profissão?
o porteiro "ouve" a tudo e a todos

Ao passar cumprimento os dois
o porteiro responde
ela não
talvez que por estar tão encantada
com o próprio discurso
não ouça nem a si mesma
talvez por que o mundo, neste instante,
gire ao seu redor e o cumprimento que eu lhe fiz
tenha se perdido em algum buraco negro
da galáxia que ele representa neste momento
talvez por que estas coisas todas das quais ela fala
só sirvam para os outros
o que é mais comum
e o outro incomoda que é o diabo
é preciso exorcizá-lo com discursos veementes

Parece-me
com base na experiência que o prédio me dita,
que algumas pessoas,
como o passar da idade,
vão se deseducando
ou será que foram sempre assim
e a gente não as conheceu antes?
assim como vão encolhendo fisicamente,
outras física e intelectualmente
as orelhas crescendo
as rugas enrusgando a alma

Pego o caminho da roça
olho minha caixa de correio
nada de correspondência
bato em retirada
o "outro" não quer falar comigo
pelo menos por enquanto
pelo menos por via postal
o que hoje, diga-se de passagem,
não é normal com e-mail, celular,
whatsApp (que diabo vem a ser isto?)
e coisa e tal
o meu "outro" manifesta-se abundantemente
sempre no final do mês
travestido de contas para pagar

Talvez, quase certeza,
na cidade onde nasci,
perdida no sertão nordestino
ainda escrevam-se cartas
e lambam-se selos (aqueles que ainda têm
                               alguma gota de saliva para fazê-lo)
e esperem-se os Correios ansiosamente
antevendo as palavras que virão
no bom e velho e afetuoso papel

Subo pensando nestas coisa todas
tolas
tão corriqueiras e banais
quem não é capaz de responder um bom dia
um boa tarde, um boa noite
agradecer que lhe segurem a porta do elevador
que lhe segurem o portão de saída
tem o que para dizer sobre a soberba humana?

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Por onde andarão?


Porque será que
Jesus,
não desce daquela cruz
e com as chagas fistuladas de pus
não vem me dar uma luz
por onde andarão
o Salvador
o Buda
o Lama
o pastor
o Papa
o Bispo, já que é com ele que me mandam reclamar
por onde é que andam
os santos
os pais de santo
a fadinha do dente
por onde andarão
Mahatma Gandhi
Martin Luther King
quando Godot chegará
quem sabe onde andam
Dom Quixote
Robin Hood
Durango Kid
Superman
Batman e/ou o menino prodígio
Jonny Quest e Bandit
tudo do esquadrão internacional
que heróis por aqui nenhum vestígio
por aqui de heróis vamos mal
talvez um líder sindical
talvez um líder qualquer
para a hora do aperreio
qualquer líder, não faz mal
para segurar o rojão
que se tiver que estourar
que estoure na mão dele
bem longe da minha mão
quem sabe de algum altruísta
que queira lutar pelo povo
e, muito provavelmente,
encarar o crucifixo de novo
por onde andarão
Cabo Rusty
Rin-tin-tin
Forrest Gump, enfim
por onde andará
o candidato
o MEU candidato
aquele
que tanto anseio
para me dar um seio, Oh! liberdade
e me deixar dormir o sono dos justos
sem altercações e sem sustos
pode ser um candidato chinfrim
macunaímico, ou qualquer coisa assim
onde andam os grandes homens
os meus heróis
que não veem lutar
a minha luta por mim

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Toca o terror


A fábrica de fazer malucos está funcionando a pleno vapor

TOCA O TERROR! TOCA O TERROR!

acordo de manhã
ligo o rádio
me dizem que o país está se acabando
o ar está empestado de nefasto bando
chama Orson Welles para ir narrando
a invasão fulgurante dos sacripantas
corrupção
as viúvas do mensalão
o passado na televisão
tramando a insurreição
omissão
escândalos de segunda mão
o diabo de mãos dadas com o cão
inflação
desesperança
tem ladrão saindo pelo ladrão
investiga!!!
pega ladrão! pega ladrão!
não pega, não! não pega, não
se pegar todos vai faltar prisão
além do que ladrão que rouba ladrão
tem cem anos de perdão
assim tá todo mundo redimido
até a próxima encarnação

a presidenta bambeia
fica no vai, mas não vai
a presidenta agora, cai, agora cai?
ainda não é desta vez, ainda não é desta vez

