sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Palavras efêmeras

Há momentos em que sentir
é como a ausência do postigo
por onde poderia, se houvesse,
infiltrar-se a voz melíflua do poema
É como a carência das manhãs transcedentes
e o constante perfume do orvalho no ar
É como a garrafa lançada ao mar viajando
sob estrelas que por sua vez viajam o éter
trazendo mensagens (poemas?) do inicio das eras
É como a solidão que se instala transbordando
tudo que eu ainda não disse/não fiz
É como o som das insidiosas máquinas de guerra
que ca(n)tam as velhas canções
e reverberam a cantilena de velhos discursos
É como o choro silencioso,
sem gesto,
sem destino,
sem começo
e sem fim
É como um labirinto
infinito
onde a esperança repousa ingente
É como a inelutável noite
que envolve e acorda vendavais
e a chuva cai
parando o tempo,
revirando passados
reverberando ao som do vento nas telhas
E, afinal, que querem as lembranças?
Querem um convívio forçado
estes sentimentos que tombam e vibram
Não sei conviver
Há sempre razões definitivas,
certezas indubitáveis
e a noite que cessa
em todas as janelas
onde a parca luz amarelada
agoniza junto com a minha emoção
Onde as imagens se evolam
e o tempo é um truque de um mágico
que transforma a eternidade
nestes fugidios instantes
Às vezes instantes longos,
páginas em branco,
às vezes cheios de emoção,
umedecidos de suspiros
que o tempo folheia impunimente
A poeisa estremece o singular
mistério da noite
e dá ao meu sentimento
este invisível caminho
e esta inefável possiblidade
de anotar e rabiscar
até perder a razão
e colher das flores as cores
e o perfume inocente
de um verso que chora
ou que ri comigo
de uma realidade que só existe nele,
no verso
Eu o olho e o ouço como
um menino me olha e me ouve...
como se me conhecesse
há muito tempo...
Um tempo em que só havia poesia
no acaso inseguro das manhãs,
na tarde que me visita
e me espera nos jardins
onde flores de papel sorvem
as palavras que dizem da brisa
crispando as águas do rio,
bebendo as pequenas ondas
que desaparecem na areia
Houve um tempo em que tudo era poesia,
madrigais, odes, elegias
Versos inconsúteis
escritos à cinzas
nas páginas da distância
e dos momentos onde sentir
é o escorrer da chuva
no silêncio dissoluto do espinho
da rosa que não há
e o perfume da rosa, esbatido pelo vento,
ondula em teus cabelos onde dorme a noite
O vento argumenta sua quase tristeza,
arremete, debalde, as naus contra os portos,
acorda meus velhos sonhos sonolentos
e empresta-lhes a face de uma lua cheia
de um dezembro que ainda não veio
Há momentos em que sentir
é só como estes sentimentos cativos
e estes caminhos cobertos por folhas secas
caídas com o vento e com as chuvas
nas madrugadas onde me esqueci
e me esquecendo
o tempo, possesso,
me resgata deste teatro
e da contumaz mentira
que transforma o meu hoje
em um ontem irrefreável
acumulando-se aurora após aurora
ansiando por ser poesia e liberdade
Nestes momentos em que sentir
é como o menino jogando as cinco pedrinhas
na praça deserta
antes de decidir morrer
Quando eu me for qual flor brotará?
Branca, vermelha, amarela, lilás, azul...?
Que importa?
As flores brotarão e levarão
o pânico da minha noite
e atearão fogo à minha suposta "poesia"
incorrigível e alquebrada
sentindo o que não sente
virando o mundo às avessas
antes que a aurora refreie
a voz do poeta  
e este, então, adormeça

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Escrevo a poesia que ninguém lerá

Ao longe a música chia
no antigo gramofone do dia
quente deste final de novembro
apagando o trinar dos passáros
que os céus levam até o mar
debruado com as velas ao vento
dos barcos executando os acordes
das canções de alguma infância

Gaivotas voam acima dos meus medos,
acima das canções inacabadas,
da angústia inútil de não esquecer
e da poesia escrita na bruma da manhã
estampada na primeira hora
atada ao dia que veio com o vento
na primeira flor
na primeira dor

