domingo, 28 de fevereiro de 2016

Somente dentro de mim


Somente dentro de mim
eu sinto que a vida,
a vida queima como agora
sem dentro e sem fora
a poesia não tem hora
nem cabe dentro do tempo
e, então,
eu fico nuvem
eu fico sol
eu fico um tanto de um arrebol
eu fico renúncia
e solidão
eu fico estrela cadente
eu fico, assim, sem razão
eu fico menino trêmulo
eu fico com medo do medo
eu fico mar silente e incerto
eu fico deserto e degredo
eu fico garrafa e mensagem
vagando em mares de azuis puídos
à uma e meia da tarde´
ou às três da madrugada
a poesia é carta ao vento
que dispensa de ser datada

A poesia me respalda a viver o meu suicídio de cada dia
e a prenunciar o que diz o vento à folhagem dos sentidos
sinos tocando e entardecendo riachos que não sei conter

Ouço, encantado,
esta estroante confusão do som dos pingos da chuva
tamborilando no telhado
quando o verso erra em meu pensamento
e as palavras se despegam
apaixonadamente
escorrem pelo espaço
onde as sombras da tarde traduzem-se,
pouco a pouco,
nas pétalas escuras
flores de uma noite
que acorda dentro de mim

Ouço, dentre o som ritmado da chuva,
este vento vivo e viçoso que traz o mar
e o fogo inescrutável dos mistérios desta fugidia eternidade
aonde minhas mãos compassivas
delineiam pendoadas linhas nas quais professo meus delírios
que afagam este cansaço
de onda arrebentando e sendo engolida pela areia
e eu fico aguardando o sal
manietar-se à cálida nudez das areias
e sinto-me livre
a caminho do esboço e da inocência das noites
pássaro cruzando a escuridão
carregando estrelas
e o sonho de ser, insistentemente,
o silêncio eloquente da remissão e da liberdade
outra vez
em tantas vidas
leves e silentes
adocicadas como os sussurros dos corpos que se amam
longas como o soluço do rio tocando o fragmento do mar
num comovente rumor
como uma lágrima de amor

Imagem: Steven DaLuz

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Sou nada


Acordam o que de pior há em mim
furam
e perfuram
inscientes
a dor sem resposta
o segredo sem tramela
a luz bruxuleante da vela

mergulho na convicção de ser tudo
que não fui
e duvido que serei
eclipse ou vento
ser humano
nem que seja por um momento
nada tenho de meu
abraço com os braços da culpa

sou nada
nunca fui nada
além de um amontoado de ossos, pele, músculos e vísceras
o que me faz sentir ser algo ou alguém é este sentimento
que me faz chorar de repente
cansado de ser adulto
insolente
prepotente
intocável
pelas tantas certezas que se me arvoraram no caminho
cansado de ser este homem
com saudade de ser menino
o que me faz sentir ser algo ou alguém
é este sentimento que me põe para dormir
nos braços exaustos de tanta ausência

há uma artéria pulsando no impasse da vida
na certeza da morte
cilada
engano
embuste
revelia contida no inescrutável da sorte

nada morre
o "fim" é um assombro inacabado
aprisionado
um nascer em um outro lado?
do nada, nada vem
para o nada, nada vai
os mundos e os homens inclinam-se para a luz
momento a momento
navegam
desenhando e contemplando um céu na varanda
prisioneiros deste universo friável
de inescrutáveis sortilégios

sinto ser algo ou alguém
na mão estendida para um amor que não vem
calmo girassol buscando o sol em olhares
fitando olhos lilases
arco-íris furta-cor
caladas estrelas decifrando a noite
decifrando o intrigante instante
que canta canções de bilhões de anos atrás
esperando que digam algo em tom azul
e eu leve comigo o teu rosto
no bergantim das saudades
que passa
nuvem lenta
punhal cansado da dor
das doloridas verdades

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Finjo dormir

 
Finjo dormir iludido
de que já não me dói quando me atiram a pedra
mas as minhas dores só param de doer letra a letra
quando a palavra assoma torta ou reta
e os meus dedos estilhaçam-se
dentro das noites
nos generosos dias
nos quais a palavra desperta e se fia
e invade os espaços
quando os pássaros pousam nas árvores
e, então, posso ouvi-los sem pressa
recolocando no ar as manhãs e os ventos
sobrepondo-se à chuva no meu peito

Nada somos para além da alma
mas há os que pensam que são alguma coisa
sábios homens
pobre homens
néscios homens
nada são além de um rebanho de restolhos
seguindo inconscientes de si
fração proscrita da realidade onde vicejam os ególatras
e onde os arrivistas se enredam

Finjo dormir iludido
enquanto o vento traz os graciosos dentes-de-leão
e a vida, então, flutua
sobre a neblina solitária
escondendo a manhã
e sobre este Nada secular
pairando sobre infinitos
que faz dos momentos um sussurro
quando deveria ser o mais audível dos gritos

