domingo, 28 de setembro de 2014

Hora de ir embora

Na tarde morna e languida
sob um céu vermelho que transpassa
os jardins
a flor floresce
na praça
distraída de quem passa

O dia caminha para a ilusão do fim
Aperto o passo para que o fim
(ilusório e atemporal)
não chegue antes de mim
ao destino fatal
que desconheço

Entro em casa deixando as reentrâncias
da vida lá fora onde o mar marulha
Refugio-me na ilha dentro da ilha
Refugio-me nos meus livros
Meus livros
eu os abro como cortinas de teatro
Sinto-lhes o cheiro inefável do papiro impresso
Sinto a maciez da sua alma branca
Alumbro a minha alma no que eles têm pra me dizer
Ouço-os,
arrebatado por este ajuntamento de "as" e "os"
e arrasto meus dedos pelas páginas,
meus olhos indagam o porquê da lágrima
e a palavra me encanta, me enternece,
abre chagas, me revolta o coração
Me calo, sou solidão

Amadurece a noite na ilha
prelibando os sonhos que nos séculos aguardam por mim
Uma mariposa se debate na tela da tv,
fascinada pela luz,
cansada de procurar a janela por onde entrou,
mas impendente ao fascínio da luz,
presa ao engano da luz,
morrerá supondo que só a luz é caminho
e ignorando a escura e múltipla liberdade lá fora

Enquanto a noite amadurece,
enquanto à sorrelfa a lua acontece
o eco e a estesia delirante das palavras
lembrando um melancólico blues me traz
dois ou três amores inenarráveis,
o beijo terno e longo,
o cárcere de uns olhos negros,
a música vindo de um rádio,
e um amor de menino que era a minha achação

E vou caminhando caminhos solertes,
hora lento,
hora célere
Por vezes altivo e garboso,
por vezes olhos no chão
olhando de soslaio a miséria
enquanto dilacero meu pão
E quando menos se espera
sem aviso, pressentimento ou demora
já é hora de ir embora

Os dias caminham para a ilusão do fim
Aperto o passo para que o fim
(ilusório e atemporal)
não chegue antes de mim
ao destino fatal
que desconheço:
quando eu nasci
nasceu o dia comigo
quando eu morrer
anoiteço

sábado, 27 de setembro de 2014

O inimigo

 
Salmo aos inimigos
 
 
Quando jovem
lendo os salmos de David
não entendia por que o rei-poeta
gastava espaço em suas preces
pedindo proteção contra os inimigos.
 
Não sendo rei de nada, digo: Senhor!
- sem permitir que em sua fúria me destruam-
preservai meus inimigos.
Eles me ensinam
o que em mim devo evitar.
Dizem-me coisas
que não dizem os que me amam
por muito me amar.
 
Dai-me novos inimigos, Senhor!
pois para cada um que me intercepta os passos
sempre amigos novos
me abrem os braços
e em cada inimigo descubro
embutido
e pelo avesso
um amigo
trazendo no punhal
guirlandas que nem mereço.
 
Affonso Romano de Sant'Anna.
In Vestígios. Editora Rocco, 2005.
 
 
 
O inimigo é a sombra calada
o cisco que me cega os olhos
durante a caminhada
para que eu não vá por aqui,
para que eu não me perca
nem afunde na greda macia
dos desejos e delírios do poder
É o deserto insolúvel
É a imagem no sonho
deslindando a madrugada
É este silêncio que evola-se
pelas frestas da janela
sem dizer a que veio,
pra onde vai
O inimigo é o espelho mais fiel
dos dramas que escondo de mim
do que não quero ser e já sou
É a fuga patética de um céu
onde os anjos transbordam
em mil faces
passíveis cada uma
de ser o meu "Eu" perdido
ser meu pecado e a dor
de não o ter vencido
O inimigo é a cantata
e a serpente
É o conto de fadas,
a estória indecente
a pulular diante da gente

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Deixa que eu te diga


Silêncio amoroso 1
 
Deixa que eu te ame em silêncio.
Não pergunte, não se explique, deixe
que nossas línguas se toquem, e as bocas
e a pele
falem seus líquidos desejos.
 
Deixa que eu te ame sem palavras
a não ser aquelas que na lembrança ficarão
pulsando para sempre
como se amor e vida
fossem um discurso
de impronunciáveis emoções.
 
Affonso Romano de Sant'Anna.
In Intervalo amoroso & Outros poemas escolhidos.
L&PM Pocket, 2005.
 
