quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Seis quadrinhas para o mar e uma reflexão

Qual o sentido do mar
todos os dias
passar na porta de casa
sem nem sequer me olhar?
 
 
O mar que dorme sobre a pedra
fremente
não é o mesmo mar
que chora a solidão da gente?
 
 
Quem acendeu no mar sua centelha de espuma
toda incendiada em ventos
em aflição, longe o grito, esperando
que eu lhe ouça os sentimentos?
 
 
Longe o grito,
longe o mar
Senhor calai minha voz
Senhor me deixai chorar
 
 
Caminha o mar na transparência da areia
distâncias de sal e de granito
caminha e apreende o lugar
incomensurável, bonito
 
 
Amanhece o mar na baía
e dentro dele amanhece o dia
é tempo de violetas nas janelas
é tempo, em nós, de poesia
 
 
Há um momento infinito em mim
quando fecho os olhos
no qual pousam mares
e gaivotas
réstia de luz
dentro de um prisma
e bebo areias
na concha das minhas mãos
e, então
tudo o mais é de outros tempos
espanto, medo, silêncio,
a poesia não feita
o antigo e intenso desejo de voar
gostar de ti
beber minha dose diária de cicuta
morrer
reviver
reatar o conluio com a vida
remorrer
impune e repetidas vezes
indubitável como a imagem infante
dos olhos remelentos da névoa das manhãs
o mesmo ramerrão de se abandonar
ao choro que atravessa os dias
mascar o sacrossanto grão de solidão
e ouvir a chuva e o vento tamborilando e assoviando
no telhado
azulando e encantando as tardes crepitantes e mornas
como as nuvens e seus berloques aquecem e enfeitam
os jardins com seu poeta em cada flor

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Verdade

Eu nada sei da verdade
Eu nada sei do antes insidioso
do mar
eterno vate
de homens e de almas
confundindo
as suas águas
com as minhas mágoas
espuma das ondas aladas
à procura de um céu
para morada do canto e do silêncio
margem imperfeita do tempo
Obscuras são minhas certezas
resgatadas pelo vento vermelho
que sopra entre um poema e uma morte
dos versos ocos e mudos
sem nome
sem tempo
ilhas
de um efêmero oceano
surdo
para que eu possa chorar sem constrangê-lo
Na noite com seus poemas falazes
impudentes
repousa o gesto incipiente
ave implume
o vôo extenso que se projeta
na atmosfera brumosa
Eu nada sei da verdade
Do êxodo em meu coração
Nada sei da criança
que por e pela terra vivia
com seus pés vermelhos
quando no barro chovia
amalgamando as almas
na greda friável, macia
Um dia verás que Deus
é um aturdido pensamento
e de pouca ou nenhuma valia será
a inquietação da verdade
O vento que leva a folha
por outonos de esmaecidos vermelhos
e os seus troncos de lata e zarcão
cria ânsias de miragens de sóis irisados
furtivos
mudos
em chamas
A verdade não está na palavra
e seus sentidos inconstantes
e dúbios
A verdade pode estar no
exílio da tarde
para que a noite se distenda
e trace com seus gestos negros
o caminho miúdo das estrelas
Pode estar
no rochedo consumido
pelo desassossego das águas do mar
Na praia deserta onde possa se descansar o destino
Sob um céu recluso
No rio
No amanhã
Pode estar na tua sorte
No nascimento
Na morte
de tudo que acreditavas
quando semeavas
teus pomares
de tempos
e incertezas
Da verdade eu nada sei
Me diz o sortilégio:
é tarde
É quase hora de voltar pra casa
Às vezes ouço esta voz de argila
infinitamente mistério
semente
ternura
Às vezes não ouço silêncio nenhum
A alma desabitada
Eu, sem caminhos
sem verdade
lua
sonho
sopro
cadência
segredo
noturno girassol
pássaro
medo
urdidos nesta agonia

sábado, 25 de fevereiro de 2012

A rosa da noite

a rosa da noite
no campo de flores
confundida
meio triste
feito um espúrio mundo
o coração desfeito
grão de pólen
suspendido na crisálida
do vento que vem do mar
suspira
enquanto anseia
os beijos da madrugada
e o orvalho
que as águas tecem
de um infrangível olhar
que se comove à espera do beijo
convertendo em poemas as lágrimas roubadas
dos olhos de um anjo visto na terracota de um céu errante
e a rosa, no campo de flores, calada, chora a pena dos alaúdes
chora sua côdea de dor
sob um céu constelado e pintalgado de ledos pontinhos tiritantes e azuis
 
