terça-feira, 30 de agosto de 2016

Desenhei a noite


desenhei a noite
com lápis gastos pela memória do tempo
dizendo despedidas e distâncias
pelas sílabas tartamudeando lembranças
pelas velhas palavras
pelos ecos dos versos de um antigo poema
arquétipos de um sempre e mesmo dilema
das mesmas vidas tantas vezes vividas

desenhei a noite
com dobres de sinos
dobres sonoros e desnudos
e o farfalhar das asas do vôo das andorinhas
carregando o instante e a tarde
molhados pela chuva impudente e insonte

com as (poucas) roupas da meretriz
eu desenhei a noite
toda cheia de cores,
sonhos,
perfume barato,
uma lua carmesim acendendo as esquinas
e com as lágrimas que se escondiam
nos olhos nus da seminua meretriz
fiz a poesia inviolável
e o silêncio vagaroso e ingênuo,
incessante e incontido,
esquecendo-se nos gestos intemporais
das mulheres sem nomes
das madrugadas insones

desenhei a noite
com um gosto travo de passado
de tempo perdido
com gosto de engano
e do sono das tempestades
dormindo no colo doce e rítmico da alma

desenhei a noite
com o sentimento desatando nostalgias
com teu nome sussurrado pelo invisível vazio
pela vastidão da ausência semeada nos ventos
e as lembranças de um sonho que já se pôs a dormir

com o pranto a me chamar
eu desenhei a noite
toda cheia de olhares,
desencanto,
quieta loucura
e com o desespero que se escondia
na hora de ir embora
na fuga dos passos andarilhos do amor
desenhei a noite
e os cenários simulacros da indiferença

desenhei a noite
com a lua inerte sobre a vastidão do deserto
e miragens trazidas pelo vento inefável
que morde o silêncio imprevisível
que antevê a manhã
e tomba
e se cala
no corpo de um céu sem perfume

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