 
 
Deixa que eu te diga
Que quando amanhece
Ainda te amo
Te amo quando anoitece
E no desvão das nossas mãos
Te amo
Te amo
Na palavra que ainda não sei
Te amo tanto e quando
Te amei
Te amarei
Deixa que eu te ame na semiluz
Desenhada nos teus olhos,
Na negra noite dos teus olhos
Onde meus olhos mergulham
E emergem
Lentamente
Te amando
Quietos
E sós
Como o verso do poema
Que termina
Antes que a palavra ou o gesto
Possam dizer o quanto te amo
E deste amor eternas sejam
As folhas onde me ergo
Sobre a neblina perfumada do domingo
E no caminho apascentado pelo roçar
Do meu amor na tua blusa branca,
Pegarei na tua mão
E, então,
O amor se dirá
Imperfeito?
Possa ser,
Mas nenhum amor é mais bonito
Que este amor
Silencioso e terno que te dedico
 
 

 


sábado, 20 de setembro de 2014

Centelhas

                                                                                        
                              
                                                                                                                          O fatal

"Ditoso o vegetal que é apenas sensitivo
Ou a pedra dura, esta ainda mais, porque não sente
Pois não há dor maior que a dor de ser vivo,
Nem mais fundo pesar que o da vida consciente.
Ser, e não saber nada, e ser sem rumo certo
E o medo de ter sido, e um futuro terror...
E a inquietação de imaginar a morte perto,
E sofrer pela vida e a sombra, no temor
Do que ignoramos e que apenas suspeitamos,
E a carne a seduzir com seus frescos racimos,
E o túmulo a esperar com seus fúnebres ramos...
E não saber para onde vamos,
Nem saber de onde vimos..."

(Manuel Bandeira. In Antologia Poética. Global, 2013)


O vento sopra misturando as cores que a noite esconde
Farfalha a incerteza dos tempos,
O engodo da consciência produz passado, presente e futuro
O lusco-fusco engendra em mim o equívoco do tempo
E mergulho no engano
A cicatriz de um pecado esquecido em alguma volta da vida
Traz uma sombra anuviando a minha face
Ao redor da noite a glauca luz dos vagalumes
Acende verdes lembranças, encantos e infâncias
Num pisca que pisca anunciando verões
E a promessa que levanta-se das águas
Agora escuras, agora insopitáveis,
Agora o sempre mesmo mistério
A inquirir-me
De não saber se tudo é destino
Nem atinar na febre arguta de menino
Para onde vamos
De onde vimos
Qual o sentido do bimbalhar do sino
A derrubar as horas?
Fazem-se os dias indolentes e infatigáveis,
Alheios ao emaranhado dos clamores e das preces
E um dia conclamando outro, que conclama outro...
Desde de o "Big Bang",
Desde a criação
Ou seja lá o que nos traz até aqui
Ad eternun
Sob a película azul de um céu de agosto
Sob o ar tremeluzente de janeiro
Sob o mistério das partes
Sob a centelha das partes
Que pensam a tessitura do inteiro

Os dias são estes barcos brancos sem porto,
sem rotas  que o levem à noite certa,
Sem timoneiro
Os dias nascem fundeados e expectantes
O sol, olhando por entre a neblina
Tremeluzente do horizonte,
Denota a sensação irreal do Tempo
E o Tempo a si ignora
E o homem de si se esconde
E caminha como se caminho houvesse
Caminha, mas não se sabe pra onde

domingo, 14 de setembro de 2014

A imagem e a fera

 
A realidade e a imagem
 
O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva
E desce refletido na poça de lama do pátio.
Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa,
Quatro pombas passeiam.
De: Bandeira, Manuel. In Antologia Poética. Editora Global, 2013
 


A face emersa no espelho,
Esta poça de lama humana e silente,
Com seus olhos de prata e negrume,
Vai, olha, sugere e cospe
O conceito e a imagem
De uma face inerte e rubicunda
Seria eu esta imagem no espelho
Trancafiada, inclemente?
Cá dentro a fera incriada ruge
O que o espelho não sente
Por mais que eu me olhe
E olho
E quanto mais olho
Mais me duvido, afinal
A luz me cria e reflete
Num instante que só existe no espelho
Quem foi aquele que me olhou
Do espelho sugerindo ser eu, ou,
Pelo menos, um pedaço de  mim?
O espelho não tem respostas
Nestes 55 anos em que espelhos vários
Já mostraram e esqueceram o meu rosto
Mal eu lhes viro as costas

Da fera, então, nem sinal
Está imune aos espelhos
Só se mostra à aflição e à ânsia
Deste José animal 
A fera é Sahelanthropus tchadensis,
Homo sapiens,
Neanderthal?
Fala algum dialeto?
De onde vem este rosnar gutural?
Vem de um mundo primordial
De mágoas e medos
Onde a caça e o caçador se fundiram
na alimária atual
 
A fera não se reflete
Nem na poça de lama
Nem nas águas de qualquer lago
Ou rio dissoluto nas próprias margens
Antes de cair no mar
A fera morde e tritura
E resfolega e devora
A fera é esta fissura
Entre a imagem no espelho
Amantado
E as pombas que não vejo
Passeando do outro lado
No nem aqui, nem agora

