quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

E um dia vamos embora


E um dia vamos embora
Quixote combatendo moinhos
da pretensa realidade
onde tudo não passou de um sonho fugaz
esperando pelo tempo maturar nos campos
para acontecer
tão imortal quanto a alma do homem
tão infrangível quanto este ruído eterno no ar
e a ausência do humano
pétreas sombras esperando em cada esquina
arrivistas do medo
esmagando os passos e os sonhos
fragmentos de palavras insinuadas
comovidamente silentes e doces
o gesto suspenso e dissolvido antes da forma
a esperança cega e estéril dos homens simples
o canto dos pássaros entre a neblina
pairando sobre tudo que deixamos pela vida
como quem deixa bugigangas pelo chão

E um dia vamos embora
fomos só a personagem que imaginávamos ser
personagens introjetadas
bonecos de ventríloquos
fantoches e mamulengos
não nos atrevemos
não levantamos a cabeça
para que os olhos pudessem ver a injúria
e a ânima pudesse fazer da injúria
a mitigação das dores, amparo para a luz do sol
e consolação para a alma sufocada pela razão
pelas máscaras
neste teatro onde atuamos
irrefletidamente
sofregamente
solitariamente
sem sequer vislumbrar a Pergunta
oculta na claridade
em meio a tanta ilusão

domingo, 24 de janeiro de 2016

Relógios


a eternidade não cabe
nas oligofrênicas engrenagens dos relógios
os dias amanhecem e anoitecem sem relógios
as noites seguem descendo pelas irrealidades
os dias arquitetam e arrumam as flores
e repetem com voz rouca os finais de tarde
há bilhões de anos
amanhece e anoitece
entre o claro e o escuro
entre tons de cinza
vermelhos rubros
enchendo o ar de estesia
azuis maduros
amanhece e anoitece como se respira
e se faz o mar
e a ave voa
e se faz o amar
e os barcos partem por que a maré está boa
para se partir
sem relógios
de horas e relógios nada dizem
por que nada sabem

o tempo, assim repartido, não existe
tudo falaz ficção
a que hora devemos amar?
fazer o verso?
cantar de pura emoção?
a que horas a rosa deve se abrir
úmida de orvalho e realeza?
a que horas a minha mão resvalará a tua mão...?
e então...
estarei ligado a ti para o agora e o sempre

Os relógios nada sabem do Devir de cada ser
o tempo rói os despojos das vidas
matraqueando incessante
de dentro do fosso falacioso das horas

segundos
minutos
horas
não fazem falta
dias
anos
séculos
milênios
sucumbindo nos calendários
não fazem falta
nada dizem
pura elucubração mental
só metem medo
e nos afogam em angústias
se tudo é imprevisível segredo
miragens, catarses
engodos que os dedos jamais tocarão
jamais contarão
por mais que imploremos
mas, todo dia e toda noite são uma esperança
de que o gesto seja feito
pelo simples fazer-se do gesto
guardado em nossas mãos
em nossos corpos
alheio ao tempo falacioso
antes de a paisagem se apagar calada
e partir devagar na canoa que nos levará
dentro do silêncio de casa trancada
posto que tudo antes de ser aqui fora
já é aqui dentro
aqui fora não há nada...
não há nada

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Que venham


que venham as manhãs
que venham as flores e as folhas sem pressa
e gravitem num beijo de pétalas orvalhadas
e nas franjas melodiosas do vento balouçando
ouça-se o canto antigo e inolvidável dos pássaros
que venha um céu embebido em tons voláteis de azul...
e de distâncias percorrendo nuvens
num céu embebido em tons voláteis de azul
que venham as sombras derramadas das luzes da madrugada
traçando geometrias
pelas vidas inaparentes, de repente
pelas árvores antigas e quietas dos quintais
e pelos dormentes arranha-céus
onde a manhã se alastra como um rio vertical
fazendo pedaços do dia irromper por entre
as colunas de concreto e aço e vidro
inundando a vida de enganos e devaneios
ou dando cor a incerta pétala de uma flor

que venha o tempo inconsútil
acordando flores nas sacadas
trazendo jardins suspensos e navegáveis
paisagens de momentos sem as inúteis horas
que arrostam rosas, lírios, bem-me-queres
arrosta a vida estonteada e perdida
bem-te-vi
pousado na platibanda da manhã incipiente
num lusco-fusco como uma flor de algodão no mês de março
a vaticinar em tom de canção: bem-te-vi, bem-te-vi
folhas caídas dormindo nos jardins
fazendo a seu critério o seu instante