Escrevo a poesia que ninguém lerá
Escrevo para as sombras
da minha infância
Escrevo porque sinto
e porque a palavra me liberta
E é esta é a minha culpa maior:
dizer o que não fui,
falar do inapto que ainda sou
Só o que sinto
e o que minto
de mim para mim
é o que fica de mim na aléia
por onde caminha o Mistério
na poeira quente das estradas
sem encontros,
nem companhia

Ando a olhar para o céu
buscando no trilar das aves,
os pássaros origami
que me habitam
e me trazem, assim,
este amor impossível
pela coisas instadas,
pelas estrelas
e seus poemas,
que não se extinguem
e movem-se sem cessar
ao nosso encontro?

No velho espelho contemplo
a chama da infância
Tuas mãos pequeninas
aquecidas ao sol
de um inverno ofuscando,
os teus olhos negros,
teu corpo recendendo
à paixão e à ternura

Da janela do quarto
ainda vejo dormir a noite
Vejo dormitar o passado
sob a luz de candeia
de uma lua iluminando a alma,
sem, no entanto, separar
a solidão destes versos
que me sopram

Os pássaros regressam de muito longe
atravessam a noite,
inocentes,
desfazendo o silêncio
com o branco das suas asas
Procuro no escuro,
tateio suas silhuetas esguias,
da onde virão?
Trarão um ramo no bico?
Os pés molhados de mar?

Em meio as estrelas adormecidas
a lua irrompe pela janela dos sonhos
Encosto a mão na face molhada do sono,
digo um segredo,
calo um grito,
sussurro o desejo de partir,
sentindo a areia fria das dunas
como se a areia houvesse sido o meu mundo,
só e esbatido pelas gotas de sereno
que serão o orvalho da manhã sem nome
e que não demora a chegar na praça
acordando os pombos e os seus arrulhos
balançando as matas ao rumor do dia
lançando as primeiras gotas no mar
resplandecendo nos rochedos
caminhando para o verão
perfumado de primaveras,
refletindo luzes de outonos,
sob um céu nacarado de inverno

As nuvens passam singrando os céus,
barcos de algodão,
rendas no jardim onde brotam
os versos que podem dizer às almas
o ouro da liberdade latente no átomo
imarcescível de cada novo dia,
abstrato como o papiro
a escorrer as palavras do que seria
um poema
ou a chuva caindo
                  errante
                  e terna

sábado, 24 de novembro de 2012

Cansaço

Os pés afundam neste cansaço
Afundam no chão que falseia as folhas
derrubadas pelos longos ventos
que as esquecem

Meus olhos pressupõem o reflexo esbatido da luz
Supõem a noite e uma última canção
Supõem estrelas,
quando a noite se abrir
e por detrás dela a lua se debruçar
por entre o sol e o mundo

Diante destes mares
os pés afundam no cansaço
da areia úmida de silêncios
e de poemas traquinas
e insofismavelmente puerís,

O cansaço se arrasta no tempo,
metáfora inelutável da vida,
vento desbastando as arestas
das sentenças,
fragmentos de palavras
entretendo a minha noite indistinta,

Brinca com teu nome
esta voz em mim que te chama
da greta da janela fechada
por dois traços de lápis cinza
riscados à guisa de tranca,
como as sombras que perduram
no trêmulo espelho das águas

Às avessas restam a tarde
e a chuva caindo como linhas dissolutas
Resta o gesto e o pulsar impreciso
das horas vazando a bruma da noite
que esconde o mar inconcluso

Ante a palavra que não veio
perdi o poema
A brisa passou incendiando
o silêncio
O verso ficou entre os espaços
da página em branco
onde a folha absorve o crepúsculo
incolor
e a ausência bêbada das sombras
douradas que esculpiam
as matas,
a vida,
as pessoas,
os passos nos quais me perdi,
na luta,
na trama,
no sopro,
no barro
onde não vingaram os girassóis

Quem se não o meu cansaço teceria
o que no coração poderia
ser ilusão
ou poesia?

[...]

