quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Ano novo

O ano velho não termina...
Amolda-se,
cochicha estórias,
e diz segredos
ao ano novo que não tarda
e não se inicia,
porque continua...
cíclico,
como ondas no mar...
desprendendo-se das frinchas das águas,
refulgindo em periódicos momentos rendilhados de espuma e vento.
Como a hora remota do sol em declinio caminhando concisa
adiante do passo da gente.
Como a noite indolente usurpando a sombra ao dia ígneo do brotar do tempo semeado.
Novo?
O agora é novo a cada instante, seja tecido de sarja ou de seda...
é motivo, porto, ilha, partida, brisa, verso pra poesia, libertas, alforria... gare da vida
Assim como são novos todos os dias,
páginas em branco para o teu poema.
Fios para tecer o mesmo casulo mil vezes tecido,
Prólogos da mesma trama,
do antigo texto.
Água a escorrer da fonte que a memória contempla
delindo o passado enquanto os anos novos não vêm,
enquanto a vida e o seu instante precário inexoravelmente se esvai...
E, então, já é passado...
que não sabe esperar
e caminha resoluto por sobre o momento presente,
sumariamente, deixando a dor ou o riso nos rostos, sem despedidas.
 
Os dias sem calendário gotejam como as águas desta fonte que sobem em sussurros
para a completude de um céu, para a contemplação da noite.
Ao longe o vento umedece de orvalho os olhos insuficientes
para mirarem os jardins estóicos e suas flores sincréticas, vítreos espelhos.
Olhos que brilham como a eterna esperança, como as grandes nebulosas.
Esperança indagando qual será o inaudito começo. 
Velhos planos que nos olham à distância.
Novos projetos que acordam cedinho vestindo roupa de festa.
E ano velho e ano novo se encontram...
Se confundem...
Logo ali
Ao alcance de um escolha 
Enquanto o tempo se espreguiça...
morno,
semente,
ocaso,
indiferente à sombra do passado e à névoa do futuro,
imerso em sonhos e esquecimentos.
Grãos da mais fina areia a perfazerem os instantes que escorrem como cismas fugidias
pelas ampulhetas silentes, pelas vidas e primaveras floridas de azuis, rosas, lilases...
Pelos outonos soturnos e graves debruçando-se sobre as sombras das noites longas,
oscilando entre a luz e a escuridão da grei humana.
 
Nas paredes da casa branca com floreiras nas janelas
e no ar semeado de ausência e de passados dormitam as lembranças.
Para que não nos sintamos tão sozinhos no novo ano.
Para dar um toque de nostalgia neste janeiro com jeitão de pode tudo.
Para termos um ponto de partida.
 
Olha! Vem ver esta esta manhã de ano novo que desponta
como um vulto familiar saindo de dentro do espelho da memória, 
refletindo a singularidade dos dias que não são iguais.
Cada dia tem o seu devir que dissolve e cria e transforma todas as realidades.
Cria a luz que se esvai, no sopro do vento, do amarelo ao lilás,
e nos teus sentidos se assentam sobre as pétalas da flor que tece,
com a graça idílica de suas cores, o segundo e a eternidade.
Deixa teus olhos sonharem a manhã do ano novo.
Imprime a tua delicadeza no dia que a ti se entrega.
Não queres acender o dia?
Fecha teus olhos...
E deixa tua mente deslindar antíteses de tantos outros dias, silentes e sós.
Faz o dia como te apraz.
A tonalidade do azul do céu te desagrada?
Queres um azul mais contente?
Que tal um azul de sonho maduro?
Ou um azul igualzinho ao sentimento da gente?
O que é, enfim, este azul obscuro
de transparentes carícias de rendas de linho e algodão?
Céu com nuvens...
branquinhas, branquinhas...
Prontas para se pegar
e se lambuzar nestes rolos de algodão doce celestiais.
O coração irisado pelo sol.
Pés descaços sentindo o calor e a nudez deleitante do chão pulsando nossas vidas...
nos caminhos impalpáveis entre o sentimento e a sombra e que se distendem
pelos campos compungidos do pensamento e do gesto...
 