TOCA O TERROR! TOCA O TERROR!

a extração do dente vai ser com dor ou sem dor?
com  dor é mais caro
se abanca aí, índio véio, e nem geme
por que se gemer é mais caro
por que com dor é mais caro
inflação de consumo
inflação sem consumo
inflação de insumo
economia sem rumo
só se sabe que a inflação nos consome
não sabemos donde vem a fera
nem lhe sabemos o nome
é tanta da "informação"
que uma hora dessas me consumo e sumo
como uma alma penada e pelada
ao léu, sem norte, nem prumo

a presidenta que cai?
agora vai! agora vai!
ainda não
vai ter que apertar só mais um tantinho
mais um bucadinho

TOCA O TERROR! TOCA O TERROR!

dizem que o emprego foi pro espaço
do salário no final do mês só sobra o cansaço
e agora o que é que eu faço?
estou comendo só os talos do maço
da xepa que eu arranjei
alguém aí acorda o rei
que a fome mata primeiro a grei
dos sem teto, sem terra, sem vida
dos párias à margem da lei
dos sem tudo, sem comida
dos com medo, com bebida
dizem que tudo tá uma merda
e que a lesma está cada vez mais lerda
que um dia o petróleo foi nosso
agora o petróleo é um troço
agora me lanho e me coço
para abastecer o carrinho
para andar sempre no mesmo caminho
agora invejo o vizinho
que ri acompanhado ou sozinho
eu queria saber rir só um pouquinho
nem que fosse o riso mesquinho
dos que não sabem guardar os dentes na boca

a presidenta que cai?
agora vai! agora vai!
ainda não, ainda não

TOCA O TERROR! TOCA O TERROR!

agora o petróleo é um nervo exposto
na CPI do desgosto
na bolsa cai a ação
na rua sobe e clama o missão
sobe a litania da rejeição
sobe o desejo de danação

Canta a massa na quase primaveril festa junina:

"Cai, cai balão
Cai, cai balão
e queima a urna da votação 
Não vou lá, não vou lá, não vou lá
estou ficando com medo de eleição"

e a presidenta pode caí, pode caí?
e a manada muge: é isso aí, é isso aí

TOCA O TERROR! TOCA O TERROR!

matam-se as esperanças
os ideais
matam-se os sonhos
quase sempre em definitivo
só o descalabro continua forte e vivo

TOCA O TERROR! TOCA O TERROR!

domingo, 6 de setembro de 2015

Um poema e um momento

 
A árvore lamenta
esboroa-se
cravada de dor
engolida e vergada pelas sombras
que vestem,
lentamente,
a noite carregada de segredos
e ainda impregnada do calor do dia
e do cheiro crasso e penetrante da lua que se anuncia
sondando a voz do tempo insustentável
que só existe quando eu penso nele
e lhe dou atributos de ser
engastado nas luzes e sombras
corroído pela ferrugem
levado pelos passos escapando
rumo às fogueiras correndo diante dos olhos meninos
e as águas do rio que a noite vai desmanchando
estrelas se aborrecendo
querendo ser cometa Halley
a eternidade morrendo pelo nosso punhal
lanhado de erros
e pelos olhos cegos,
pelos ciscos nos ventos que por aqui andam muitos,
que não diferem o essencial do acidental

sábado, 5 de setembro de 2015

E assim eu vou vivendo...


E assim eu vou vivendo...

buscando ignorar os dias de inelutáveis e puídas melancolias
tentando reaver os passos e os sonhos que ficaram
do outro lado do rio,
águas fugindo,
barcos aflitos,
inundação

Minha vida já não sabe de mim
tornei-me enredo,
segredo,
degredo,
moita de medo,
cantiga antiga
janela vazia

Ninguém lembra

Só eu cantarolo dentro da noite
para espantar a solidão dos retratos dentro do quarto
assombrado da mente

Assim, nu de mim,
vou invejando no outro o tanto que deixei de viver
sombras de um gesto inamovível e vago
escorrendo pelas grotas do abismo que vai passando
rumo ao passado
sinto-me inabitável
fogo e água
quase vida,
quase fim

