segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Sonhos de Mara

 
o céu de um domingo claro de junho
derrama os seus azuis derradeiros
nas águas regressivas do mar
o dia trouxe memórias e canções de infância
segredos e lembranças adjetivando momentos
momentos recitando os poemas que um dia fiz para você
declamando teu corpo
misturado ao meu mundo insondável
profundas águas de um mar
penumbra sombra escura
da solidão bipolar

olho, através da janela,
o inverno passando no perfume de uma flor temporã

pelas frestas das janelas entra a brisa úmida de ilusões,
fria e muito triste,
e, no entanto, olorosa
rumorosa
o vento ondula suas vestes de cetim e infinitude
o silêncio esconde de si o que de si dizia
e não responde o que tinha para dizer ao dia
o silêncio era um poema garatujado pelas folhas
que caíram e secaram no chão pisado pelo outono sem flores
que virão na primavera?
quem dera!!!
se tudo embaixo do céu é só este aguardar,
esta espera
se tudo embaixo do céu é somente este sonho vígil
estes sonhos vetustos de Mara
se tudo embaixo do céu é tudo ilusão e quimera

olho, através da janela,
o enigma do fim do dia que já vem engastado na manhã

o dia esbate-se nos arabescos bruxuleantes da tarde
a tarde sacoleja no ar as primeiras sombras
e demora-se
e esmera-se esboçando a noite ascensional
ascendendo da vertigem dos morros
ao longe, ao longe...
ou derramando-se no quintal
longa e solitária
levantando-se sobre os sonhos que trará
negaceando as vidas com os escuros estilhaços
de um crepúsculo fundindo-se à terra
derrubando com ternura o mesmo sol sob o qual eu te amava

folhas amarelas e ocres ainda caem nos lentos caminhos efêmeros
caminhos sem voz
calando palavras que não são mais
enquanto a noite incognoscível volteia acesa
lentamente
negra mão
fazendo acalanto aos quintais

domingo, 11 de dezembro de 2016

Pedaço de solidão


padeço de tanta solidão
sofro da vida
pedaço de tanta solidão
desconheço jardins
aguardo as cores
das flores levadas
em pervagantes nevoeiros
caminhando em silêncio
e embargando a vida,
tolhendo a vida,
entalhando a vida,
quimérica
ilusória
morrente
e irremissivelmente
incognoscível

Imagem: Fernando Figueiredo

sábado, 10 de dezembro de 2016

Murmúrio lento

 
murmúrio lento
a noite é a impenetrabilidade do muro
a noite é o gemer infatigável do vento
a noite é uma fogueira de ébano e prata
me chamando
nesta noite posso ouvir o mar
e me embalar no mar
                                   precário mar
e me embebedar de mar
                                       anacrônico mar
e sentir a candura gélida das espumas das ondas
e morrer-me o pouquinho que se morre a cada dia
ouvindo o mar que murmura em infrangíveis rochedos
a água e o sal escorrendo pela pedra,
escorrendo pela noite silenciosa e plena
escorrendo dentro de mim
o som das ondas clareiam
a noite fulminada pelo escuro
e o imenso cansaço irremissível dos meus olhos

no silêncio sem fuga da tua ausência as palavras inventam perguntas
quem é esta que ficou subsistente no retrato inútil?
                                                                                 fútil?
quem é esta cujo nome ondula como miragem no calor do deserto?
de quem são estes olhos que vejo quando fecho os meus olhos?
quem é esta que ficou como uma anotação,
esboço para poemas impossíveis?
já não sei
já não sei de quem são os passos tristes que andam em mim
já não sei da inquietação dos meus caminhos invioláveis
já não sei
se tudo foi ilusão
já não sei se eram mentiras
ou jardins famélicos e delirantes do coração
e suas flores fictícias
recendendo no ar este perfume dos gestos
deserdados
                   tocando de leve
                                             o passado lambendo a  minha mão

agora ficam as entrelinhas
fica esta saudade mendiga
ficam, latentes, os poemas a escrever
e esta tristeza que regressa
                                            tão quieta
pressentindo o momento de te esquecer