 
no campo de flores
a lua fura o ar de invisíveis véus
estilhaça o escuro da insônia que a envolve
ferindo de prata o campo incendiado de negro
na noite pintalgada de olhinhos irisantes
folhas caem à passagem do vento
e no manso múrmurio do cair das folhas
dormem os pássaros e as abelhas
dormem as vidas e os rios
dormem os perfumes da mata
vígis, velam os corações vazios
 
 
ai, morena
vem comigo
ver as estrelas em flor
nesta noite irisante
onde tudo é suave eternidade
embriagando as nódoas destes esboços de amor

agora
nos lábios rubros da aurora
nas brancas mãos da ternura
a rosa e o dia amanhecem
a rosa se cobre do pensamento de Deus
reverdecendo sensata
na inocência que as palavras tem
no seu perfume quase humano
na sua candidez ungida pela alquimia
 
 
amanhece o mundo onde serei
terra
vinho
mel
loucura
campo de flores
gerânios
melancolia
desespero
geometria
trigo
farinha pra
poesia
 
 
(...)
 
 
a rosa...
a rosa, enquanto a noite dormia,
entregou suas pétalas ao beijo da solidão
ávido mar
atordoado poema
absorta ao nascer do dia
o destino entrando pelo campo de flores
a rosa se redime
estremece
um breve suspiro
esquece
formosa
perfumosa
a esperança inaudita
a vida é o entardecer de um momento depois do outro
o sol se avizinhando de mansinho
acordando o campo de flores
morrendo dentro do mar
a vida é a poesia tão densa
que basta um tremor pequeno
para que a lua derrube o céu
a vida é bicho
é enfeite
é namorar na chuva
estro falaz
aroma de flor
a vida só vale a pena
se a gente morrer de amor

(e tudo dentro da noite, e no outro dia, era a mesma poesia)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Vida

na memória dos poemas
na ponta dos dedos
nos olhos fechados do sonho
nos espelhos escorrendo tinta
da dissolução das imagens
pernoitam ávidas aves de pedra
de inquietos cantos
pernoita o homem obscuro
com seus atos de miragem
com sua insaciável voragem
com sua voz turva
sua fome de chacal
sua poesia pecadora
dos versos clamando pela madrugada
nos olhos do mar tremeluzindo
soluçando enormemente
a dor esquecida nos traços tristes do retrato pungente
enfeiando um mundo que ainda não morreu
mais além
o jardim de brisa
rente às flores
inunda o céu de papel-arroz
com estrelas
com silêncios
com adivinhas para os poetas
escondidas nas nuvens de algodão
na luminosidade esplêndida
do dia
no fim estalado da escuridão
da noite
aberta como um verso
pingando, oscilante,
escorrendo pela mão
vertendo do fim dos meus dedos
meus medos
minha ilusão
meu rio
minha saudade de mim
e de ti
minhas bugigangas de infância
meio pirulito vermelho
sem o palito
a bola surrada e puída
o pião batatinha
com metro e meio de fieira
sete bolinhas de gude
uma pipa voadora
a estrada aberta até o fim da ladeira
uma gaitinha de boca
que eu não sabia tocar
mas que pra mim tinha o som e o gosto
de bocados mordidos de liberdade
de vento entrando pela janela
balançando meus sonhos
a minha alma acesa ao fogo
do exílio da solidão
os pés vermelhos de terra vermelha
que por ali era muita
as costas da mão pra limpar o nariz
meus olhos em roda do teu vestido
minhas mãos colhendo da vida
meu primeiro amor
que enchia meus dias de segredos
as noites de medo de ficar sem ela
isto é tudo que tenho
dentro deste quarto escuro
nesta voz dentro de mim
pra arrastar as noites
e os passarinhos
para esta brincadeira
de ser poeta
sentado nesta cadeira
pensando um zilhão de besteiras
sem sono pra acordar
uma saudade
de um tempo que eu não vivi
das pétalas sedosas que eu não toquei
do perfume que eu não senti
da tarde irisante depois da chuva
saudade bebida aos golinhos
oh, menina
me afastando de ti
quarenta anos depois
a quem possa interessar
ainda te amo
eu te amei a vida toda
só não tive como te contar
e nem um verso te dei
eu não sabia falar
eu não sabia escrever
eu não sabia estas coisas que aprendi
no tempo escorrendo mel destes quarenta anos
ô, meus olhos negros
como em nenhuma noite há
agora são as lembranças ao redor de mim
delineando os meus sonhos
num simulacro de vida
me apanho te amando
antes e depois destes quarenta anos

