domingo, 27 de janeiro de 2013

Os pássaros cantam

Os pássaros cantam ao longe...
Como em todas as manhãs
os pássaros cantam...
ao longe,
nas nuas manhãs cinzentas
despertando a luz úmida
que sorve a fonte escura
do horizonte engolfado
em sombras emudecidas
A manhã pendura gotas
de orvalho e névoa
nas pétalas e nas folhas
das flores tocadas pela
brisa leve e sagrada
Da minha janela ouço
a vertigem do mundo
A vida freme melódica
de longos trinados
superpostos pelos
rumores do dia
coercivamente nublado
Da janela vejo as casas
que se amontoam nos morros
Casas verdes, amarelas, azuis
e seus telhados vermelhos e sozinhos
Em volta pedra e capim e árvores
dão cores ao dia sonolento
e abrigo aos pássaros que cantam ao longe
Crianças brincam na manhã
plena de eternidades
dissolvidas nos ventos
que se deitam no ziguezaguear
das pipas que colorem o ar

Tudo é fremente solidão e êxtase
neste domingo que é sonho
e metáfora das horas que restam
de uma vida inteira

Por entre as réstias de um sol
roído pela sombra
os pássaros cantam o verão

sábado, 26 de janeiro de 2013

A chuva chora

A chuva chora e fia a tristeza
que escorre diáfana pela janela,
sem razão
Nina a minha vigília e a minha dor
e as minhas mãos cheias de inquietude
Molha o meu medo e a minha angústia,
molha o momento suspenso da tarde se desfazendo
O vento desliza na janela como lágrimas
de uns olhos imensamente meigos e belos,
uns olhos prometidos ao silêncio,
ao desconhecido
Pela janela olho o céu cingido ao cinza
do dia que envelheceu
A chuva,
transluzente,
chora,
escorre,
nina,
molha...
E, por fim, a vida, enredada nos passos molhados do dia,
entoa silêncios enquanto a chuva ressoa
na transparência do grito eternamente inaudível,
na transparência palpitante da chama do círio
aceso desde as origens dos tempos
Dentro da chuva a sombra se projeta no ar
e um vago sentir tristonho se dissipa no infinito
da névoa que esconde os passos serenos da noite que se
prenuncia ao peso e ao  farfalhar do crepúsculo
A chuva cai como fogo e semente ardente
a encher de melancolia o instante vindo da infância
e de um tempo onde só havia
este sabor de barro
e a vida se desenrolando
nas janelas roídas pelas chuvas,
absorta e oscilante num mar de horas
cinzas como o céu do dia,
inefável como a chuva que chora nas janelas floridas

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Os dias parecem tão iguais

Os dias, esses pássaros amarelos,
parecem tão iguais
Parecem indiferentes ao bem e ao mal
os dias que nascem solitários
do outro lado do círio aceso da aurora
e da vida que se debruça à janela
Um vento leve leva as palavras,
sonolentas,
sem nehum destino
É cedo para que se diga
que a vida não vale nada
É cedo para se bater à Porta da Verdade
É tarde para se apagar o antigo nome,
o antigo e inelutável sonho

Os finais de tarde apagam-se em azuis
e dourados,
tendendo a vermelho,
mas nem por isso descuida-se do gesto
que, lentamente, trará a noite imensa
sob a sombra de uma folha,
sob o aroma dos lírios
A noite estilhaça o vítreo
incandescente das estrelas
e o céu, suspenso por cordões de marionete,
transborda de pontinhos úmidos de azul
e de eternidades
Pululam estrelinhas na noite
enquanto o poema espera
pelo sensível momento da flor,
da rosa que se desvela em arabescos
prateados pela ternura da lua

É cedo para dizer que a vida é um breve
e irremediável sonho inútil
que põe esta lágrima nos meus olhos,
deambulando pelas velhas ruas tímidas
e inauditamente tristes
É cedo para pedir à sina (esquiva) que
leve esta tristeza que me permeia
como o perfume de sândalo e de saudades
É cedo para tentar entender a fábula
contida no vento e no orvalho
que amanhece nas folhas e nas pétalas das flores

Viestes ver a manhã que apascenta
as brancas nuvens tecidas em mármore?
Viestes ver a manhã amarela
e os campos onde sonham os girassóis?
À noite eram outros os sonhos,
densos e sincopados
Na noite retinta assomam os olhos
medievos
esquecidos no passado
A estrela cadente resvala pelo espaço
incendiando
o céu em seus rumores de brasas
calcinando o instante,
marchetando os sonhos
Faço o meu pedido, contundente como
o barro da infância,
inaudito como o murmúrio das noites
e o silêncio dos caminhos intangíveis
Só a estrela me ouve...
Ao meu pedido
e ao som dolente da flauta que vinha
com as noites incertas e silentes

Só a estrela...