À tarde o vento soprou, afável
A chuva choveu pouquinho e dispersa
                                              (dispressa)
A noite chegou de improviso
Trouxe lembranças,
algumas perdas,
um breve baque surdo nas águas
e os olhos límpidos de quem
já vê a primeira estrela
nimbada de um sereno fino

Chegaste...
Ó tempo sem volta,
erguido no ar como quem dança
e seca os olhos molhados
no ardor do sonho adormecido
nas palavras do menino:

"Era uma vez uma princesa
  no meio de um laranjal..."

[...]

Inicia-se a madrugada
Murmúrio e silêncio
Regressam os ventos
Faz-se a espera
dolente de uma solidão
que pergunte dos meus sonhos
e da espera,
sob a luz enebriante de uma
lua de novembro,
faz-se o cansaço

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

O tempo não passa

O tempo não passa
neste rítmo miudinho
com que a vida anda
neste espaço que defino
como meu
e que se evola na neblina
densa que acorda as
desmesuradas manhãs
e seus sigilos violados
pela vida que pulsa
estrepitosamente
vasculhando na memória
momentos elididos pela
distância

Cá dentro urdo os fios
dos meus sonhos
canto o meu canto
ressumando a paisagem
e os pequenos botões de rosa
que as gotas de orvalho
matizam reverberando os tons
que dormem na névoa
imóvel da aurora
dissimulada
nas arestas do dia
quando a luz se esbate
desfazendo-se na
imagem refletida no mar

A brisa sutil vinca a areia
esparrama o dia
encanece as sombras
de um futuro
e de vespertinas horas
esboroadas

O tempo não passa
Ao longo da caminhada
fica o talvez
na poeira ígnea
a arder nos caminhos
e no mormaço
que dissolve no ar vacilante
a vida e as coisas
tremeluzindo a monocromia
das sombras de uma primavera
distante

O tempo não passa
e é cada vez mais longe
o imponderável futuro
cada vez mais incerto
o incognocível presente
cada vez mais
perdido no cicio das brumas
o passado

O ar agoniza imerso
na tarde esbatida
pelas réstias de luz
e pela melancolia que
escorre pela luz baça da tarde

O tempo não passa
além da iminência do silêncio
cativo das imarcescíveis horas
transmudando o
palpável horizonte
escoando na brisa trôpega
perpassando a ilha
desvelando morros e encostas
desenhando segredos superpostos
na junção de sombra e luz
suspensos no ar
entre a primavera e o verão

O tempo esmaece e esquece
teus traços
e tudo aquilo que ficou nos versos
de uma poesia tão breve
nas estrofes que as noites diziam

Hoje, ao invés do afeto,
há silêncios e calafrios
e este tempo sardônico
impalpável
que não passa...
não passa...
não passa

sábado, 17 de novembro de 2012

A rosa amarela do dia

A rosa amarela do dia
desliza na manhã 
de um mundo velho,
vago,
sequioso
O amor não é poesia
no velho mundo abstraído
O amor é folha de
outono,
adeus,
passos de nuvens,
rumo aos teus olhos
negros
O céu, roçando o mar,
tece arco-íris
na poeira úmida
das cores condensadas
na miragem das praias
à deriva
Os ventos balançam
as folhas laceradas
por este inverno
de horas melancólicas
A um canto
há um grito
que ao meu canto
desvirtua num fragor
plangente

Vi a rosa amarela do dia
deslizando na manhã
por entre os morros
dispersos ao longo
da vida que desliza
sob conceitos e
palavras sem nome
Tudo caminhando
lentamente
Perpassando a manhã
o som de um sino dobra,
circunspecto,
embebendo os olhos
e apascentando corações

Um sol, recriado no lago,
arde em chispas
ao murmúrio das águas
A brisa azul esvoaça
o amarelo do dia
Cores a desdobrarem-se
na onda turva e reflexa
no som cambiante,
nas sombras difusas
que acordam encharcadas
                 da tua ausência
                    do meu exílio
                         e ébrias de
                            [solidão]


quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Preciso



Preciso
Espargir a flor
com a água da concha das mãos
Cantar a canção
Entender a folha branca da ilusão
Restituir ao poema
a verdade com a qual te amei
Esperar no precário minuto
o penhor de outra noite
outra manhã
Acordar a manhã
e mergulhar meus dedos em teus cabelos
Acordar os anjos e o menino do retrato
Beber do orvalho
o alivio para a sede eterna