é madrugada
acordei no meio da madrugada
pra beber água
o pensamento uma tentação
sento ao computador
descalço os chinelos
a cidade é um corpo delicado e suave
me olhando pela janela
amo a barra do dia inscrita nesta quietude
um automóvel passa riscando o ar com seu som
ainda de sono
fragmentos de um sorriso
como é possível amar o dia
com a presença deste laço azul da noite?
com este esforço piedoso do Senhor
para suprir esta carência compassiva que me sorve aos borbotões
a vida engravida da gente
e faz defensável todo e qualquer argumento
a espera
dos teus olhos negros
o céu azul de cobalto
os remos imitando a busca por um caminho
a vida cresce nas minhas perguntas
as coisas são o que são
e a vida...?
a vida é esta coisa coruscante
a vida é este eterno cantochão

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Agora

agora
igual a primeira hora
do primeiro tempo
do instante que faz o presente
translúcido
da vida que me devora
do tempo inefável
rabiscando sempre a primeira página
deste livro de deleitosas palavras
de ásperos e obscenos grafismos
palavras castas e tristes
cativas de si mesmas
tímidas
flertando, acanhadas, com o
não
estas palavras
que nos escuros se acendem
fogo-fátuo
agonia
palavras desta tristeza ardente
aguda senhora que vive
e morre
nos versos
nos livros
nas pétalas das rosas
na fria adaga do espinho
no dias indistintos
palavras frágeis
pequenas
doídas
solitárias
como uma sombra num lago
agora
com as nossas letras disjuntas
por entre o sonho e a razão
febrilmente escorre a minha mão
escrevendo na minha vida incendiada
adeus
saudade
(...)
solidão

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Máscaras

no engodo das máscaras que a vida trama
no inquietante segundo que as máscaras escondem
as imagens refletidas nos espelhos
falseiam as fulgurações da alma
transmudam-se em sombras
esgueiram-se por entre o vento surdo e submisso
fogem das fissuras por onde vaza a luz
escapam aos olhos febris do medo e da culpa
diluem-se
no asfixiante silêncio das ânforas veladas nos vales escuros
não há verdade nos seres que as sombras plasmam
nas formas úmidas da fauna humana
na memória refratária da impiedosa vigília
fragmentos seculares
insidiosos mundos de estranhos mitos
enredados em sórdidos solilóquios
vestais da alma
dos oceanos
das terras poeirentas
da sede fosforescente
perdidas na morosa viagem
onde ouve-se o vácuo dos passos em pleno mar
onde assolam as máscaras de degredo e ódio
velhos hábitos dormentes flutuando insuspeitos
as velhas mãos sobre o peito
os gestos lentos de quem tateia a mesma melancolia
os sonhos desfazendo-se em febre e ácidos
a sede de cicuta molhando com saliva os lábios ressecados
esquecidos da simplicidade do beijo
do questionamento dos indecifráveis dias
quanto tempo vai-se esperar até ruirem os espelhos?
e o desmoronar das sombras?
até quando a vida será construida nos soluços da areia apenas?
a vida sedutora da persona refletindo o nada
a ilusão dos outros tantos dias tão iguais ao nada rasteiro e vulgar
o inescrutável caminho incendiado de equívocos
as serpentes enlaçando as nódoas de luz
rastejando sobre a borda da máscara que irrompe do delírio
onde a vida escoa voluptuosa
não sinto saudade dos meus olhos refletidos no espelho
sinto no peito a tua ausência sem partir no dia opaco
a tua voz solfejando a esquecer-me
vou por estes caminhos sem regresso
meus passos ardem nas campinas de flores
avanço por entre o campo de açucenas
a tarde se esvai em gestos lentos
pende do céu entorpecido um esgar de sóis em desalinho
a brisa, invisível presença,
anônimo barco, aflora-me o rosto
lembro-me de ti
deponho a máscara
deitam-se os cansados dias de infindáveis alegorias
prostra-se a minha ignorância sobre a poeira dos pedriscos
e o rastilho do outro lado do espelho mente a verdade pressentida
templo de engodos
prisioneiro da cegueira sulcada nos caminhos a nos guiar
esquecido da sua própria morte
o tempo cobre-se de de revelações
a tarde pulsa incessante
as luzes lentamente desvelam o meu verdadeiro rosto
a primeira estrela deambula pelos céus
as cores desmoronam no rubro horizonte
a criança que fui renasce em mim
o espelho quebrou-se
o destino desenha em mim a solidão
definitiva
cordel imanente de minha alma
o vento a zunir debrua com cânticos o entardecer da memória
com as minhas mãos cegas
ofuscadas pelas irisantes luzes da verdade
amalgamo o barro matizado pelo pó de estrelas furtivas
e começo
lenta e minuciosamente
a construir a primeira noite da minha vida