Em palavras de criança tudo pode ser pedido enquanto a estrela cai

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Trago nas mãos estas águas

Trago nas mãos estas águas
que apanhei naquela fonte
onde deixei lembranças,
onde o passado persegue
o tempo que escorre das âmbulas
Lá ficaram os meus sonhos,
as horas que te amei
Ficaram saudades e ausências,
Ficou a voz da noite
entre estrelas e miragens
refletidas nestas águas
Nestas águas ficaram a palavra,
o poema insondável,
a lenta madrugada
e as derradeiras sombras e luzes
por onde perpassa a aurora

Trago nas mãos estas águas
e este medo persecutório
que me segue insone
desde a primeira hora
quando o sol se desespera
e reflete-se nas grades das
indecifráveis masmorras,
dos imponderáveis momentos
A luz do sol incedeia e vagueia
num dia que nunca tem fim
e que divide-se desde a origem
dos tempos subitamente abertos
pelo mar dobrado e pelas sonoras
ondas batendo guturalmente
nos rochedos

Trago nas mãos estas águas
e a noite prosaica,
e seus labirintos esbatidos
pela compacta penumbra
que flutua levada pelos ventos
murmurantes do outono

Trago nas mãos estas águas
e no olhar, acendendo-se,
uma nódoa de indiferença
que sopra enfunada como
a vela da soberba

Trago nas mãos estas águas
e nos lábios estas palavras
com as quais busco encantar-me,
com as quais fio meus dias
de extrínseca urdidura
Palavras...
Que são as palavras sem o
correpondente ato?
Que triste sina morrer-se
assim, lentamente, como
os olhos que avistam a
tênue manhã desdourando-se
entre o horizonte e o mar?

Trago nas mãos estas águas
como brasas ardendo nas
merencórias manhãs,
círios perenes acesos no
escuro das ânforas onde
escondi meu mundo incerto
e os sonhos feitos destas águas
que trago nas minhas mãos


domingo, 20 de janeiro de 2013

Depois da chuva

Depois da chuva a tarde se fez dourada
O sol debruando em vermelhos o vento que passa
E canta
Canta a canção
E entoa os versos candentes da ausência
Suspeitando do sentido da vida pouca
Da pouca vida
Dos parcos passos miúdos e urgentes
Cantam os pássaros outras razões
São melodia e compasso da tarde que se farta
De cores e sons e incandescentes vermelhos
A tarde flana na quietude dos jardins
E na presciência das flores nos jardins
Está tudo tão quieto...
Tudo tão longe
Este silêncio sem voz
Estes segredos agonizantes no ar
Esta pele perfumando a vida em volta
Esta esfinge que me inquiri incansavelmente
Estes caminhos remotos
Onde já não me sei
Quando já não me sou
Fecho meus olhos cansados de não ver
E sinto o ar difuso no labirinto das perguntas sem respostas
Respostas que não há ou, se houver,
São grades e colunas a sustentarem
As prisões erguidas sobre os campos de crenças e ilusões
Nada existe independente da sombra e da luz
Tudo é sonho e engano fora do Amor
Mara é o sonho vígil
De onde só há uma porta para a fuga
Arde no horizonte o sol poente e o enigma de todos os dias
Minhas mãos fugidiças
E úmidas da mais plena solidão
Selam os lábios à memória dos olhos negros
Que desde cedo me fitam
Que desde sempre me têm
Olhos que o amor primeiro pôs no barquinho de papel
Rumo à ilha que emerge nos pingos da chuva
Rumo às sombras abandonadas de uma vida pouca
Sentimentos poucos
Muitos medos
A ilusão que baste
Mas há a renitente expressão do amor
Ou do que fizeram dele
Há a indelével sombra do mar
A sombra do mar é o que as palavras não são
Sinto saudades do cheiro do mar
Da maresia
O intangível mar desenhando agonias na areia
Ouço o mar esbatendo os vermelhos da tarde
Ouço aqui, sozinho, a canção da tarde calma
A tarde é o momento cravado no vazio de um tempo ignoto
É pouca para o destino que os dias roubam ao eco dos caminhos
E é pouca a tarde para tanto amor
É pouca a tarde para o carinho
É pouca a tarde
Vaga e alheia
Escondida entre palavras distantes e dissimuladas
Encoberta pelo véu da indiferença
Onde o que eu sou é quase nada
Não fosse esta rosa branca no jardim
(Que só existe e floresce dentro de mim)