Imagem: Charles Louis La Salle  

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Mentiras


Só paro para ouvir mentiras
quando as mentiras encantam o meu coração
e quando a palavra é mais linda do que o silêncio
versos possíveis ardendo entre brumas e escuridão
que apanho por aí
pego um, que vem no vento
perco outro, que cai no mato
não encontro... esquecimento
outros por aí me catam
e já nem sei o que digo
e já nem sei por que choro
meus olhos acendem silentes mentiras
minhas mãos acariciam a ilusão
da vida que assim vai passando
traquina maquinação
contando tranquilas mentiras
em meio à solidão

A palavra se eleva e aguarda
essência
semente
sentença
antes de ser dor ou prazer
antes de calar ou dizer
do amor tocando as margens
do rio correndo em teu corpo
do fogo na água a arder
antes de ser sussurro ou ser canto
antes de ser riso ou ser pranto
depois soluço
depois silêncio
depois sono cansado
das lágrimas
que ainda miram meus olhos
e não saram

Tanto faz
depois
tudo será depois
tudo uma balbuciante alucinação
miragens que vêm com a brisa
enganos do coração
tudo será mentiras
por ser irrealizado
tudo será o sonho
que por muito que façamos
apenas o roçamos
antes de retornar a ser imerso no Divino

sábado, 13 de fevereiro de 2016

O tempo e o guepardo


O tempo é ideia que se reparte
é pergunta feita ao espelho
equivocado escuro
insistente sombra
é pedra vagarosa
ou seta ligeira
atiradas
esperando a inescrutável morte
não se alteia
ecoa na cegueira serena e silenciosa que é não ser

O tempo envilece!

O tempo é do guepardo o movimento e o instante
que o leva daqui para diante
o tempo é as garras do guepardo fincadas na nossa garganta
desmanchando o frio gume do punhal entrelaçado ao destino
signo do movimento
mas não do tempo
que se aquieta na inércia e não se move
tal qual o silêncio que acontece sem mensuração
momentâneo e intermitente
a eternidade morrendo dentro da fuga e do medo
dos erros que mentem à vida
à impassível e torturante guerra das horas lentas
ao contumaz desespero das hora céleres
ou aos dilemáticos presságios
que enchem de sensações
e elucubrações
a vida
ou o que dela restou
dispersa diante dos vales íngremes e profundos
dos abismos esperando respostas

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Imagino


Senhor,
imagino campos de flores florescendo
colorindo e perfumando os caminhos
espraiados e sozinhos
apascentando a terra incriada
pela inescrutável iniquidade da chuva

Imagino, Senhor,
a pujança incendiada pelas águas
a roça quebrando milho
sob a dicotomia de um sol afogueado e noturno
fingindo passos perdidos num perdido caminhar
a colheita vagem a vagem do feijão
as galinhas e a serenidade ciscando
na inocência dos quintais
a vaquinha para dar a oferenda do leite

Senhor,
imagino crianças brincando
vendo o vento arrastar as nuvens
túrgidas de águas e imagens cognoscíveis
meninos de pés descalços pisando o barro
e a inflexão do silêncio acordado pelo sonho
crianças inventando mundos atemporais
e impalpáveis
e crianças comendo
e crianças estudando
os dentes todos, tolos... sorrindo
lembrando o antigo futuro
que se ergueu do chão sedento
angustiadamente crestado
e rachado pela soberba e a indiferença
esquecido pela sorte
onde pastavam agonicamente
a inanição e a morte

Lembro, Senhor,
das inocentes brincadeiras
(às vezes nem tão inocentes assim)
irremediavelmente irresistíveis
insuportavelmente inadiáveis
um pulo no abismo que mora em cada ser
em cada mão
que colhe estrelas
sonhos chuvosos
num sem querer
num sem razão
como o gesto da flor que pendula...
pendula...
e sem poder conter-se derruba a gota d'água
e transborda o mistério
a promessa suave e crível
da vida vicejando em sonhos
em tantos outros sonhos possíveis

Imagem: Christian Schloe

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Vaga a vida

 
Vaga a vida antiga e tardia
efêmera rosa vermelha
ramalhete de lembranças
âncora de ilusão dissimulada
sombra despedaçada
em vítreos cacos de neblina

Vaga a vida errante
com fome

Vaga o homem espantado
com fome

Vaga o cão espantalho
com fome

Vaga o grito sem origem
náufrago desolado em angústias
calado na mixórdia das dores
e na mentira dos espelhos estilhaçados

Perambulam pelo drama da vida saqueada
Crianças famintas esperando dentro da fome
crianças esfomeadas sentadas em cima da fome
crianças famélicas esmagadas embaixo da fome

Giram as engrenagens dos relógios sem memória
e da máquina com fome
mentindo para um mundo nostálgico
e suspenso
transido de medos
a nos devorar
com tantas certezas saqueadas
e um só destino
um mundo de arrivistas
um mundo de parasitas
olhando escarnecidamente para nossas lágrimas

Vaga a vida parva
mesquinha
fadada pelos instantes
sem alma, sem verve e sem nome