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Eterno

Silêncio...
A manhã ainda vislumbra no céu os últimos sonhos da noite
quando a brisa acorda os girassóis
reclinados para a luz segregada pelas fragrâncias da noite
O dia desponta integrando-se aos sussurros
que as estrelas murmuram
lábios rubros de ilusão
Percorre as linhas indefinidas da tua silhueta
como a uma ilha em um mar de noturnos véus incandescentes
Estremeçe-me o olhar na irisante manhã ávida de eternidade
Chamo por ti
Muitas vezes chamei por ti
Não vens
Nunca viestes
Outrora houvera um mar para acolher a ti
e a tua lua enclausurada num céu que se transmuda em sombra perecível
a refletir seus lumes e ecos imaginando os dias ausentes
sem ninguém
Um mar para espargir a noite lentamente
na inquietude que me esperava como um cais inundado de memórias
e lembranças do tempo em que te conheci
Um mar tartamudeando sons de uma aurora fulva
na travessia perene dos pés descalços de um anjo
Arredando os liames dos trêmulos segundos
O ininterrupto marasmo de ir contando os dias no calendário
como se o tempo existisse e incessantemente não esperasse por nós ali adiante
com sua insustentável sentença
O ar e a luz do sol de fevereiro penetram a janela
Murmuram poemas no vento purpúreo
Líricos poemas de tempos antigos e distantes
Amarelecidos sudários a cobrir os medos e as dúvidas
Estalam preces para o despertar do dia
cujo único ofício é o de predestinar a minha morte
Apesar da tua ausência não me sinto sozinho
Teu nome pernoitou dentro de mim
A luz e a ausência da luz tecem a mentira das horas
que enforcam a vida
latejando sob os meus pés o impulso para o salto...
para a morte
De mim nada mais restará quando me for
do que as flores brotando e sucumbindo
antes que a primeira pétala ensopada de luz e vento toque o chão
O olhar de um sol se pondo arrastando as noites que penetrarão
as janelas que deixarei abertas
E a brisa trazendo o perfume dos jasmins
atravessando a penumbra
do segredo
e da desolação
diluidos
no sono
na solidão
da qual me fiz
fuga e omissão
esperança e dúvida
Visão magoada de um sonho
Na irisada pele do tempo
a manhã esqueceu o meu nome
Silêncio...
O silêncio se ergue rente à morte
O chão é cinzas
Perenes cinzas e presságios
A alma, enclausurada, indaga mistérios à voz do vento
O mistério ameaça ruir
Infindo é o sono daquele que dorme o sono dos espelhos
O regresso, lento sono, pressente a brisa na noite revelando as imagens ilusórias
A morte anoitece devagar sobre mim
Abro os olhos para o imenso vazio
Espoliado do "meu" mundo
Meu nome não é mais meu
Meu coração, que nada possui, partilha o abandono de ser eterno
Minha alma lê as imagens refletidas nos espelhos
Silêncio...
Só o vento sopra...
Cantando lindas e cativantes canções
Sonolento, do outro lado do espelho,
o dia acorda acendendo
o sol espelhado de um outro mundo
onde livre, recriada, minha alma pulsa sua essência
Andorinhas passam em bando
levando consigo os prelúdios da manhã
acordando os girassóis
o mar
a corola rubra do horizonte
e a minha alma
inefavelmente
eterna