sábado, 12 de janeiro de 2013

Seis sílabas

O sonho aflora e é estas lembranças solitárias,
chuva caindo sobre os versos,
sobre um rio imperecível,
sobre esta névoa furtiva que encanta os meus sentidos
como se o ar pudesse ser arte e círio e arder até o fim
Ninguém ouviu o ar arder na noite âmbar
Nada há nas luzes densas que devoram a noite
Nada há no vento onde se esconde o silêncio
Não há nada senão o teu nome no meu sonho
Teu nome que vivia em murmúrios nos meus lábios,
na minha saliva e na minha sede de ti
Virão inúmeras primaveras e verões antes
do impresssentido crepúsculo
e da tristeza das palavras

No amanhecer,
junto com o dia lasso e nu,
enquanto o nada sibilava no frio do quarto,
vindas de ti seis sílabas cospiam o cuspe
do descaso aceso pela indiferença
As palavras feriram,
pungentes
Podias tudo, menos ser a palavra dita sob a dança da mágoa
A tristeza consumia aquele final de primavera
que ainda sendo flores, já era solidão
frágil sépala inclinada a se esboroar
Quando será dia novamente se neste momento
a noite tocou-me a pele tornando-me escuridão?
Os segundos riscam as horas
com cacos de solidão

Uma a uma em uma outra noite será primavera
e o estrídulo silêncio falará das cintilações das manhãs
e de girassóis tão antigos quanto os versos que te fiz,
todos tão úmidos de sussurros
a molhar minúsculos silêncios
e os teus olhos de papel
Escuta,
a tarde que ardia entre nós
e as nossas solidões mitigadas pela luz cinza
e calcinada que entrava pela janela
deixando o gosto amargo de um novembro
que caminhou irresoluto
para a precária e última eternidade
O sabor da chuva ficou no silêncio pisado
pelas palavras ressequidas,
pelas vituperações
que engoliram a ternura
e os dias iguais tornaram-se rotineiros
não fosse a imponderável poesia e os versos
e estas palavras que para além dos ventos
encontram sentido e companhia

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Monólogos

Pelos milhares de anos do mundo
nascem os sóis e caem as tardes
e florescem as flores e se desvela
a lua e estrelas e os primeiros versos
quando alguém chorou e os olhos
beberam da primeira madrugada
Mananciais do Tempo sibilino
num jogo de luz e sombra
noites e dias
sim e não
Yin e yang

As noites trazem o mar da minha infância
e o incessante começo dos teus olhos negros
trazem tuas pequenas mãos para as minhas
Trazem verdades e mentiras,
Sombras abstraídas?
Palavras extintas?
Paradigmas?
Retórica vã?
Metáforas?
Como saber a resposta se, pensando em ti,
todos os caminhos são plausíveis, como um rio
que segue o seu curso por pura solidão?