E o verde destes campos, destas matas... está a teu gosto?
E estas árvores de camurça onde podes descansar
é teu pensamento que cria e as dissolve no ar?
Deita-te nesta sombra ilusória onde anjos vêm te velar,
cava na verde terra sozinha
o teu pedaço de mar...
De águas azuis pontilhadas de marulhos distantes,
de brisas úmidas que por ti esperam,
de areias brancas e macias,
do rumor das ondas nos rochedos,
de bandos de estrelas nas noites nuas,
de uma lua pousada na voz fulgente dos ventos bardos,
de um sol cinzelado em douradas pétalas etéreas,
do sopro que vem das velas enfunadas
gaivotas,
passos na areia,
as ondas roçando pés,
dizendo sussurros e versos,
silêncios sequiosos,
sonhos azuis,
a lua ao nascer do dia,
rubras luzes,
vagas veladas,
concha vazia.
 
 
No incessante movimento do Tudo e do Nada, do Ser e do não Ser,
na insofismável vacuidade da existência, o ano velho insinua, sem rumor, 
mistérios da vida e do tempo...
inacabado,
rasgado,
ignorado,
cinzas,
brasas,
fogaréu,
apagando o escuro na terra,
acendendo a noite no céu.
Esboço deste passado que aflora
em meio à noite contemplativa... 
e entre um poema e outro...
 
se vai...
 
impregnando o presente e o futuro com o perfume das flores colhidas em meio às nuanças dos ventos pelos quintais

sábado, 17 de dezembro de 2011

Tarde

Há um rumor de folhas secas na tarde quando caminho
como uma cantiga a cantarolar versos da alma.
Versos que por vezes me mentissem...
que desabrochassem em meio às folhas brancas...
depois das palavras que lentamente abrissem veredas
entre os passos tristes da poesia indizível aos nossos olhos escuros
Os versos que só soam depois de um ponto final,
depois do eco no mar,
depois dos passos na areia,
depois do silêncio do mundo.
Mas versos...
Versos azuis manchando as névoas das nuvens que desfolho
e que a tarde canta ao vento quente e quieto luzindo emoção.
A minha alma só e silenciosa apreende os céus a escurecer
A brisa que ora passa, ora cessa, traz o sono da noite
E em cada janela aberta onde o silêncio entra com a maresia,
ouve-se a tarde e a noite, enquanto a vida escurece
Diz a tarde: "Desfaz-se em sombras o dia"
Diz a noite: "Ainda há luzes que o dia tece"
Entre as sombras do dia e os retalhos da claridade
flutuam as brumas do ocaso vagando dentro de mim.
Flutuam, em mim, duas tristezas devido a eu ser assim,
como o vento flanando caminhos ornados de céu e mar e fogo
e ar, de barro e terra ávida de sementes de primaveras lentas e belas.
Uma tristeza goteja pequenas melancolias encarnadas
no meu peito onde calo meus desejos de quem não fui
A outra tristeza ondula na ilusão dos sonhos e desejos infindáveis, trazendo de muito, muito longe, vozes na noite infinita.
São vozes de paisagens dormentes,
solidões suspensas no ar,
da vida irreal e aflita.
Murmúrios de um final de tarde,
enquanto a vida espera por entre o amor e o medo
a meninice dos meus olhos,
em tantas ternuras e o mel que a tarde emana,
dizer-te poemas em segredo.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Ternura

Dorme, em algum canto do mundo, a Ternura verdadeira,
em meio a fitas de cor, afetos, divagações.
Dorme a Ternura entre amigos,
entre abraços repousados,
sem receios,
nem temores...
Dorme a Ternura numa gaveta secreta,
num céu azul de janeiro,
numa manhã de neblina,
olorosa, suspendida,
por uma aurora cor de rosa
Dorme a Ternura em jardins,
em flores de âmbar,
no debruado das pétalas pressentidas,
no exílio branco da rosa inefável
A ternura dorme no lírio,
noivo da Alma
Adormece nas tardes alheadas,
nos olhos dos girassóis
Dorme a Ternura da Vida aninhada na flor da cerejeira,
entre poemas dúbios que a minha Alma sonda
nas espiras voláteis que alçam-se do sândalo ao ar
Dorme a ternura nas rendas das ondas
que ardem ao ócio do mar,
no vôo airoso da gaivota
Dorme, em algum canto do vento, a Ternura verdadeira