Preciso
Apagar o desespero
dos passos presos na areia,
presos nos espelhos
dos sonhos ante o meu rosto 
Expressar o suspiro
o sussurro ermo e terno
a saudade sozinha
Pressentir da existência o segredo
Ter um motivo para ouvir o verso
se agora ando desperto
e o verso é sonho sílfide em meio ao mar
Calar a voz da mentira
Tecer a delicada liberdade

Preciso
Esperar a carta
(que já não se usa mais)
que cheirava a cravos rubros
amarelas rosas
que trazia teu aroma espanhol
e, por acaso,
um fio do teu cabelo
desejo e ânsia que o dia trazia
como essência nas tardes
que eram só nossas

Preciso
De um amigo
(e quem não precisa?)
que possa escrever a carta
que ainda espero
Um amigo que saiba da consumação
inelutável do existir
e do silêncio que pode haver
nas palavras
e do encanto que pode haver
nas palavras
e das palavras
que podem haver nas palavras
fios da urdidura da serena
humana alma
Um amigo que fale de nostalgias
e que tenha brincado em ruas de terra
na infância
com seu pião batinha
com sua bolinha de gude matadeira
Um amigo que colha estrelas
nas noites pintadas à mão
Que leia a poesia
e não reprima a lágrima
ou o riso sem explicação
Um amigo que saiba do meu sonho
e saiba do encanto que os sonhos têm
e do devir que os move
Um sonho que engane as noites
que o próprio sonho desfaz,
ah! amor, tão frágil é o passado
tão lindo o vento na acácia
e nos cabelos das meninas

Preciso
Dos dias vagabundos
Das ruas de terra
Das enxurradas
Das flores primordiais
Da voz negra da noite
Dos teus olhos,
prenuncio das noites
envolvendo o mundo

Preciso
Do sono em teu colo
Da inocência nos teus braços
Da meiguice nos teus olhos
Da nudez casta
e ofegante nos teus beijos

Preciso
Perder a hora
e a compostura
Bater à porta da lua
Perder os sentidos
Mudar-me
de vez para a infância,
para aquela rua Maria
Incendiar a palavra
que me define neste instante
Escolher a mão esquiva
e o gesto que dorme
entre as nossas mãos

Peciso
Continuar
apesar do meu medo
Acostumar
meus olhos à escuridão
Fingir
que não sei da guerra
Chorar
a dor soterrada do homem
Suprimir
em todos os corações a indiferença
Aprender
um novo idioma
Dormir
o pranto e esta melancolia
Colocar o passado em seu lugar
Ver crescer o outono
e as folhas que caem longe
do engano das horas,
longe do mar
Ter tempo,
sobretudo,
para o morrer
da irresoluta persona
e, então, calar os ventos
Guardar, silenciosamente,
a tua ausência

Preciso
Desta solidão
com o seu manto de sombra bordô
vinda com o ocaso do dia,
pulsando a noite que se inicia,
suspiro de harpa,
rumores de poesia