Comove-me o caminho de volta pra casa,
escorre no meu rosto uma lágrima que o
vento há de secar
O vento talhou o espelho e ele já não reflete
os horizontes estáticos
nem a lágrima que cintila
O tempo está morto e cai gota-a-gota das
mãos trêmulas do viajante cativo da
ilusão de ser e do engano da permanência

A vida inteira é um instante sobreposto
a outro instante, a outro instante e mais outro...
Ad infinitum
A vida pulsa e se expande
Enquanto eu sorvo o pulsar dos meus dias
e me embriago com a solidão que me
acompanha como uma pele estanque,
rastilho das horas aceso na alma,
fazendo das noites um tempo acorrentado
aos ventos inauditos que sopram do mar
para a ilha quando o outono chega
trazendo lembranças e inquietações
É preciso recuperar os dias primordiais
É preciso vivenciar a vertigem de se estar só

Enquanto escrevo ouço os pássaros cantando
Meu coração se enternece com o canto dos
pássaros
Todo dia o mesmo inédito recital que vem
ressonante no silêncio hierático e fluido de
algum lugar no mundo encantado das aves,
de algum pedaço de céu onde a vida se
abastece de poesia
O canto dos pássaros é a vida insinuada
entre o horizonte e as nuvens baixas deste
dia nublado, deste dia onde a amplidão
toca o chão com as suas vestes de brumas
O firmamento verga neste reino de cinza
e sombra, de pó e alheamento

Meus sonhos, sejam lá quais forem os ângulos
pelos quais eu os veja, evocam a Beleza
e procuram o poeta latente que me desse de
beber e saciasse minha fome e transformasse
minha ânsia de estesia na Beleza que procuro

Busco palavras entre as folhas que o outono
derruba
Nas noites escorrendo sonhos e inquietações
Na primeira história, no primeiro livro nas
minhas mãos de criança
Atrás das longas sombras inquebrantáveis
no istmo das palavras buriladas na argila
e nas lágrimas das paredes da casa da infância

Eu nada sei dos séculos que por mim esperam
Eu nada sei dos séculos pelos quais passei
Eu nada sei dos agoras e seus espelhos opacos
Há milhoes de anos a vida se manifesta em sua
triste ira complacente e sempre nova e sempre
inaudita ferocidade pungente

Eu nada sei da poesia e da estesia da poesia e
da estesia da vida
Nada sei deste instante precário e perempto
onde as palavras dissolvem-se antes de
chegarem ao texto
E no lugar destas palavras fica um arguto silêncio
ficam personas e máscaras nas faces temerosas
fica o tempo ignoto, faminto da mesma Beleza
e da mesma estesia onde me busco

Os pássaros calaram-se
Cai uma chuvinha miúda enquanto o céu vai
descendo ao encontro das copas das árvores
A tarde está cinza e os pássaros calaram-se
A vida escoa lentamente
numa ociosidade silenciosa
Não há brisa, mas está no ar esta inocência
e este pressentimento que tornam a vida e
seus mistérios insofismáveis

Olho para o livro aberto e não lido
Olho para a minha vida aberta e não vivida
Em qual página da minha vida eu parei?
Eu quero a rua de terra e os meus pés de lata
Eu quero de volta o sonho e a inocência que
perdi sem perceber
Quero a primeira luz do mundo
Eu quero a primeira flor,
o primeiro amor,
o primeiro beijo
Quero o teu colo, Pingo
e teus olhos de noites consteladas
e teus beijos como os de Eva no paraíso

Olho para o céu e suas anáguas cinzas
gotejando o sussurro da chuva miudinha...
Olho para o livro aberto sobre a bancada...
Tropeço no silêncio da tarde e no silêncio
do canto nimbado dos pássaros

A vida é menor do que a arte
A arte é eterna
A vida é provisória...
e cabe interinha no trilar dos pássaros

Nada sei!!!
Eu nada sei!!!
Não me esqueci de nada.
Eu simplesmente não sei.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Uma fábula de ano novo

