terça-feira, 24 de novembro de 2015

A palavra


a palavra
não a espera pela palavra
rito de barro e aflição
murmúrio e essência
finita em número
infinita nos sentidos
e no sentir
leve ou áspero
ranhuras a deglutir o inominável
que vem do homem só e canhestro
e paira sobre o dia etéreo
e intangível
e a noite infinita
e incomensurável

ah! se já não fosse tão insuficiente pensar
e tão indominável sentir
jamais sentiria a saudade que sinto
de um perfume em um aroma de um outro tempo
jamais amaria o amor que eu amo
neste canto silencioso
anteparo e aresta
do meu olhar
e desta comoção que por vezes me toma
diante da inquietação de ser homem
incerto e estranho

jamais me compadeceria da imagem acostada ao espelho
este outro e mesmo eu
desviando os olhos de mim
como quem toma o mundo pelas aparências
e as noites pelas vozes que me dizem os sonhos

jamais escreveria o desespero que escrevo
jamais choraria as lágrimas algozes
nem em tempo algum as secaria com as costas da mão
sem contestação

sábado, 21 de novembro de 2015

O instante redescoberto


o tempo
a demora
a ausência
o instante redescoberto
enquanto a flor brota e aflora
enquanto aguardamos os medos
enquanto a noite canta segredos
enquanto o coração incendeia os barcos da travessia
a lua acontece
os corpos se abraçam, amantes
a estrela pulsa, cai e queima
a pergunta permeia os ventos
o grito distende-se, cansado e alheio
repouso de velhas palavras, distraídas e indizíveis
e o murmúrio,
este punhal pontiagudo dentro de mim,
sem que ninguém ouça,
acorda o silêncio
e a inexorabilidade da vida
e da canção e do giro do mundo
ao redor da estrela

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Madrugada


as madrugadas modulam
lentas e plangentes
quando querem ser silêncios
o regaço passa breve e contente
sonhando a noite imprecisa
deixando o sussurro de sombras fragrantes
nos lilases da aurora
o vento passa e chora
e esconde-se nas folhas sonolentas e caladas
esconde-se no transmutável tempo
às vezes célere
às vezes vagaroso
sempre enganoso

sobre mim o céu escuro
sob o céu a madrugada
já não há quase ninguém nas ruas
nas ruas não há mais quase nada,
dormem,
à luz lenta e intermitente da vigília amarela que cai dos postes

sou o que sinto
minha alma não tem nome
nem imagem no espelho
minha alma tem todos os tempos
do que já fui
do que sou
do que serei
silêncio incendiado
urdido instante a instante

esqueço o sibilar coercitivo do vento
só o orvalho ressuma ternura nas flores
a aranha tece com sanha a sua teia
a noite arrasta a vida escuro a dentro
sustenta as cordas da rede
que geme inquieta

calo o livro
que já dormitava em minhas mãos
cesso a colheita
prescindo da escolha
a última palavra escorre da folha
e borra os meus dedos sempre inscientes

repousam a casa e o rio
só o desconhecer-me
devora a hora indescritível

fecho os olhos
a escuridão é uma canção
e, então,
danço a lonjura das palavras
tendo por dama a solidão

domingo, 15 de novembro de 2015

Paris, quem faz as guerras II?


"Pianista toca "Imagine", música de John Lennon, à entrada da sala de espetáculos Bataclan"

Emocionante!

Comovente!

Mas e daí?

Nós nos emocionamos

Nos comovemos

Mas, não entendemos nada do que a letra da música diz

Ou se entendemos esquecemos ali adiante

e a palavra não se faz ação


Imagine (letra traduzida)

Imagine não haver o paraíso
É fácil se você tentar
Nenhum inferno abaixo de nós
Acima de nós, só o céu

Imagine todas as pessoas
Vivendo o presente

Imagine que não houvesse nenhum país
Não é difícil de imaginar
Nenhum motivo para matar ou morrer
E nem religião, também

Imagine todas as pessoas
Vivendo a vida em paz

Você pode dizer que eu sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Espero que um dia você junte-se a nós
E o mundo será como um só

Imagine que não há posses
Eu me pergunto se você pode
Sem a necessidade de ganância ou fome
Uma irmandade dos homens

Imagine todas as pessoas
Partilhando o mundo

Você pode dizer que eu sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Espero que um dia você se junte a nós
E o mundo viverá como um só


Emocionante, né?