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Última chamada

Hoje vivem em mim todos estes sonhos esparsos que as noites depositaram em meus braços lentamente
Vive esta fragilidade impotente de saudades rumorosas maiores do que as noites,
imensas como o inominável negrume bailando imprecisamente entre as estrelas
que caminham junto ao silêncio das palavras sem movimento,
escravas de um único sonho que dorme
Por escusos motivos dei-me a tristezas
Monotonia do tempo passando sem ter um lugar onde eu pudesse dizer: "isto sou eu"
Lívidos medos selados adejando das folhagens transtornando as horas com sons e mistérios
Hoje sonham em mim a menina das Fortaleza e três palavras que lhe disse: "eu te amo"...  
mas acho que ela não acreditou,
ou não as ouviu, por ser tarde demais,
por ser longe demais o indefinido momento de abraçá-la
Por já ter passado o tempo do amor em seu coração
Talvez não tenha entendido o significado insuportável das três palavras
Quem sabe?
Quando eu fui embora os rios vazavam em sorvedouros os cheiros da sua pele
Meus olhos a acompanharam de longe no rigoroso inverno que se tornou o vasto saguão do aeroporto
Nos perdemos no saguão do aeroporto ou foi a tristeza que nos separou para que eu pudesse chorar sem que ela visse?
O tempo passou por mim e deixou esta inefável bilha de melancolia onde antes havia um olhar
Não tenho mais tempo para as dores que estremecem: choro
Choro o choro calado e seco, orvalhado e tonto de tanta sofreguidão
E aflijo-me olhando a tarde entristecer despegando-a de mim
Meus olhos já não a vêem,
mas meu corpo tece a tez e os traços de tudo que nela eu amo
Antigamente...
Antigamente era outro tempo que atravessa a minha vida a dar risadas góticas,
a escancarar o amarelo de certas palavras que doem dentro de mim,
palavras como afeto, carinho, atenção, cuidados e desbotada e puída pelo tempo e pelo uso a palavra "saudade"
Saudade...
Escrita assim parece doce.
Tem som de doce sendo comido às lambidinhas
Tem visgo de doce borbulhando dentro do tacho
Tem cheiro inocente de doce entremeado às mãos da criança a juntar barro
Tem a vida e a morte faiscando indubitáveis jardins de olhos voltados para ontem
Verte no ar o verde cheiro da chuva
E tudo mais sob o céu recende à solidão

domingo, 23 de outubro de 2011

Flutua

Na tua ausência, onde jasmins adormecem, tudo flutua
Flutuam teus olhos oblongos
Tua boca carmesim
Flutuam teus passos adocicados
Flutuam, mas não te trazem pra mim
 
 
Flutuam as manhãs de afagos e carinhos
Flutuam as noites de murmúrios e cuidados
Flutua a nívea flor entre poemas no jardim
A flor que vive sozinha
Sozinha... ai, por que vive assim?
 
 
Na saudade que sinto de ti tudo flutua
Flutuam meus sonhos cheios de poesia e você
Flutuam os aromas de ânsia e de benjoim
Flutua o Destino reverberando o Universo
Flutua o Destino, mas não te traz para mim
 
 
Flutua a lágrima em meus olhos solitos
Flutua a tua voz sobre a sombra quieta do amor
A noite flutua um chamamento sem fim
Chama a noite o sentimento que vive tão só
Sozinho... ai, por que vive assim?
 
 
Na lembrança do que não vivemos tudo flutua
Flutuam os instantes esquecidos no que não pôde existir
Flutuam os insensíveis beijos cansados, enfim
Flutua o amor sozinho nas cores da madrugada
Sozinho... ai, que triste, já esquecestes de mim?
 
 
Tudo flutua... soprado na brisa que anda à solta,
porém nada se mexe,
nem teu perfume...
nem a minha saudade.
 
 
 
Imagem: Olga Sinclair

sábado, 22 de outubro de 2011

Manhã


Quando a manhã surge equilibrando-se por sobre a aurora e os sonhos recendendo à noite e à lua
meu primeiro pensamento é teu
pensamento que o raio de sol borda na névoa acesa que cobre os telhados
a escrever teu nome em cinco sentidos sonhado
pelos negros olhos macios da madrugada
e corro a ver para além do céu recém molhado de azul
os teus olhos,
sonhos entreabertos na sombra leve entre as pétalas do silêncio e os amarelos da aurora
onde um sino oscila e dobra aos sons transparentes das palavras e do meu sentimento,
aonde pássaros cantam dedilhando o instante... tão devagar...
momento efêmero e tão frágil
deixando na auréola do dia palavras que são só tuas
e que eu não posso te entregar,
perdido ramalhete de rosas orvalhado de distância,
te aguardando em meu coração
para além deste tempo ritmado,
para além dos tênues traços curvilíneos da ilusão.
A noite, quando perpassa o céu com suas sensíveis cantigas,
sussurrando teu nome à minha alma,
diz que posso te esperar
a lua que vai passando por aqui tão devagar,
mansamente, a caminho de outros céus...
de tardos mares...
de Fortalezas,
reflete vastidões e singelezas
espargindo em mim o vulto da tua lembrança
e o vulto da tua lembrança em mim também é você
Você...
úmida rosa,
lírio de ausência,
sândalo ao vento...
por quem espero no rastro das estrelas que enlaçam a noite trêmula,
por quem espero em caminhos extintos
revirados de ânsia e de saudades por onde vim
Por quem espero para que venhas gostar de mim...
                                                  ...e que leve-me contigo.
Imagem: Olga Sinclair

