terça-feira, 26 de setembro de 2017

Aniversário


mais um agosto
desmedido em dias e noites
ilusões e atalhos irreais
que me trouxeram até aqui
na batida surda de um tempo antigo
e que já pressentem-se
como amantes
ao início próximo da primavera

a alma despe-se dos enganos da vida
ainda traz na tessitura do ser a brisa inebriante
e o perfume das flores noturnas
e o plangente repicar dos sinos
meditando a imprecisão das horas
e a pulsação da vida

o campo florido do verde dos pirilampos
que se estende e ilumina a noite ditosa
vem da candeia
de um céu cintilante
rendilhado de flamantes
estrelinhas mergulhadas no ocaso

a lua traça no céu
um arco de linha nacarada
sobre o fundo negro que se
ergue dos montes adormecidos
na noite diáfana
-demora-se a chamar-me

fica no ar o som palpitante das palavras
e suas ausências doridas
se escondem
e tanto de melodia
se esvai
na armadilha derramada do dia

a poesia dorme, concisa,
no colo nu das folhas úmidas,
nos braços enrodilhados dos pingos da chuva,
que desenhavam arabescos nas janelas
e levavam a minha e a tua vida 
como o incansável dizer adeus

uma ave adeja na noite sem nome

solitária, atravessando os fios finos dos rios

chove
e o pássaro traça a hora carmim de um momento sem fim

hoje a chuva não cai sobre os telhados
e não junta seu som
ao som bom do barro das telhas

hoje a chuva não escorre
pelas ruas de terra
nem pela sombra negra,
indefinível,
áspera e sibilante do crepúsculo vermelho

não deixa no ar o olor quente
de terra molhada
e dos passos embriagados que caminham
sobre as águas inexequíveis

não há canteiros
nem flores
nem cores
onde vicejava a eternidade dos sonhos
e da vida
que a chuva, então, avivava

hoje a chuva é o instante
sem a cor do sonho
sem as memórias e as histórias
e as fábulas
interminavelmente azuis
da imaginação
que pasce num mundo
onde a semente espera latente
e longe dos segredos dos meninos
reprisados noite após noite

o momento passou
trazendo a obscura noite dos sóis
sobre os quintais

busco em mim
o que eu fui
o que eu era

esta não é a primeira primavera
nem a última lenta agonia
que os meus olhos soluçantes
vêem passar

busco-me entre as flores do passado
lá onde a vida nunca deixou de ser jardim
onde as flores balouçam, suaves,
aos pingos da chuva
e que balouçam, também, os labirintos do meu mundo

oh, doce flor do jasmineiro,
a tarde chora outra primavera
espargindo aromas voláteis,
derramando folhas e flores
levadas pelo vento
para além das palavras e dos signos
e do encantamento

outro mar
caminhando para as areias
outro tempo
desapegado e incomensurável
entre as mãos
molhadas de ventos e de cores
outra solidão
com a qual finda-se o dia
e começa outra poesia