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Como você


o outono veio outra vez...
agora sem você
trazendo as frágeis horas aguilhoadas
articulando as longas noites e os acres dias

o perfume do vento palpita
o desamparo do tempo passando
soa lembranças na folhagem
esbatida sob um inconsútil sol de abril
no silêncio que perpassa a fulva manhã
os dentes-de-leão, levados pela aragem,
emprestam ao ar uma leveza tátil e friável
as folhas secas se debruçam
sob os níveos véus do nevoeiro ofegante
ante a beleza da manhã
e caem

ressumam os versos que a manhã decanta
nos jardins onde pululam os pardais
nos quintais onde o vento cantarola
tocantes cantigas de infância

correm descalças as lembranças
pela praia melancólica da tua ausência,
dos nossos mares,
agora exaustos,
das nossas ilhas,
agora tão doridas
dos fragmentos absolutos do nada
agora tão permanentes

a agonia das espumas
tecendo rendas nas ondas
querendo ser elegia
no prelúdio do verso
no momento infinito e rumoroso dos oceanos
acorda, suavemente, o silêncio
das praias entreabertas sob um sol latente
esculpido pela lassidão da solidão

minha dor ainda espera
o vento passar
e trazer as palavras que eu não te disse
palavras encobertas pelo silêncio envolto em ausência
palavras tão ternas como o cansaço dos corpos
depois do amor
tão leves
como a brisa que derruba a flor dócil sobre o teu nome
inesgotável como as madrugadas sem você

a poesia que arrulha em minha alma,
em minha vida,
não acontece
a palavra se esconde
entre o outono branco da página
as veredas inacessíveis da melodia insonora
e dos ideogramas de um haicai
escrito como a chuva que cai
e bebe a sede dos versos molhados pelas cores das flores

um vento absorto e distraído
se equilibra sobre a página
               [ainda em branco
minhas mãos, timoratas,
flutuam sobre sofismas
no fim das premissas
há algo vago
como uma saudade vígil
como uma noite incriada
como a tua presença
dentro da minha solidão consistente
como a angústia de estrelas sem céu
ou algo assim,
enigmático e intrigante,
tão imperecível em mim
como você

Imagem: Edgar Degas

sábado, 3 de dezembro de 2016

Outono em maio


manhã de outono
a névoa,
como um lençol de renda,
cobria os ares frios da manhã de maio
fazendo tremer o dia lá fora
a manhã sem vento,
clausura das horas,
deitou-se com a lua
e o sol,
nascendo como "en el sueño",
esqueceu-se a habitar os lilases
que, despertando, desenhavam o ar
fina adaga
que atravessava as nuvens
demoradas e cegas
e que perpassavam
uma a uma
como soluços de uma dor
como o tempo incerto
habitando dentro dos séculos
como o dia de outono
que a minha solidão vislumbrava
do outro lado do espelho
de onde alguém que eu não conheço,
ensimesmado,
me olhava para além de mim
os olhos carregados de passado
e de destino

tristes olhos
são agora neblinas

um dia sonhei que eu era
todos os sonhos de um menino
que ainda insistiam em sonhar-me
nesta manhã de maio
como os pássaros que olho
pelos vidros da janela
e são tão reais quanto o instante inominável
que passa
desfazendo o meu olhar
como a praia, singular, desfaz a onda
e o pássaro desfaz o ar na tessitura do vôo
repleto de silêncio e tempo
e de ilhas subindo da tarde rumo à noite
oscilante de tanta estrela,
constelações,
desertos onde a lua é de impenetrável  beleza
e tudo aquilo que escapa da textura da noite
é encanto durante o dia nácar
de um maio róseo e marfim

as gotas de orvalho esplendem ao sol
e rolam pelas folhas
flutuam
e caem
arrepiando a terra no imerso do toque
transparente
fica em mim este áspero aroma da terra úmida
da terra que o orvalho molhou

é maio
e me embebedo impunimente
desta manhã
das fartas cores da aurora
e do vozerio dos pássaros
às seis horas da manhã
subtexto dos meus olhos
e da tua voz tardando a se exaurir dos meus sentidos