sábado, 21 de maio de 2011

Tempo


Ah! este Tempo etéreo e hierático a me impor lembranças e propor destinos.

Este Tempo agonia que me alheia a voz quando estou sozinho.

Um Tempo de palavras roucas... loucas... a dizer-me coisas com as quais eu não atino.

O Tempo afoito, nau sem vela e sem razão, que conduz, por entre nevoeiros, o meu coração.

Intuo este Tempo, máscara da mentira, que julgo passar por mim quando sou eu quem passa por ele.

Soa, ao longe, este Tempo de renúncia e de exílio em cujo pórtico ouve-se o diáfano prelúdio da tua ausência

Freme este Tempo de silêncio que engenha sombras no canto que embala a minha própria dor.

Cerram-se os olhos do Tempo que nas noites choram a minha solidão.

Fito este Tempo que em cada manhã me sugere, imarcescível, uma nova possibilidade para ser feliz.

Ah! o Tempo...
           este instante precário e denso, cativo e  imanente,
           onde a alma flamejante engendra o engano de existir.


Imagem: Olga Sinclair

sábado, 14 de maio de 2011

Na primeira manhã

Na primeira manhã

Alceu Valença


Na primeira manhã que te perdi
Acordei mais cansado que sozinho
Como um conde falando aos passarinhos
Como um bumba-meu-boi sem capitão
E gemi como geme o arvoredo
Como a brisa descendo das colinas
Como quem perde o prumo e desatina
Como um boi no meio da multidão

Na segunda manhã que te perdi
Era tarde demais pra ser sozinho
Cruzei ruas, estradas e caminhos
Como um carro correndo em contramão
Pelo canto da boca num sussurro
Fiz um canto demente, absurdo
O lamento noturno dos viúvos
Como um gato gemendo no porão
Solidão.

sábado, 7 de maio de 2011

O doce mistério da vida




 

Alberto Caeiro

Num Meio-Dia de Fim de Primavera


Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas pelas estradas
Que vão em ranchos pela estradas
com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Depois ele adormece e eu deito-o.

Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
   

O haver

O Haver

Vinicius de Moraes

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
essa intimidade perfeita com o silêncio.
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo.
Perdoai: eles não têm culpa de ter nascido.
Resta esse antigo respeito pela noite
esse falar baixo
essa mão que tateia antes de ter
esse medo de ferir tocando
essa forte mão de homem
cheia de mansidão para com tudo que existe.
Resta essa imobilidade
essa economia de gestos
essa inércia cada vez maior diante do infinito
essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
essa irredutível recusa à poesia não vivida.
Resta essa comunhão com os sons
esse sentimento da matéria em repouso
essa angústia da simultaneidade do tempo
essa lenta decomposição poética
em busca de uma só vida
de uma só morte
um só Vinícius.
Resta esse coração queimando
como um círio numa catedral em ruínas
essa tristeza diante do cotidiano
ou essa súbita alegria ao ouvir na madrugada
passos que se perdem sem memória.
Resta essa vontade de chorar diante da beleza
essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido
essa imensa piedade de si mesmo
essa imensa piedade de sua inútil poesia
de sua força inútil.
Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
de pequenos absurdos
essa tola capacidade de rir à toa
esse ridículo desejo de ser útil
e essa coragem de comprometer-se sem necessidade.
Resta essa distração, essa disponibilidade,
essa vagueza de quem sabe que tudo já foi,
como será e virá a ser.
E ao mesmo tempo esse desejo de servir
essa contemporaneidade com o amanhã
dos que não tem ontem nem hoje.
Resta essa faculdade incoercível de sonhar,
de transfigurar a realidade
dentro dessa incapacidade de aceitá-la tal como é
e essa visão ampla dos acontecimentos
e essa impressionante e desnecessária presciência
e essa memória anterior de mundos inexistentes
e esse heroísmo estático
e essa pequenina luz indecifrável
a que às vezes os poetas tomam por esperança.
Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
na busca desesperada de alguma porta
quem sabe inexistente
e essa coragem indizível diante do grande medo
e ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer
dentro da treva.
Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
de refletir-se em olhares sem curiosidade, sem história.
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho,
essa vaidade de não querer ser príncipe senão do seu reino.
Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável.
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
e esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.
Resta esse diálogo cotidiano com a morte
esse fascínio pelo momento a vir, quando, emocionada,
ela virá me abrir a porta como uma velha amante
sem saber que é a minha mais nova namorada.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Poesia... não achei