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Fugaz

A noite repousa na neblina suscetível
ao fogo insone
que envelhece comigo
eclodindo em sonhos premonitórios
Esvai-se o instante contrário aos meus olhos
à melodia dissonante da minha poesia
Eu que morro proscrito a cada instante
Eu que repercuto em insondáveis mundos
em palavras que me mordem
enquanto o silêncio esmaga o sussurro da tua ausência
Esmaga a mim que o amor esqueceu
inexplicável imagem desfocada no espelho
num tempo incerto
lento
dissoluto
onde o passado escorre
como a tinta sinuosa do silêncio dos teus olhos negros
Absolutamente cúmplices do destino que surge espesso
como mantas do medo que circula em minhas artérias
como a ponderação do grito que embate contra os ventos do abismo
Morro no passo esmagado das horas do relógio
no cair das pétalas da flor...
No outono
morando nas árvores nuas
rumorejando as palavras vagarosamente
cicatrizes incandescentes dos dias
espalhadas pelo chão
palavras que não reflorirão
em tua alma absorta
e nem dentro de mim

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Regresso

anda, vem brincar comigo
neste velocípede
que ficou guardado
nas marcas fundas da terra vermelha
ficou amiudado nos meus olhos de cinco anos
nas tardes do passado inabalável
quando a pobreza sentava-se conosco à nossa mesa
e éramos felizes por que tinhamos uma vida pra inventar a cada instante
para que o momento seguinte se cumprisse sem mácula
uma vida repetida no vácuo dos ecos dos nossos pés descalços
sem pressa
deixando pegadas lentas
na poeira
vermelha
macerada
da nossa rua
nas nossas vidas
peremptoriamente
como sangue na veia
vem pular corda
brincar de roda
rodar pião
pular o tempo
rodar a vida
soltar balão
esquecer o choro nos olhos de um tempo antigo
nos céus redondos das amarelinhas
vem brincar de passa anel
por entre as mãos entreabertas de algum anjo barroco
na rua que era da gente
e que agora é só uma rua deserta
suspensa em sua essência de artífice de sonhos
vem brincar de fazer sombra na parede
onde escorre a luz da vela
bruxuleante
entalhando com as mãos
cachorros
micos
dragões
sombras bordando
os olhos admirados
num tempo de vagarezas
vem brincar com nossos medos
enredados aos passos da hora
lenta e inconclusa
vem cantar comigo a cantiga da espera
do descomeço de tudo
do desconsolo de tudo
vida
dor
felicidade
teus olhos negros
reis de um reino só visto das tuas janelas
negros sininhos que me olham
e plantam saudades
ai quem me dera rodar
na vertigem dos teus olhos
e encontrar novamente
a minha boca na tua
os meus dedos fazendo cócegas
roçando tua pele nua
na maciez do lençol
que nos servia de céu e de lua
vem brincar de ser saudade
assim como quem acredita que o tempo passa
um instante de cada vez
sem este perfume doce
e sem as bilhas da maldade
vem jogar as cinco pedrinhas
que as nossas mãos ainda guardam os ruídos
do baque que as pedras dão
quando alcançam o chão
quando cada pedrinha jogada
é um fragmento da mão
vamos brincar de beijo
na cabaninha dentro de casa
onde só cabe os nossos sonhos
nossos corpos pequeninos
as flores cujo sons não entendo
a tarde marchetada dos nossos onze anos
e o leve ruído das asas
dos anjos
serenos
profundos
densos
alegres
solitários
menestréis
recitando a luz de maio
anjos
fuga
diáspora
sementes deste lugar
onde o amor é inocente
dá-me tuas mãos, vida minha
para que eu não pereça na memória dos teus dias
deixa tuas mãos nas minhas
pra eu as guardar na lembrança
pra eu não ir morrendo de paixão
e de ausência
nos caminhos desnudos
do enredado tempo infindo
que céu nemhum me despirá
desta noite em teus olhos
negros poemas sem métrica
ágatas negras
negros veludos
suaves
feitos de amor
de linhos negros tecidos
casulo de negra borboleta
negro liame, negra flor
sonhos e mistérios caídos ao chão
anda, vem
vem inventar nova estória
usando o reverso das palavras
o lúdico ser dos nossos onze anos
num jardim de estórias fugazes
trêmulas
risonhas
que a tua boca pequena desenha
com este ar de arcanjo de um grande deus
com este sorriso maroto
vem brincar de ser minha garota
que eu brinco de ser seu garoto
vamos apanhar sementes de vento
para plantar a madrugada
e colher estrelas afoitas
que caem de dentro da pressa negra da noite
no momento em que a noite se entrega
a lirismos de escuridão
silêncio!!!
vamos brincar de vaca amarela?
não pode rir nem falar
se não...
come tudo, tudo, tudo
e neste silêncio profundo
calados a vida e o mundo
olho você...
tão linda nesta cara séria
de retrato três por quatro
charmosa
até o último fio de cabelo
o riso aflito na garganta
as palavras desperdiçadas por dentro
os olhos
os corpos
se provocam
vaca amarela...
vaca amarela...
jorram pensamentos falando às gargalhadas
converso comigo mesmo para não rir ou falar
olho teus olhos...
caminhos negros aonde vou te encontrar
e te amar
enquanto o dia clama pela claridade dos teus beijos
vem brincar de aprendiz
do riso solto e gaiato
vem brincar de ser feliz
pular fogueira no sol
brinca comigo de sonhos fora do tempo
me abraça
antes de eu desesperar
vamos brincar de amarelo
num arco-iris de sedas pairando no ar
vamos brincar de silêncios borrifados
de cantos de rouxinóis
anda, amor, vem brincar comigo
que o tempo recortou a vida
mastigou nossos brinquedos
fez poeira para cobrir os nossos passos
manipulou os débeis tracejados das horas
dos dias
dos anos
mas não mastigou o anelante rumor
do antes de tudo
antes da réstia do sonho
do desassossego das folhas
desprendendo-se dos relógios trêmulos
pela ausência friável
e inconsentida de nós dois
e por esta saudade oblíqua
do amor cândido e delicado
da rua cinco de outubro