Quem é este que me arrosta desde este passado interdito
cego para tanta escuridão?
o passado,
ilha monótona,
chuva rumorejando na penumbra do telhado
não explica a minha vida
vária e insondável
o passado é nostalgia
ave fugidia pousada nos silêncios que,
de tão cansados,
dormem apoiados nas mãos
sonhando saudades inacabadas e um destino abnegado
uma infância sem rio e sem mar onde eu pudesse afogar
o deserto que habitava a casa miúda,
as poeiras vermelhas,
e as memórias bojudas
intumescidas de cansaços e remorsos

O passado não passa,
perpassa
quem passa, sou eu?

Relógios e calendários retalham e mastigam o Tempo infrangível
cospem agonias

A noite indecifrável coloca estrelas e emboscadas na poesia
e lirismo no firmamento
o passado continua aqui,
carrossel,
roda-gigante
circo de  lona rasgada
algodão-doce
quintal
segredos embaixo da escada
rumores dentro da solidão dos dias insólitos
a me esperar
há séculos
na contagem irreal dos calendários friáveis
tão humanamente equivocados
olhando pelos meus olhos antigos e descrentes
a elegia das areias paradas
miragem de imorredouras ilusões
de estranho brilho fulgurando
sob a lua prateando e pranteando os sem nome
que nunca dormem

Das areias paradas vem o vento
soprando pela ilha sussurro mofino
vem uma lágrima a escorrer pelo céu
tocando à nostalgia de inefável pureza
cantarolando em mim as minhas canções de menino

E assim eu vou vivendo...

a minha luta eu luto sozinho
morrendo horas e medos
o resto mais é o insopitável Destino

Imagem: Christian Schloe

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Quando a gente vê... a gente já deu

 
ele chega
com voz de cama desfeita
com sua lábia de mascate do sexo
cachorro seguindo cio
trazendo no sussurro o grito
de êxtase
pegando na mão dela
o que diz roçando o infinito
mordiscando os bicos dos seios
dizendo coisas tão quentes
prementes
as palavras pubescentes
acordando palavras dormentes
promessas de gozo e arquejo
a mente e o espírito dizendo não
a pele dizendo sim
querendo ir até o fim

a cama guardada para o amor verdadeiro
para uma amor companheiro
já não enxerga o pecado
carola, da boca pra fora
promessas de inferno
e de danação
mundos inteiros de aflição
os peitos, a vulva, a bunda...
que sejam tocados e fiquem imundos
até a próxima confissão
a coerência e a fé esquecidas
esfregando-se ao Divino Espírito Santo
tudo apagando-se em errantes promessas
vazias de sentido e conteúdo
as tessituras do corpo cedendo ao desejo
quebranto
sonhos pueris
moleza
um sem sentido

a vontade,
lânguida e luxuriosa,
já deitando entre moitas,
se encostando aos muros,
roçando em lentos segredos
esfregando-se na penumbra
fraca e manca

a calcinha
molhadinha de suspiros
deslizando dissolvida
descendo
em arrepios incontida
os flancos à mostra
a vida fugindo da vida
a língua molhando a saliva
o clitóris arquejando ais indefesos
esquecendo de tudo que ela se promete
para entregar-se ao momento sem memória

ele diz as coisas que ela quer ouvir
mesmo que sejam
sortilégios
meias verdades
mentiras inteiras
ditas com suavidade e malícia
com gosto de gozo e delicia

morrendo serena e consentidamente
quem já não morreu?

ele pede sem dizer
despetalando cada pétala do seu intento
lenta e carinhosamente
o mundo se derrete e escorrega
por entre as pernas febris
mudo orgasmo
o mundo,
antes esférica prisão aos céus
e aos santos atada
dos céus e dos santos já se esqueceu
e diz,
o gesto nu e pequeno saindo da cama
entre o prazer e o pecado:
quando a gente vê, a gente já deu