que venham os outonos
que cubram-se os caminhos de folhas secas
policromáticas
em tons de terras úmidas
e ventos soprando em verso e prosa
e modulem a atmosfera para entornar
a intangível poesia
do primeiro movimento do dia
num mundo desatento
pelos ventos dos medos assustado
obliterado
e inabitável

domingo, 17 de janeiro de 2016

Hoje


hoje
enquanto tudo caminhava
rotineiramente
para a sempre e mesma sorte
acordei tropeçando nos sonhos que a noite deixou cair
sonhando com o esplendor dos dias da minha infância
galos cantando
de dentro do dia demorando ser madrugada
o cão dormindo
entre calados e cativos buracos que fez pelo quintal
a semi sombra das luzes derramadas pouco e pouco
sobre as casas
sobre as coisas
ainda sonolentas
e as vidas
deixando entre o sonho e o olhar que acorda
num tanto de indecisão
entre o dia já rodeado de murmúrios
e a noite ainda falando de escuridão
as sedes, os passos, os caminhos
sedes indizíveis
vagos caminhos
passos em vão
a ilusão que não se esvanece
e fica como um murmúrio do vento nos galhos
derrubando flores no cotidiano
balançando ninhos
reverberando lentamente gorjeio de passarinhos
a caravela do tempo circunavegando a aurora
e tantos mares insabidos
vazados de marulhos
e tardias lembranças de gaivotas

hoje,
não acordei a tempo de ver
os instantes antigos e sincréticos que trariam a claridade
nem a sentença do destino
onde folhas
árvores
deuses
o firmamento
toda a vida do universo deveriam ungir
a tênue luz amarela/avermelhada
de mais um dia ferido de pequenas ilusões
de criança falando com passarinho
apontando lua ao meio-dia
como se fosse o entardecer
e a vida não fosse o mistério a se resolver

hoje,
graciosa e pequenina
a lua saiu dos minaretes da noite
e pôs-se, clandestina,
em pleno meio-dia
no céu de um azul bem fininho
por nada
por fortuita vadiação
num dia sem nome
num tempo sem data
numa época sem estação
num tempo em que vivo
deslinde após deslinde
a incompletude da Origem
um dia depois do outro
que é assim que me faço
pedaço após pedaço
o tempo breve
sem certezas
o amor pedindo
o beijo leve
um perfume alvíssimo
inunda meu dia
até o próximo céu se apagar
por pura vadiação

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

E assim vamos vivendo V


e assim vamos vivendo
entrelaçando as mãos
simples e suaves
cingindo a brisa que trouxe
os benjoins e as verbenas
as horas amenas
a sede de completude
as brumas
a vontade de chorar
o poema indizível
o farol a nos mostrar o caminho
antes que o barco inscreva os sóis
na curva opalescente do horizonte
antes que se esqueça a rota e o porquê da viagem
momento a momento
navegando no mar sob a chuva
que cai de repente
da beirada do precipício incerto
da onde os medos e as miragens
lançam enganos
melancolia, dores e gritos
tendo de volta o silêncio
entre tantos quereres aflitos
onde espraiam-se as lembranças
de uma vida que se esconde da vida
uma vida que nunca existiu
pendoada de sonhos e gestos
de tantos carinhos incertos
de imperecíveis afetos
de um só acalanto
de um só canto
que até os olhos possam ouvir

leve
muito leve
sem razão aparente
a noite cai
inconsútil
e surge lentamente como miragem
e fuligem
como um manto escuro e sem formas
como um doce poema sem normas
depois da tarde
quando o tempo já foi embora
e a lua dorme amarela dentro dos vales,
dentro de escuros mares de vidro
nos labirintos das ruas
nas platibandas
nos ares

e assim vamos vivendo

domingo, 10 de janeiro de 2016

E assim vamos vivendo IV


e assim vamos vivendo
pisando a barranca vermelha
limite entre a terra e o rio
o pé na pedra e no limo
o pé no tempo escorregadio
esperando que amanhã seja o agora
esperando como quem ora
para o tempo imaginário
e inconstante que pastoreia os dias
e traz momentos e medos
rabisca e enche o ar de segredos
e a inconstância da vida para lhes decifrar
esperando a adaga da sorte a dilacerar a última reposta
em meio à cerração que adorna e engole
o contorno das manhãs singelas
os passos e as sombras dos passos
que andam sobre a solidão das luas
infiltrando-se incipiente pelas vielas

