quinta-feira, 30 de agosto de 2012

1920

Em 1920 eu era assim como este rio que recordo
como estas águas que fazem a sede de um final de agosto
como este caminho silencioso que leva meus passos para o mar
e no mar a aurora espera a primavera e as cores de um tempo trêmulo de amor,
trêmulo de estrelas e da noite que traz na concha das mãos o passado
fragrância doce das madrugadas de chuva que tamborila tristonha nos telhados,
barcarolas de saudades que não deixam a noite dormir,
a vida feita de instantes onde morro no sussurro dos ventos fugazes que arrastam a noite e a solidão

Solidão...

ainda não provei de todo o teu sabor
ainda não chorei todo o teu  mundo
ainda não tirei de ti os meus olhos
será sob ti, solidão, que dormirá a neblina dos meus dias?

A manhã traz seu tanto de ilusão habitual,
dois ou três passos de um destino antigo,
de um tempo medido em receios

A poeira azinhavre do pensamento sobre o papel,
pelo qual flutuam astros e luas
e tateiam rios inteiros de várias cores,
vai e vem por entre as vogais e consoantes 
das palavras que eu nunca soube te dizer,
pedrinhas rolando no leito do rio antigo,
de águas amarelas,
tendendo à ferrugem,
dobras da vida por onde escorrega o lápis e a letra,
por onde fogem os sons ignotos do eco vazio das ilhas oscilantes

Em 1920 eu era assim como estas palavras
reflexos de pequenos pedaços de sóis
vermelhas,
brancas,
lilases,
labirintos,
suspensas,
letárgicas,
mergulhadas em mim,
e nesta ilha que me tornei ante a negação da vida,
ante a negação dos dias esboroados em cinzas,
simulacros de entrelinhas do que se dizia "amor"

Agora mimetizam-se no falso vento que emana da borda da noite
palavras soltas,
conversas que vêm de fora com seus sons diacríticos
Sons escorrendo nas areias de uma ampulheta
de um fevereiro fragrante
dizendo a cada instante o gesto sustido nos estilhaços do espelho
que a alma ainda remói

Em 1920 eu era assim como esta distância alheia à desinência do tempo,
das esquinas contidas no espaço das noites possíveis pela luz da lua,
passíveis de se dividir em cores pontilhadas,
chamas azuis

Em 1920 a lua se esvai...
desfeita pelo vento sobre o mar
e o meu coração arranha a transparência do céu
sustentado pela trama do que sou...
ou do que penso que sou
O homem não é o nome que o nomeia
O que fui e o que sou é obscuro:
rio,
argila,
rumor,
espelho,
pergaminho,
serpe,
formiga,
pensamento de um Deus...?
Não sei!!!

Quantas vidas há dentro do rito?
Com quantos olhos olhei e não vi?
Com quantas mãos tateei o mundo iludido que que o tato decifraria o mundo pra mim?
Ouvi você dizer, baixinho, rente ao meu ouvido: "Te amo"
e foi tudo que guardei do desenho da tua voz


Em 1920 eu era assim como o pássaro mergulhando na espuma azul...
...da vertigem repentina de um mar tocando o céu

O silêncio não coube no mar,
nem nas mãos inertes da angústia
em 1920

Imagem: Fernanda Cordeiro

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