Preciso
Desta solidão
onde começa e acaba o ser

 
Imagem: Danièle Severi

sábado, 10 de novembro de 2012

O sono da tarde

O sono da tarde beijou a noite
Seus olhos se fecharam docemente
e o escuro, levíssimo, pairou sobre as ruas,
os pensamentos e as vidas
Lá fora,
eu vi agora,
há somente estrelas pintalgadas de azul,
nuvens fofinhas passando bem devagar
e uma lua guiando as estradas de terra
nos caminhos que vão dar no mar
O mar é longe, menina
O mar é onde?
O mar é onde o nácar translúcido dos meus  sonhos
empresta à vida estas deléveis perquirições
feito pássaros azuis que voam no dia escasso,
num sol poente que rouba o vermelho do teu vestido
e satura o horizonte e exaure o verso
que depois de ti foi só saudades
Da tua ausência fiz o meu redor
e o tempo que não se extingue
como o mar batendo nos rochedos
molhados pelo sal,
úmidos de serenos e enganos que as ondas trazem
o tempo compõe o menino que te adora e não te esquece
Faz muito tempo que o mar bate nos rochedos,
às vezes com estrondo,
às vezes como doce carícia,
vontade de amar sob a nudez de uma lua branca
Esta lua especiosa que se espalha no mar,
diáfana,
imóvel,
aguardando a lesta manhã
aguardando os lábios e a mão do poeta,
o consolo das suas palavras
e a pequena flor em sua lapela
A noite fechou os olhos
Já não quero noites,
nem luas,
nem mares,
nem flores,
nem chuvas,
nem amores
Quero qualquer coisa que traga no tempo certo
a inquietação dos circos da minha infância
e a recordação primeva do amor que foi criança
e como criança amou sem pensar em amar,
sem pensar em nada que não fosse
o acalanto singelo do teu corpo
beijou sem saber beijar,
sonhou deitado em teu colo
ouvindo o silêncio... longe
tão longe...
Impossível atinar com o que o silência dizia
Eu só compreendia você
e o lindo esboço de mulher que você era
deitando os teus segredos nas nossas tardes
Teus olhos negros como um rútilo arco-íris
de todas as cores
Negros como a noite que fecha os olhos
e tudo em volta se enovela em escuridão
No interior da noite escura e rutilante
um menino querubim escreve teu nome
em todo o tempo perdido,
em toda palavra não dita
em todo o silêncio que nada diz
e que, no entanto, não deixa que fujamos
para as cidades hipotéticas do atlas geográfico,
a grande fuga...
que me sustinha em seu vulto,
mas que nunca aconteceu
pois que o mundo existia só em você,
na sua presença sem razão maior
a não ser o nosso afeto
na sua ausência sem razão maior
a não ser o tempo que passou sem responder
ao amor que era para sempre
e que terminou num dia plangente como o de hoje
onde uma chuvinha fininha cai
enquanto o tempo envelhece alheio a nossa vontade
Lá fora o céu toca o chão e se confudem
as copas verde das árvores
com o cinza úmido e os caminhos insuspeitos dos anjos
A noite fechou os olhos
Dormem as árvores,
dormem os anjos e suas verdades
Enchem o quarto e velam minha noite
os versos que falam de ti,
os gestos a me lembrarem de ti
A vida girou a roda e tudo agora
é este invísivel cansaço,
pois que sendo o amor um arabesco
talhado na alma como desfazer o elo
que está na ilusão que fica para além,
para além do amor
em algum reino profundo
onde habita,
numa ilha, 
o menino que te ama

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Amigos

Os amigos, separados pelo tempo abstrato,
pelos caminhos de argila,
pelos rios e suas pontes ligando a saudade
à impressentida nostagia da ausência
enquanto em todo o céu é primaveras,
relembram estes ínicios de novembros
onde desabrocham flores por entre as frestas das pedras,
pequeninas flores interropendo
a estrutura calcinada pelo fogo do tempo compassado
a encher de presságios a vida e a alma

Girando sobre as folhas soltas do outono
a silhueta do vento derruba a gota de orvalho
e pousa no poema
e cria a lágrima
nos olhos verdes da solidão

O poema nasce assim, sem luz, sem nome
por enquanto somente esta lágrima da solidão
rio sem sementes,
sem momentos,
um sonho que fosse
um barco sem vela nos imprecisos ventos do agora
estrelas no firmamento tiritando aos olhos da lua
embalam a noite no ar
brotam saudades do chão
e o poema se expressa entre a saudade e o sem nome

Enquanto os amigos se esperam
Enquanto o vento gira
Enquanto o poema nasce
um pouco de nós fica nesta ausência
gestos,
risos,
vozes
e as mãos cheias de nada

Fica, em meio a tudo, este tom de tristeza
Fica, apesar de tudo, estes novos poemas
e a janela das Luas Antigas
onde me debruço a olhar a vida e o mundo
com olhos distraídos de artesão de estrelas
e sonhos ociosos e incognocíveis como um mistério

São tantos os momentos que fogem
e calam no gesto de demora das flores
São tantos os momentos de indagação
dos barcos rumo ao porto
São tantos os silêncios,
que quase ninguém ouve
São tantas as esperas
que a areia escorre da mão
fluída como a vida em grão