Queria te mandar uma poesia, mas não achei nenhuma que se parecesse com você.
Nenhuma tinha estes olhos ternos, céus em dias claros, mares ao crepúsculo da manhã.
Nenhuma tinha estes cabelos de fios cor do trigo ondulando à luz do sol.
Nenhuma tinha a candura das tuas mãos, o perfil delgado dos teus dedos, a fome do toque.
Em nenhuma poesia encontrei o teu abraço que me enlaçava ternamente como gota azul do oceano.
Nenhuma tinha o convite do teu colo.
Nenhuma tinha a maciez da tua pele, rosa branca, lírio em flor. 
Nenhuma tinha este sangue rubro no qual teus lábios se expressam. 
Nenhuma trouxe o silêncio do contorno dos teus lábios em sussurro.
Nenhuma sabia sorrir como você sorria pra mim.
Nenhuma falava as palavras que me dizias e com as quais ainda faço os caminhos dos meus sonhos.
Nenhuma soava como soa tua voz quando dizes "felicidade".
Nenhuma trazia as letras do teu nome onde amanhecem os meus dias.
Nenhuma tinha a fragrância nua do teu corpo úmido de desejo.
Nenhuma tinha o arfar dos teus níveos seios durante o amor... corolas aveludadas, círculos de chamas.
Nenhuma tinha versos que se despissem como despe-se o teu corpo.
Nenhuma era saudade como são os beijos teus.
Nenhuma tinha esta agonia de liberdade que a tua alma tem. 
Nenhuma sabia da dor que você socorre.
Nenhuma tinha o ritmo dos teus passos quando caminhas na areia da praia.
Nenhuma poesia, nenhuma... não achei nenhuma poesia que pudesse te dar nesta noite.
Só achei estas palavras que o vento, em meio ao canto de um pássaro, sussurrou ao meu ouvido.
E estas palavras são tudo que tenho para te ofertar esta noite...
Poesia... não achei.

J L Silva

domingo, 1 de maio de 2011

Ondular

ONDULAR

Carla Furtado


O teu corpo adormecido sobre o meu
As tuas mãos abandonadas sobre mim
E nos meus olhos a beleza dos caminhos
Que juntos vamos caminhando até ao fim.

Estrelas ardentes flutuam no meu peito
Sinto-me noite, uma noite funda assim
Como a corrente de água limpa que transborda
Dessa nascente cristalina que há em ti

Ah! À nossa beira, amor, cresceram flores
Plantadas pelas nossas próprias mãos
O teu corpo de homem novo semeou
O que na minha terra fértil se fez pão

Sibilante a aurora nasce tão quieta
Traz o cheiro e a frescura dos começos
Como tu ao acordar trazes gaivotas
Assinalando tempestade em mares incertos

No teu perfil desenham-se as paisagens
Dos montes, das serras, dos altares
E de todas as coisas altas, fortes e eternas
Com que imprimes de saudade o meu olhar

Ah! À nossa beira, amor, cresceram mares
Veludo azul, azul de navegar
Correntes livres serenando imensidades
Sob o teu corpo no meu corpo a ondular

Hoje


Hoje já não queimam as
noites em seus fogos
cor de sangue. O fogo
fez-se mar intenso,
vaga sem fim.

Hoje a madrugada é precipício
a acolher rios de sonhos
que se precipitam como
chuvas molhando a lágrima
compassiva, a lágrima amarga e perdida

Hoje não te tenho mais,
não sinto mais meus lábios a viver
nos teus. Não beijo teus olhos,
não sinto teu corpo, só há o teu
perfume entre os meus braços

Hoje já não digo amor
O amor ficou cingido
ao passado nos silêncios
que ficaram junto a ti,
ao teu lado.