Imagem: Christian Schloe

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

O outono


o outono
entre soluços do orvalho
e as folhas amareladas do poema
sustidas nas árvores
ameniza as cores dos dias
atentos à paleta do sol
tinge o lago de dourado
derruba sombras e folhas
e escreve versos
com mãos de jardineiro
e as folhas caídas nas águas
quebram o silêncio timorato da tarde

os raios de sol
debicados pelos pássaros
lentamente engolfados pela montanha
encostam a face no horizonte
e acendem o escuro da noite
acendem as estrelas
e a lua no céu
tonteiam os ninhos
a enganar os últimos pássaros
escorrem dos telhados para os muros
rolando devagar pelas ruas
até desaparecem aonde ninguém pode escutá-los
enrolam-se nos jardins sonolentos
e ardem nos rios
até se acabarem
e deixam no mar
rumores de prata
e frios desertos
despertos pelos ventos
semeando canções
às vezes terno prelúdio
às vezes alegros exasperados
e só você pode ouvir
do  modo como você ouvirá
só você
ninguém mais

Imagem: Charles Louis La Salle

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Dos sonhos eu quero os mais maduros


Te vejo
quieto como o sol suspenso lá fora
como o tigre que começa em tua boca
como a ave que ainda não te conhece
e se demora
a olhar tua beleza
como a face vermelha ao perguntar o teu nome
como o barco costeando rumo ao farol dos teus seios

Como não olhar
quando te vejo?
se as palavras com as quais eu te prevejo
com as quais te falaria
se extraviam
absortas
insondáveis
quando vens caminhando
como os versos caminham para o poema

Imagino teus olhos
não os vejo
negros olhos?
noites calmas?
onde começam?
onde terminam?
sonhos negros?
imagino teus olhos,
dona do tempo,
e espero
você inteira passar

Quem é você
morena, linda e leve
sonho, miragem, ilusão
surgindo,
trazendo fogo,
para o inverno do salão
quando vens caminhando segredos?
caminhas como quem dança
o passo lento do vento
as chuvas bebendo o verão
fazendo de ti
flor de laranjeira
pólen
favos de mel
pela tua morenice açucarados
nos teus lábios onde o beijo pousa
e as abelhas sorvem os dias
para te entregar

Há um mar entornado e inacabado entre mim e ti
mordo o tempo
o dia passa tão lento
esperando o outro dia
para eu te ver outra vez
vou sentar no mesmo lugar
para você logo me achar
e onde meus olhos te alcancem
para eu poder te acompanhar
passo após passo vindo
como quem viesse
de dentro das pedras da rua
na minha direção
e do meu encanto
a manhã te esperando
flor a ser colhida
saudade a ser bebida pela sede
menina morena
meus olhos, incompletos,
se completam quando te veem
meus olhos vão aonde a tua ausência vai
meus olhos vão não sei onde quando sais

Dos sonhos quero os sonhos mais maduros
suculentos
quero os sonhos mais maduros
quando te vir outra vez
quero o silêncio dos teus passos
que ouço quando chegas
trazendo ritmo e graça
e a pergunta nos teus cabelos
dos sonhos que despertam
em tantas carícias supostas
quero o sonho suculento
escorrendo sumo in natura
quero a candura
inebriante dos versos silentes das tuas costas

O silêncio fala de nós
ancorado à inocência do mar
o silêncio diz que eu não devia
te olhar como eu te olho
mas meus olhos olham,
logo que chegas,
para a ausência que deixarás
e, então, meus olhos já são só saudades
embaraçando-se no levitar dos teus passos
envolvendo-se na tua beleza de terra e rios
instante eterno e sozinho dentro do poema
que eu nunca esquecerei
nunca esquecerei
do enlevo desta candura que me toca
e deste poema que jamais te enviarei

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Andar sozinho é o caminho que me deram


"Dizem que Cézanne
quando certa vez pintou um quadro
deixando inacabada parte de uma maçã
pintou apenas a parte da maçã
que compreendia"





A madrugada passando...
negro arco distendido
setas mirando agosto
lua cheia
roda d'água que ninguém vê
só eu e você
a madrugada não é rasa nem funda
a madrugada é tímida, rotunda
pé na poça da infância
fogueiras de estrelas
friozinho disfarçando o que sinto

