terça-feira, 31 de março de 2015

Sonhos adormecidos


Agora que os sonhos adormecidos
querem despertar,
inadiáveis como as palavras
na iminência de serem poesia,
sobem aos céus os perfumes
deste setembro recendendo a azul
e ao aroma magoado da névoa da manhã,
úmido orvalho sonolento
Nos jardins onde cantam outros pássaros
acrescentando ao sol
o ímpeto derradeiro para dar fuga à manhã
as flores ressumando nostalgia já se abriram
com suas cores translúcidas e fragrantes,
inquietas como o mar inacabado que,
se desprendendo da areia da praia,
deixa a espuma friável do fogo que feriu
a bruma e os ventos
Um suspiro longo e canoro junta-se ao dia
que esplende com o primeiro azul
entornado sobre os barcos que dançam
e latejam ao recolher das âncoras,
ao enfunar das velas,
e seguem singrando por mares
exaustivamente navegados
pra não morrer

segunda-feira, 30 de março de 2015

Versos de linho e organdi


Acordo com a primavera se insinuando
por entre a luz prometida
aos raios do sol e à flor de fogo
que arde nesta manhã de setembro
Os últimos pássaros que migraram no inverno
agora se vão rumo a longínquas e tardias ilhas
onde um céu úmido de azuis e de fulvos instantes
os espera emergindo das tardes florescendo nos vergéis,
nos campos de trigo
que ondulam, inermes,
curvados aos ventos
que arrastam o dia,
utópico,
divino nas indesnudáveis  manhãs
Vão como se uma voz acordasse e os avocassem
sendo imperioso partir
deixando na árvore a singular solidão dos ninhos
deixando nos caminhos extenuados dos ventos
o murmúrio do canto primordial acordando as manhãs
Levando consigo a semente de um sol
amarfanhado entre verdes nevoeiros
Levando a fluida essência do galho
onde o demiurgo pôs uma flor
e as sílfides confiaram os segredos de arcanos invernos
enleados às canções que adormeciam as tardes
Lá se vão os pássaros,
poesias declamadas,
versos de linho e organdi,
rumor de asas solfejando o silêncio,
pequenas carícias que,
inadiáveis,
vão-se embora
como os rios, os ventos e os homens

domingo, 29 de março de 2015

Aquele dia, aquele jogo


Aquele dia, aquele jogo...
O campo era sempre aquele mesmo pedaço de rua,
de uma mesma rua Maria
Sempre a mesma meninada
se achegando de todos os cantos da rua
para mais um “clássico”
nesta tarde dementada,
nas mãos a bola quase redonda 


Par ou impar?
Escolhem-se os times 


Vira seis, termina doze
(alguém grita) 


Pedras ou latas,
postas de um lado e outro
duas a duas
à guisa das traves do gol,
vacilante e precário gol  


Rola a bola,
lírica e lúdica,
Começa a pelada
A bola quase redonda
um tanto rola, um tanto pula
Nos desvãos da rua de terra
o futebol tinha as cores
das tardes ocras e friáveis
tinha a cor da lama ou do pó vermelhos do chão
conforme fosse chuva ou estio o clima da decisão 


A bola rola
e quica e pula
Primeiro chute ao gol,
a bola rola quase redonda,
pula, murcha de um lado,
e escreve poesia
no chute cheio de esguelha
deixando um rastro de talvezes
na trajetória rumo ao gol
A bola bate na trave mensa
o gol não sai
a trave cai aberta e lenta
sobre a sombra de si mesma 


Os pés descalços, embaraçados
no ocre pó fosforescente
da rua de terra,
aplicam o drible aliciante
lancinante
a finta desconcertante
a meia-lua tangendo o silêncio
do passar do pé sobre a bola
A ginga que desnorteia o adversário
O pé que chuta a bola canhestra
e inscreve a sombra (quase redonda da bola) no gol 


E se o quique da bola,
girando quase redonda,
soneteando o gol,
abrisse do silêncio o grito quase esfera,
quase meta, quase gol?
E se o tempo, tendente a passar ligeiro,
imponderável e afoito,
acobertasse o momento infindo
de uma pelada de rua
conforme o tempo atemporal da lúdica infância?


E se a infância era assim,
e se o futebol de rua era assim,
e se a bola nem era tão redonda,
mas mesmo assim a gente se divertia,
era por que tudo que era
era molecagem e fantasia,
era por que era aquele jogo,
aquele dia,
a mais vadiada alegria

domingo, 15 de março de 2015

O que é que te sustêm?


O que é que te sustêm naquele momento em que a vida te chama aos berros,

A fé na vida?
A fé no homem?
A fé em si mesmo?
A fé num deus?
A fé nos deuses?

O sonho?
A ilusão?
A utopia?
A apatia?
O arrivismo?

As drogas?
O álcool?
O fumo?
O sexo?
Os vícios?

A reza?
A súplica?
A prédica?
A ladainha?
Os mantras?

O amor?
O ódio?
A afeição?
A ojeriza?
A execração?

A solidão?
O silêncio?
O grito?
O choro?
A possibilidade da morte?

A crença espúria?
A crença cega?
A crença ruminante?
A crença na guerra?
A crença na fera?

A compaixão?
A indiferença?
O altruísmo?
A insensibilidade?
A comiseração?

O passado?
O presente?
O futuro?
O atemporal?
O infinito?

As mão postas
repetindo
eternamente
amém
amém?

e o poema despenha-se no ar ao desmanchar do dia?