Comovente, né?

Mas, e daí?

Apesar da simplicidade e da clareza da letra há em nós um ser irracional e insensato que não nos permite vivenciar o lado claro da vida e a simplicidade de uma música.

Vinicius de Moraes disse, num trecho do seu poema "Elegia ao primeiro amigo": "...preciso ser delicado por que dentro de mim mora um ser feroz e fratricida..."

"Se você pede chuva tem que aguentar a lama também"

Enquanto isto os pianistas vão tocando em frente aos Bataclans sensibilizando superficialmente aos passantes e ouvintes.

sábado, 14 de novembro de 2015

Paris, quem faz as guerras?


o tempo instante início da bomba
é o mesmo tempo instante do seu fim
quem passou ensandecida foi a intransigência
quem se moveu foi a coação enganosa
de um ponto a outro
onde poderia caber vidas inteiras
cabe a morte
onde poderia caber
um poema
discorrendo a eternidade sem palavras
articulado no imponderável
do tempo e da sua inexistência
contumaz e genuína
cabem cicatrizes
e o gosto acre da loucura humana

a intolerância é medida do homem
escalavra o homem
com seus delírios de poder e superioridade
e suas bombas
e suas armas
e suas guerras
e seus deuses
e seus lucros
e sua empáfia
e seu descaso pela vida

pra quem não sabe
as armas existem
e matam
a bomba existe
e mata
a bomba é triste
a bomba é a amargura do homem
a bomba é a pedra na mão do homem que não cresceu
a bomba é o bullying dos senhores da guerra
a bomba é a fome e o lucro do ditador
a bomba aqui é terror
é o confinamento
é a incoerência
a bomba lá é honor
arquiteta da morte
sentada nos gabinetes
olhando o mundo pela cegueira dos países
onde a idéia de uma Babel impera
sobre a idéia de uma mesma e única Nação
semeia discórdia e ruínas
alimentam ódios e preconceitos
e continuam,
qual meninos arteiros,
atirando pedras (bombas) uns nos outros

a bomba de tanto cair lá
como um animal vicioso
fez-se verdade
na vaidosa e linda noite de Paris

é triste
tudo é tão triste
nesta sandice supra-animal
onde o humano queima-se nas fogueiras
dos sempre velhos e mesmos atos

a bomba não morreu em Paris
por que foi assim que o homem quis
por que o homem matou um dia
e não pode mais parar de matar

é triste
ver esta noite de novembro dissolver-se
e tornar-se vermelha
é tudo tão triste
como o lamento de quem
chora sobre o ódio
que ativará outra bomba
em Paris, Síria, Nova York,
ou em outro lugar
onde a covardia e/ou a bestialidade mandar

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Os sonhos brotam


os sonhos brotam nascem e florescem
os sonhos derramam-se
ou caem
e rescendem
os sonhos minguam
ou crescem
imagens tardias e leves
germinam,
anoitecem,
tateiam lembranças
convulsos ou brandos

o homem embosca e colhe sonhos
e os depositam no chão
palmilha medos
enganos
presentes nas névoas soluçantes de ilusão

os sonhos instigantes,
maduros de eternidade e devir,
debicados pelo pássaro
que nunca canta,
que nunca alça vôo
e cuja plumagem
esmaece enquanto o tempo
frágil e inconstante é solidão
são frutos da mais delicada tessitura

os sonhos instigantes
gotejam em cores abandonadas
e em fuga
memórias da vida atemporal
que se desfazem em desmesuradas noites
molhando o oceano envelhecido e hesitante

mas o mar,
há tanto tempo,
foi-se embora daqui
na penumbra acordada nos olhos sem memória
onde o menino que fui
sacode redemoinhos
e olha-os a caminhar rodopiando pelas ruas de terra
varridas pelo vento e a imaginação
permanentes barcos de fogo em fuga
sob a sombra de tantos tempos pousados
nos galhos secos das árvores
e nas sombras secas debruçadas sobre as águas
imerecidas do meu verso incipiente

a vida gorgoleja poeira
os passos, rumorejantes, já foram embora
depois de cavar as covas
guardando a semente para quando vier a chuva
e trouxer as noites cheias de sonhos
que a minha alma disser