o pensamento a dizer-nos
mastigando o que somos
a voz balbuciada
e o grito tartamudeado
o ranger das portas e janelas
suavizado pelos ruídos
das noites que não dormem
e enchem de sons
lençóis e travesseiros
o soluço sufocando
aguardando o silêncio
(que não vem, nunca virá)
para se fazer ouvir
dentro do esboço das noites
dentro das noites a viver por nós
balanço de mar ondulando
num negro azul zonzo e a sós

a infinda luz do sol
percorre janelas melífluas
vaza de dentro de alabastros
alvorada aberta depois da noite compassada
e acalanto
a noite toda fez-se de um pranto
de olhos secos
e tanto, e tanto e tanto
e tanto sonho por viver
e por não viver
desencanto

a noite
o tempo
a distância olhando para a morte
a insustentável escuridão do dia
eu diria
que é tarde para uma lágrima
tão cedo para dizer alegria

a vida
toda a um canto
insonte, insone, insonhável
a vida vivida para a morte
tudo mais é imponderável

a vida é boa
a vida é boba
a vida é tola
a vida à toa
é boba
é boba
é boa

e assim vamos vivendo
entre a ausência e a lágrima
entre cantigas de infância
e os medos guardados no grito
inaudível
machucando dentro de nós

e assim vamos vivendo
entre o barco cansado e o porto
entre o fratricida e o morto
entre a fome e a colheita do trigo
entre o nada e as mãos abertas
num gesto de solidão ou de abrigo

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

E assim vamos vivendo III


e assim vamos vivendo
para ver o novo
e o avesso lento e antigo do novo
arranhando a madrugada
antes que esqueçamos
o gesto dentro da sombra estilhaçada
antes que a noite
e o céu espalhando noite
ocultem-se dentro do nada
antes que esqueçamos
que a verdade está
no quando e no quantum de cada ser
antes que desapareçam
absolutamente voláteis
no burburinho da vida
os milagres e as graças
e que o dia se ausente
e que o mundo se sustente
numa só pergunta
numa só resposta
e leve consigo a clareza
a pedir silêncios
na distância entre as palavras
e tempos atados aos momentos
da mais profunda ilusão

e assim vamos vivendo
caminhando caminhos emboscados
sem atentar aos passos dados
caminhos inamovíveis e mudos
misteriosos
agudos
insondáveis destinos
que nos perpassam
no refúgio do sonho
aparentemente
sem nenhum sentido
carentes de um porquê
e a vida, então, estremece
comovida e fremente
como rogo
como prece
na inquietude dos dias
tocados pelos ventos
que passam
e ardem versos
e cantam sonhos
e choram em silêncio
sem, no entanto,
nunca nos encontrar

domingo, 3 de janeiro de 2016

E assim vamos vivendo II

 
e assim vamos vivendo
colhendo flores
que não deveríamos colher
roubadas aos olhos e ao toque de outrem
sem pudor
pela ânsia da posse corriqueira
de um prazer ou de um desejo inominado
vendo partir o tempo que não morre
e nem se extingue
escorre
por onde passam os ventos em périplo
a caminho dos vales guardados
entre segredos vários e inexatos
deixando a eternidade acesa nos grãos da brisa
no destino sem regresso
deixando a espera desenhada
nas janelas entreabertas
e ofegantes como mãos colhendo sonhos

e assim vamos vivendo
tateando infindáveis rascunhos
esboços amarelando nas sombras
das ausências despenhadas
e do despetalar das flores
esboço de céus infrangíveis
das chuvas aguardando as tardes
da febre no chão e no ar depois da chuva
quente e olorosa

e assim vamos vivendo
sem sonho, sem utopia
acumulando um dia
por cima de outro dia
buscando algum sentido
onde só há a vida fria
da semente que sem nascer
                       [já era morta
                            [já morria

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

E assim vamos vivendo I


E assim vamos vivendo
a repercutir velhas histórias
conspirar novos espantos
conhecer o mundo sem tocá-lo
sentar-se à beira do abismo
calcular a queda de antemão
e ir se acostumando e se aferrando
a pensar antes que nos pensem

Deslindando o enigma,
refazendo e desdizendo o discurso,
esperando a incognoscível espera,
arrostando o destino,
tudo é o mesmo passo palmilhando
e escorregando nas terras depois das chuvas

Mares adormecidos dentro do azul
de transparências quebradas

Esquivos tempos
demasiadamente dispersos

Vida caminhando estradas,
bebendo a poeira esquecida
sob labaredas de sóis

E assim vamos vivendo

Sob os mistérios
e o nada
que põe a cegueira em nosso olhos
e o sonho
que consola a saudade
e a lágrima de se ter nascido