Os amigos relembram o primeiro segundo,
a última hora de tantos novembros
a perguntar pelo passado que imiscuiu-se à multidão,
bosque ou jardim,
ausência amorável
como o perfume da rosa
como um dia que amanhece
sob o encanto do dia que o precedeu

A brisa caminha em tempos e sonhos
que a chuva deixou no jardim
insinuando tardes brandas
e paisagens convidando à nostalgia,
abrindo a porta das gaiolas
para que fujamos todos...
um dia

Marulho do mar
O silvo do vento passando pela fresta da janela
Houve um tempo
em que o vento despenteava o meu cabelo
e secava a lágrima que, às vezes, caía
só e silente
como a única verdade de um instante
Na distância, o rumor do vento soprando,
secava as gotas de chuva nas pétalas das flores no jardim

A vida esquece-se no rio
deixa-se levar
tecendo os fios da urdidura
enquanto nas margens
os amigos se esperam

Esperam o momento dúbio
de um possível reencontro
em outras primaveras onde as flores são abandonos,
outros outonos?
inumeráveis verões,
nas noites estreladas de um inverno
onde as saudades são quentes e ternas
Esperam, os amigos,
assim esperam
cativos de tantos outros dias

E a vida, assim, torna-se indispensável

domingo, 4 de novembro de 2012

Novembros e primaveras

*(Põe nos meus olhos vencidos
teus olhos de sombra e lâ)
 
(Geir Campos)

O dia ainda não amanheceu
mas a porta para o mar já está aberta
neste novembro de primaveras
onde há flores
e quimeras
e nuvens camufladas de algodão
e anjos que trocaram céus e astros
pelo chão
Olha, a porta para o mar já está aberta
O vento sopra levando areia para desfazer o dia
que escorre rente as paredes de vidro
forjando o engano do tempo ido
Olha, o dia ainda não amanheceu
e já caminha a vazar em dourados arabescos
enquanto a canção antiga chora ad aeterno
o sonho que deambula pelas praças e pelos parques
ante nossos olhos que não o vêem,
mas que o coração pressente
e a alma se alegra com outros possíveis mundos
onde a vida seja sagrada,
essencial como grãos de poesia
onde a dor seja esquecida
nos braços que já se abraçam
neste lapso que é a vida
onde a manhã vem devagar
e *põe nos meus olhos vencidos
           teus olhos de sombra e lã

Noite após noite

Acorda a noite sob o cicio das àguas da chuva
recendendo à terra molhada e à enigma                
Nasce a flor na escuridão da noite
entre os sonhos úmidos do jardim
Aponho no negro céu estrelas sonolentas
Sombras esbatem-se à luz liquefeita da lua
Sopra a brisa sutil onde pousa um vaga-lume
a sua verde luz e o seu reflexo de ilusão
Evolam-se nuvens vindas de um passado inapreensível
Incendeiam-se imagens no velho e baço espelho,
símbolos indecifráveis,
cores tingindo o ar
Desata-me do cárcere das tuas lembranças, ó noite,
que se dispersa nas notas da música ecoando
nos olhos lassos de uma madrugada antiga
O pássaro passa errante e o meu coração se encanta
como a criança que brinca com o espelho
olhando o teto como reflexo do chão
Caem estrelas na areia que a lua borda
O mar repete na penumbra as ondas e os rumores dos rochedos
As noites inconsúteis,
iguais,
iguais,
iguais,
cobertas pelo pó e pelo simulacro
dos segredos do enredo a me escreverem
cena após cena
sina após sina
instante após instante...
arquétipos olhando os olhos da morte
nos milhões de anos esquecidos no ir e vir dos sonhos
que separam o homem e a alma
como quem depõe a vida e o destino aos pés do vento
que embalde traz as fagulhas do mar
e os caminhos solitários dos minutos dissolvidos
onde correm meus passos de criança
Quantos séculos discorrem o destino leviano dos homens?
Quantas mortes hei de subornar
e iludir devagar com a antiga pressa?
Diante dos sonhos
e da possibilidade do retorno eu minto
Para não morrer eu minto
Noite após noite eu minto