Ano novo
Novo?
Perguntou a dona formiguinha
ostentando entre as pinças
um folha bem verdinha
Ano novo... murmurou alguém
lembrando de anos passados
os olhos úmidos de ausência
a vida uma nau sem porto
e ano após ano os mesmos quereres de novo
Novo?
Perguntou novamente a formiguinha
que ainda seguia firme com sua folha verdinha
Os dias são tão frágeis
A vida um sonho efêmero
uma sucessão de instantes aleatórios
Incriados ventos escutai os
nomes escritos na areia por onde caminham
as ondas de passagem pela praia
e retornam inabordáveis ao velho mar
que em sendo velho parece ser sempre novo
Novo?
Perguntou mais uma vez a faceira formiguinha que tendo
percorrido todo o trajeto desde o jardim até
o formigueiro, depositou o seu troféu clorofílico
e pôs-se a pensar no que viria a ser "novo"...
A formiguinha pensava, pensava...
A vida dela era uma rotina: sair do formigueiro cedinho,
dirigir-se a algum jardim e, lá chegando, cortar e transportar
folhinhas (para ela eram folhonas) para o formigueiro
Não procurava pelo novo
assim como não lhe interessava as falsas primaveras
A terra escura por onde caminhava
não lhe parecia nova
Nem tampouco a gota d'água que lhe impedia o caminho
A chuva que caia e que doia como um soco?
Dona formiguinha não etendia o que havia de "novo"
nas pedras sujas de terra que encontrava pelo caminho
A bem da verdade continuava a não entender o que era
o tal do "!novo"
A tarde já ia caindo em vermelhos e laranjas
e o mar espelhava a mistura de ocaso e noite
que já começava a desenhar-se em sombras sutís
O sol já banhara-se nos ventos e se preparava para dormir
A formiguinha olhou para o sol e pensou:
amanhã ele estará no mesmo lugar e todas as demais
coisas do céu e da terra também estarão
em seus mesmos lugares
(---)
Vou-me embora, disse a formiguinha...
estou cansada
e recolheu-se ao conforto do seu formigueiro
A formiguinha adormeceu,
mas dormiu pensando no "novo"
E pensou tanto que sonhou...
sonhou com novas ilhas
sonhou com céus constelados
com a ventania, e teve medo
com a solidão e chorou tristemente
sonhou com o frio do inverno
e a beleza da primavera
e as anáguas azuis do céu
e sonhou com novas paisagens
e antigos desertos onde a vida foge
e as miragens que criam simulacros da vida que fugiu
Sonhou com louvas-Deus
de mãozinhas postas como quem faz uma prece
sonhou com borboletas que pousavam
nas flores da beira do rio
e que eram tão coloridas quanto queria
o sono da formiguinha
sonhou com a chuva caindo e ela se abrigando
sob as pedras sujas do caminho
A formiguinha sonhou... sonhou...
De manhã quando ela acordou
a formiguinha sentou na beirada da cama,
esfregou os olhos,
balançou os pezinhos no ar, feliz
o coração batendo irriquieto
e começou a lembrar dos sonhos
e quanto de emoção havia nas lágrimas
ou no riso que podem trazer os dias
e entendeu que, a bem da verdade,
o "novo" não estava nas coisas, mas, sim,
na alma e nos sentidos de quem vê as coisas
Sentia que não podia existir o novo para a alma velha,
para a mente velha
vestida de antigamente
Sentia que não poderia mais beber da sede
sem transbordar o cálice
Pela janela via o dia esplendendo lá fora
O sol estava em seu lugar no mundo
O riso e a lágrima também estavam em seus lugares
A natureza estava toda em seu lugar no mundo,
porém tudo sabia-se novo
No caminho entre o formigueiro e o jardim
várias florezinhas brotaram durante a noite
e também estavam em seus lugares no mundo
entre o pensamento e o ser
Os pássaros cantavam longamente, alegremente pela ilha
e a liberdade atravessava os céus
Aflorava a reinvenção da vida, o inédito
e ficava uma certa nostalgia
esperando a reinvenção dos olhos
e da atitude perante o novo
E a formiguinha dançou ao descobrir o que era o "novo"
Estremeceu ao observar como, apesar de toda uma ordem
pré-definida, o Universo  tão vasto, como, ainda assim,
o mundo poderia ser do jeito que ela quisesse
Naquela manhã a formiguinha vestiu-se de toda a sua pureza
e foi cortar suas folhinhas, porém ia atenta a si para que
o passado e a falta de visão dele decorrente
não lhe limitassem e a impedissem
de ver o novo que há em todas as coisas,
e em todos os dias cheios de fins e começos
e que são novos na essência
e que cada ser possui a sua cosmogonia e o seu devir


Feliz ano novo a todos!


*E se ela canta, devolvo
  à terra a minha linguagem.
  No ser que a informa, dissolvo-me.
  E ela dorme, sendo imagem


*Lêdo Ivo in Poesia Completa - 1940 - 2004