Ao longe um relógio mentiroso,
ofegante,
sufocado pela neblina,
mente as horas
telhados antigos sabem os tempos,
mas nada dizem nem impõem,
a não ser a palavra escura que os recobre

Final de agosto ao redor da casa
sem que, no entanto, a ordem da vida se altere
o sol, insonte, nascerá todos os dias
trazendo os dias
soprando ventos
flores ao acaso
à tarde a noite se levantará do horizonte
dizendo metáforas vermelhas, laranjas,
cinzas ou lilases
engolindo o dia inelutavelmente
seja agosto ou seja abril
ou o nome que se dê ao transcorrer dos momentos
como sempre aconteceu
como sempre acontecerá
diante dos nossos olhos amestrados e desfeitos para enxergar
ou até que alguém,
entediado e boçal,
exploda a bomba em nome da paz mundial
ou até o sol convulsamente se apagar
daqui a bilhões de anos
para que serve o tempo, então,
se não para fazer redemoinhos no olhar
e nos cegar para a vida inefável e indefesa
que nos deram para sonhar?

Cachorros latem e lançam alvoroços no ar
que desaparecem
na capenga solidão dos morros
e das marras
nas vielas funiculares
em tantos outro lugares
onde a vida passa vazia e efêmera
a vida passa por passar

Pássaros trinam risonhos
ainda cochilam a noite
cochicham
indagam
ensaiam a melodia
que cantarão durante o dia
oculto nas folhas e nos galhos
das árvores do passeio em frente
filhotes no ninho
mamãe pulsando o inefável afeto
o mundo é um carinho quente

Os jardins dormem molhados
pela aspersão do sereno
liquefazendo a madrugada
despindo perfumes e o tempo
e seu segredo moreno

Um carro passa
levando consigo o instante
outros carros passam
intermitentes
buscam a manhã ainda longe e distante
deixando arruaças e fingidas negaças

No ar músicas cantam e cantam e cantam carências
sons afogadiços
onde ouvir o silêncio?
onde o silêncio andará de pantufas
onde andará o silêncio sem nem ao menos respirar?
(se houvesse o silêncio, mas o silêncio não há)
onde quer que se esteja crepitam sons
a cidade é um ser sangrando sons
antecipando-se à palpitação do coração
reverberando em mim
estranho refúgio sem memória
rebotalho de fantasias
um pote para as tristezas
mil ânforas para as alegrias
a cidade cochila preguiças
parolagens
futricas
enchendo o ar de sombras sonantes

As luzes dos postes amarelam a vida
olanzapínica e carbolítica
como os amarelos que amarelavam
meus pés descalços e o mormaço do sertão

A madrugada
a gaiola
aonde aprisiono e se debatem os meus poemas
que não são nada, não são nada, não são nada...
sentimentos fazendo burburinhos,
imagens flutuam na madrugada
metáfora e arremedo dos medos de um mundo antigo e vário
onde um segundo tem todo o tempo do mundo
onde o mundo pode estar por um segundo
por segundas intenções
por um apertar lento e digressivo de um botão

De vagar não se chega a lugar nenhum
onde as palavras fogem e retinem
esquecidas nas pontas dos dedos
nas teclas do computador
com puta dor
esquecidas simplesmente na dor lancinante
do verso que não se completa
transpassando o gesto e a ausência

Estou só
aqui nesta madrugada que me tirou da cama
e me chama
docemente
para falar de solidões e dos caminhos

Sou só
aqui nesta vida que me tirou de algum lugar
para onde ainda mandam cartas

Há tempos me desgarrei de tantos braços emudecidos
dos falsos sorrisos
das vozes meladas
da insídia e seus enredos
e ando sozinho
por que andar sozinho é o caminho
que me deram
quando atravessei a ponte
e o chão amalgamou-se aos meus pés
e me levou pelas estradas inamovíveis
e incognoscíveis do destino
solitárias e crepusculares
e o nome das coisas eu vou vendo devagar
a divagar distraído
acho quase tudo tão sem sentido
quanta coisa que eu não entendo
quanta coisa me dizendo o que sou
ou o que eu deveria ser
às vezes em sussurros
às vezes aos murros
às vezes em marulhos aflitos
às vezes em culpas
muitas das vezes aos gritos

Imagem: Christian Schloe