Hoje o silêncio tonitruante
das palavras não ditas
é o grão de poesia que
perpassa as pétalas das dores
a germinar no infindo adeus

Hoje, sonhos desfeitos,
vida sem lume, vida sem gosto,
minha alma galga auroras de sonhos
buscando em outros trejeitos
As linhas meigas do teu meigo rosto

J L Silva

Imagem: Olga Sinclair

sábado, 30 de abril de 2011

Senhorita

Senhorita

Zé Geraldo


Minha meiga senhorita eu nunca pude lhe dizer
Você jamais me perguntou
de onde eu venho e pra onde vou
De onde eu venho não importa, já passou
O que importa é saber pra onde vou
Minha meiga senhorita o que eu tenho é quase nada
Mas tenho o sol como amigo
Traz o que é seu e vem morar comigo
Uma palhoça no canto da serra será nosso abrigo
Traz o que é seu e vem correndo, vem morar comigo
Aqui é pequeno mas dá pra nós dois
E se for preciso a gente aumenta depois
Tem um violão que é pra noites de lua
Tem uma varanda que é minha e que é sua
Vem morar comigo meiga senhorita
Doce meiga senhorita
Vem morar comigo

Aqui é pequeno...

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Teus passos

na noite onde o silêncio
é o postigo antigo de um sentimento
ouço teus passos a andarem em mim
ficam, em mim, as marcas dos teus pés
como se areia eu fosse
ficam as gotas salgadas a escorrer
como se mar houvesse
entranho-me numa concha
como se ondas ouvisse
ficam na noite teus olhos de noites azuis
a derramar as fragrâncias de uma primavera
a soluçar os medos da noite inditosa
a arder a lembrança do que um dia foi Amor 
ficam os nãos versejados e a morrer
da morte mais intensa que em fumos se desfaz
morrem os não quando eles já não nos servem mais
a voz ouvida ao longo do vento sibilando
por entre as frestas de um passado envelhecido
entontece a flor que brota no seio da solidão
o vento vagando na noite é uma réplica do que foi meu coração
quando a noite espargia o silêncio nas várias faces do vento
e guardava a minha Alma na renuncia rútila dos astros
guardava, na pálpebra do sonho, o que de mim ainda sou...
...e o que eu ainda sou é crepúsculo de barco a deriva
a vagar pelas ilhas inescrutáveis dos meus sentimentos
a deslizar sigiloso na transparência dos  ventos errantes
desvelando a aragem silente do que de mim restou

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Poema XX

Poema XX

Pablo Neruda


Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.

Escribir, por ejemplo: "La noche está estrellada,
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,

y tiritan, azules, los astros, a lo lejos".
e tiritam, azuis, os astros, ao longe".

El viento de la noche gira en el cielo y canta.
O vento da noite gira no céu e canta.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.

Yo la quise, y a veces, ella también me quiso.
Eu a quis, e às vezes ela também me quis...

En las noches como ésta la tuve entre mis brazos.
Em noites como esta eu a tive entre os meus braços.

La besé tantas veces bajo el cielo infinito.
A beijei tantas vezes debaixo o céu infinito.

Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Ela me quis, às vezes eu também a queria.

Como no haber amado sus grandes ojos fijos.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.

Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido
Pensar que não a tenho. Sentir que a perdi.

Oír la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.

Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.
E o verso cai na alma como na relva o orvalho.

Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
Que importa que meu amor não pudesse guardá-la.

La noche está estrellada y ella no está conmigo.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.

Mi alma no se contenta con haberla perdido.
Minha alma não se contenta com tê-la perdido.

Como para acercarla mi mirada la busca.
Como para aproximá-la meu olhar a procura.

Mi corazón la busca, y ella no está conmigo
Meu coração a procura, e ela não está comigo.

La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
A mesma noite que faz branquear as mesmas árvores.

Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.
Nós, os de então, já não somos os mesmos.

Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Já não a quero, é verdade, mas quanto a quis.

Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.
Minha voz procurava o vento para tocar o seu ouvido.

De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.

Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.
Sua voz, seu corpo claro. Seus olhos infinitos.

Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Já não a quero, é verdade, mas talvez a quero.

Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.
É tão curto o amor, e é tão longo o esquecimento.

Porque en noches como ésta la tuve entre mis brazos,
Porque em noites como esta eu a tive entre os meus braços,

mi alma no se contenta con haberla perdido.
minha alma não se contenta com tê-la perdido.

Aunque ésta sea el último dolor que ella me causa,
Ainda que esta seja a última dor que ela me causa,

y éstos los últimos versos que yo le escribo.
e estes, os últimos versos que lhe escrevo.