quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Enternece

 
enternece ouvir o amanhecer do dia
escorrendo pela janela
a luz devoluta e intocada,
morosa,
levantando-se da noite onividente
rompendo o escuro do mundo inocultável
lançando instantes
sombras nitentes
e gestos concisos
incendiando o ar frio e surdo do inverno

enternece ouvir os pássaros cantando
na manhã que se levanta retentiva
lentamente
inconclusa
intangível
encharcando o ar repleto de perguntas

enternece ouvir o silêncio dormindo junto ao teu corpo
recitando a madrugada
acalentando a solidão que invento
para os teus olhos escuros
como a noite que saciou o nosso amor
morte desfeita no inconsolável gozo
prelúdio da vida nascida entre as tuas coxas
rumor de pele arfante
o beijo aquietado em teus lábios
o desejo derramado
em tuas mãos espalmadas

enternece ver o amor
dormitando em teus braços nus
poemas sem rimas
reinos sem rei
tecendo eternidades
entrelaçando o cansaço dos amantes
falando sussurros ao teu ouvido
despindo o perfume dos nossos instantes

sábado, 25 de agosto de 2018

Vem


vem,
e traz contigo as folhas caídas
traz contigo esta saudade que acabou de acontecer
traz os teus olhos para eu ver
a noite clarear o mundo
as rosas acordarem os passos ledos da madrugada
traz o silêncio
e a quietude das nossas mãos enlaçadas
no instante do amor

vem,
e deixa escorrer tua seiva
em minha boca cativa do teu gosto
amiga, amante, poente
deixa-me beijar o teu rosto
e dizer sempre e tanto que te amo
um te gostar tão contente
pássaro sem destino que sou

vem,
dormir sonhos profundos
depois de misturar os nossos gozos
depois de misturar nossos mundos
depois de repousada a madrugada
vem secar a lágrima que nunca se derrama
posto que a vida é trama
e esta paixão que é tão pura
deita-se conosco na cama
beija teu corpo e jura
carícias e silêncios
soluços cravados em tantos ais
sem nome
em tanta sede sem fim
do que de ti há em mim

vem...

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

59 anos


venho de tantos agostos
venho de tantos desgostos
de tantos sonhos insondáveis
o tempo passou, imponderável
são inescrutáveis os caminhos pelos quais caminho
procuro-me nos dias e nas noites de angústia e solidão
e, então, não sei quem sou
perco-me diante desta vontade de partir
sem ter lugar para ir
sem ter um lar para aonde eu pudesse voltar
este desejo impossível de ser além do que sou
este sentir-me miserável na voz imperceptível de um anjo caído
não sei quem sou
tenho um tédio enorme da vida

o tempo passou, inelutavelmente
sibilando saudades
melancolias
derrubando as folhas das árvores tardias
levando-me, rio caudaloso,
em busca de um mar portentoso
são inescrutáveis as palavras indizíveis
e misteriosas do destino

trago em mim este olhar de melancolia
este costume de amar de repente
esta inquietude temente
diante dos véus da alma
este desassossego dentro das noites rumo à aurora
que se arremessa dizendo tanta melancolia
este chorar tardiamente diante da angústia
e da agonia que estremecem em meu peito
esta saudade inefável do que foi ontem um menino

o tempo passou, senciente
o tempo passou inocente
deixando lágrimas e risos
deixando caminhos concisos
deixou, ao passar devagarinho,
o meu olhar triste e sozinho
deixou esta vontade incontida
de chorar por tanta vida
que passou sem eu notar

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

A ti, amor

 
faz frio
chove
a noite dorme
enquanto a madrugada espera o teu riso
o murmúrio da chuva lá fora declama silêncios
o amor fugiu com as estrelas
penso em ti
ainda te amo
ainda amo teus olhos negros como esta noite
negros como a espera do impossível tempo de te amar
e te ter em meus braços
nas noites que dormem pensando em ti
nas noites que doem pensando em ti
nas lembranças mastigando sonhos
e te ter em minha boca
e me escorrer lentamente
no eterno jardim dos teus mamilos
enquanto a madrugada roça o dia
e a corda da noite ainda diz para mim eternidades

tu és a mulher impressentida
a espera semeando esperanças
diz segredos para os meus medos
diz tanta poesia antiga
nos versos dos teus cabelos
e, então,
cantam os pássaros entre o sol e a neblina
escorregam os sonhos nos teus olhos de menina
bebo de ti a língua
entumecem as muralhas doces dos bicos dos teus seios

ah!, amada
para ti fiz o poente
antigo como a consumação da tua ausência
como a miragem de uma lua cheia no deserto
para ti fiz os astros silentes
fiz a luxúria do sol
fiz uma lua nitente
fiz flores das minhas dores
no teu amor fiz-me presente