domingo, 4 de setembro de 2016

Cintilações da tarde


as lembranças afloram dos sonhos solitários
da chuva caindo sobre a primavera mansa e terna
sobre o silêncio dos versos que só falavam de ti
sobre um rio imperecível que só me levava a ti
sobre esta névoa que encanta os meus sentidos
embriagando-me antes que eu possa ver a luz
e o vôo soberbo dos pássaros rumo ao dia aberto
pelo aroma das rosas e pelo fogo estóico do sol

nada havia nas sombras densas e escusas que preparavam a manhã
nada havia no vento onde se escondia o ermo silêncio
não havia nada senão o teu nome no meu sonho
embaraçado na ilusão ignara
teu nome que vivia no murmúrio dos meus lábios 
na minha saliva e na minha sede perene de ti
teu nome que nominava os entardeceres do meu mundo

virão inúmeras primaveras e verões antes
do impressentido crepúsculo
e da tristeza e do pranto das palavras não ditas
dos gestos guardados
do carinho escondido entre as mãos que já não te tocam
antes que a memória de setembro
traga novamente a chuva fina e inconstante
molhando as folhas e as terras que não dormem
molhando a argila,
prisão e desespero das almas,
molhando o vento vacilante

nada havia no grito por vezes muito longe,
por vezes muito furtivo
como o orvalho que começa a manhã
e comovido promete quimeras ao dia
nada havia na música das flores
quando a bruma encobria o leito avesso do rio
e suas águas confundiam-se com o ar
e na vida talvez já fosse tarde e cansaço
e no mar talvez já fosse hora de se afogar

no amanhecer,
trazendo o dia lasso e nu,
enquanto ardia o nada no frio do quarto,
vindas de ti seis sílabas cuspiram o cuspe
do descaso e do desprezo
punhais atravessando o ar
lancinantes
o frio fio das palavras ferindo,
pungentes
a dor que em mim causavas não te comovia
nem te apercebias
eras contente em tua acritude

a tristeza consumia este final de primavera
que ainda sendo flores, já era tanta solidão
frágil sépala inclinada a se esboroar
quando será dia novamente se neste momento
a noite tocou-me a pele e os sentidos tornando-me escuridão?

os segundos riscaram as horas
com cacos de vítrea solidão
as sombras arrostaram a primavera
colheram o gorjeio dos últimos pássaros nas árvores
emudeceram ninhos onde faminto de ti eu clamava pelo teu amor

uma a uma em uma outra manhã será primavera
e o estrídulo silêncio falará das cintilações das tardes
e de girassóis tão antigos quanto os versos que te fiz
todos tão inquietos e faiscantes de sussurros e carinhos
pousando,
refletidos na flor fugaz dos nossos quiméricos instantes
e nos olhos teus olhos de papel couche

escuta
a tarde que ardeu entre nós
e as nossas solidões infrangíveis e mitigadas pela luz cinza
e calcinada que entrava pela janela
deixando o gosto fechado e amargo de um novembro
que caminhou irresoluto
para o precário e tangível adeus
deixando versos escritos na insônia de cada poema
deixando os fragmentos da vida
tão lenta por terminar

sábado, 3 de setembro de 2016

Final de outono

 
final de outono
final de tarde de outono
as tardes são estes afetos irredutíveis de poesia
que podes ver por entre a pétala e o orvalho
mudos
silenciosos
insofismáveis
são o inefável momento onde os rios e os mares se encontram lentamente
e o azul do céu tinge a saudade
e a chuva cai dos meus olhos

ao longe o pássaro canta em algum jardim
à fogueira do sol
às folhas amareladas
e ao inextinguível outono impregnado de transparências
dorme nos mares o vento
e teu nome
úmida ausência
esquecimento
sombra de um passado
e de uma canção insinuada pela memória
pela noite falaz
pelas tardes de intermináveis vermelhos e violetas
de aromas de jasmins levados pela brisa
e pelos suaves passos dos teus pés em meu corpo,
em minha alma
e no nume que a alimenta

os ventos derrubam as folhas que balançam no ar dourado
esbatido pelas sombras dos galhos vergados pela espera dos séculos
e pelas palavras que agonizam escondidas nos gestos
e na fragrância fugaz da lembrança do teu corpo

o ar se enche de cegos sussurros
tépidos segredos
nada aconteceu
o amor foi tão frágil
tão frágil como pode ser frágil o carinho desolado
como uma efêmera tarde
onde rosas brancas florescem por te recordar

quando tu te fostes andei caminhos incertos
vi teus olhos negros em cada céu que emoldurou as noites
ouvi teu riso
tão diferente das minhas emoções
que nestes dias de outono esperam
as cores plasmarem flores nos jardins
o vôo do pássaro despertando a praia
e a solidão sem destino
e tudo não foi mais que um amor sem nome
escrito todos os dias
pela ternura dos meus dedos afagando os teus cabelos
pela essência dos sentidos
pelo soluço que ficou
sem explicação na poesia

e tudo vivi como o menino sozinho
que ama o outono e seus sortilégios
e seus soluços evolados nos sonhos
ama
ama a noite e o bálsamo destas noites
silenciosas e frias
onde a minha alma ainda acaricia a liberdade dos versos
que ouço
sem princípio e sem fim
nas antigas vozes
que por entre as brumas
falam de amores
e cantam
como cantam os rios
como cantam as folhas que o vento derruba nos rios
e levam consigo cores de um dia resvalante
suave
amo a noite
em cujas margens em sonho me deito
e me imolo com o punhal azul do teu nome
e recito a dor do punhal azul do teu nome
como quem diz para o mar
das terras perdidas
e dos antigos poemas riscados
letra após letra no abandono das noites passadas
e nas estrelas imaginárias
onde a dor tinha morrido
enquanto na madrugada já se ouvia
o amanhecer por trás da neblina de outono
e o som das folhas secas que suavemente
enchiam o ar de nostalgia
e de manhãs com cheiro de terra recém molhada
pelo orvalho que os anjos espargiam
no mistério
nas palavras
e nas pétalas entreabertas
dos poemas