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Entardecer

Amo o entardecer dos poemas,
círios acesos,
liríos diáfanos,
tatuados na pressa do mar,
compondo a música fragrante e o anoitecer.
Úmido leito onde a vida dói e pulsa,
onde as vozes confundem-se com a maresia
e a saudade abandona-se lenta e incomensurável.
Na escuridão esculpida pelo perfume e pelo tremeluzir da noite
dormem os poemas que os ventos transformam em dunas silentes,
bordam no céu almiscarado este navio noturno soluçando a penumbra do mar,
cenário para a lua,
e a sombra do seu cansaço.
Transfomam em fogos e estrelas,
que irrompem das palavras cintilantes, luminosas, ao lume da solidão calcinante.
O entardecer cor de malva,
dissolve-se em manchas azuis e lilases no alaranjado das horas e nas palavras dispersas recendendo à alfazema,
espargindo mares e astros e mundos feitos de barro e cores pertubadoras das aragens e dos sonhos,
onde voláteis luas incandescentes rasgam o silêncio dos fins de tarde entrelaçadas aos poemas latentes emergindo na alucinação dos crepúsculos.
Amo o entardecer dos poemas.
Amo o tempo que só aos poemas pertence,
tempo de horas ausentes,
tempo da alma arrulhando carinhos no éter,
tempo de sombras no espelho,
tempo de espaços inesgotáveis,
tempo do grito silente e antigo tolhido na branca janela,
tempo de amores que suavemente bafejam a pele com a imperceptível respiração das folhas de papel,
neste indecifrável novelo de letras sobre o papel.
Amo o entardecer dos poemas,
quando o bronze das sílabas desprende-se dos dias
incendiando o mar,
rompendo as quilhas das noites,
estendendo o veludo manchado de sonhos
do que um dia foi amar.
As aves procuram as folhagens.
O som de um coração que o amor dedilha em cumplicidade com o mar evola-se no ar.
Os poemas e a música compõem a textura a paisagem e os segredos do inaudível luar.
Surgem as primevas incertezas das sombras.
Enigmas.
Monólogos.
Os poemas,
ébrios de horizontes coruscantes 
impregnados de silêncios,
de soluços pra namorar,
embalado por uma roda-gigante
como os olhos voltados pro mar
Os poemas,
encharcados de tempos antigos
dos sons anímicos do cosmos,
de cânticos e elegias,
do pranto que chora o fim,
entardecem,
quando os girassóis se inclinam
dentro
e fora de mim.