O dia arde
Arde a sombra duvidosa e fugidiça
Do arco que se desenha no horizonte
O vento dissolve-se solitário
No planger de alguma flauta
Não há motivo para saudades
A fera se erotiza, acasala e procria
No âmago impenetrável do homem
Na ignara persona do homem

 

sábado, 13 de setembro de 2014

Cores da madrugada


“Há anos que não vejo o romper do sol,
que não lavo os olhos nas cores da madrugada”
(Manuel Bandeira. In Antologia Poética. Editora Global, 2013)
No horizonte a madrugada derramava
lágrimas vermelhas,
tudo era fogo e mar
E o mar trazia a manhã para a areia
Molhava meus pés
Apagava meus passos
Deixava o sal na minha pele
Apagava a fogueira incendiada de segredos
Apagava as estrelas bordadas de azuis
Levava o castelo que eu erguia
com sonhos da minha infância
Levava as palavras
que eu escrevia na areia para você
Arrastava e esquecia a meus pés
as conchinhas e o afeto do contato
e o poema contido
no murmúrio sussurrado em cada concha
que me faziam lembrar de você
E neste momento tudo parava
A flor no botão
A brisa no ar
O verde no mar
A vaga eriçada pelo vento
Meus sonhos de então
Tudo parava
A madrugada
O grito cansado
A ternura de uma mão
em outra mão
O espanto
Duas notas de uma canção melodiosa
e pungente
O tempo: desafio e equívoco
A lua oblonga e torta,
ainda no céu,
ainda bonita
E antes que o sol
se desatasse de vez da madrugada
lavava os meus olhos
nas cores da madrugada
assim como quem
não quer mais nada
assim como se tudo fosse
só o caminho e a jornada

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A Cris me faz cada pergunta!!!


É, Cris, o mundinho da política é um troço sujo e enganador. Esta esperança de que uma pessoa possa resolver os nossos problemas é outro troço sujo e enganador. Por mais idôneo(a) que um(a) candidato(a) possa ser ele(a) sozinho(a) não vai conseguir combater o sistema viciado que é a política nacional. A estrutura podre e corrupta com a qual convivemos e que a primeira vista parece ser coisa do momento, está aí há séculos. É o tal do jeitinho brasileiro de ser e tem suas raízes no descobrimento e no início da exploração da colônia pela metrópole portuguesa. O "modus operandi" da corrupção e do "jeitinho" vem desde estes tempos. Eu, sinceramente, não acredito numa mudança a curto prazo. Não acredito por entender que esta mudança passa, necessariamente, por uma mudança de cultura de todos nós cidadãos. É sabido de todos que a corrupção e o "jeitinho" não são privilégios dos meios governamentais. A sociedade como um todo está contaminada pela cultura do jeitinho e da falcatrua. Há corrupção pública e privada e, mais, não há corrupto sem corruptor. E os corruptores, em sua maioria, estão no setor privado da sociedade. Apesar dos discursos "veementes" de Vossas Excrescências em época de eleição não acredito que haja verdadeiramente o menor interesse em mudar nada. Todos do poder estão lucrando. E quando digo poder estou me referindo ao poder político e ao poder econômico que é, efetivamente, quem elege os "nobres" parlamentares através dos financiamentos de campanha. Eleitos, assim, os senhores governantes não passam de paus-mandados daqueles que lhes financiaram as campanhas. Neste jogo sujo e de cartas marcadas que é a política nacional o nosso voto, me parece, é um mero gesto simbólico a fim de nos fazer crer que temos alguma voz ativa nesta grande mentira chamada eleição. É uma falsa participação para dar a sensação ao eleitor de que ele tem vez e voz neste sistema podre e impregnado de mentira e embuste. Eu não acredito nesta merdocracia.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Apenas a palavra é mais linda do que a brisa de agosto

A palavra derrama cores nas flores,
embaraça-se às borboletas, e voa,
e trina com os pássaros acordando
o silêncio
para, só então, descerrar o véu da manhã

A palavra despe o rei
Põe a pedra no caminho
Deslinda-se com o tempo, lépido ou lento
E o tempo é só mais uma estória na estória dos dias

Nos livros aprendi as palavras mais doces,
as mais profanas,
absolutas,
inconclusas,
plangentes,
as mais preciosas
e inefáveis: amizade, amor, liberdade
As palavras nada são sem o respectivo ato
Palavras de esquecidos versos,
de esquecidos usos,
que o plácido vento leve leva docemente
Diáfanas
Sem destino algum
A dizerem liberdade
enquanto o sol tece a rosa
e a brisa perfuma as chuvas e os canteiros

A palavras só se entrega ao leitor digressivo
E vem a ser o que o sentir lhe diz que é:
o entardecer sobre as águas,
o sussurrar buliceiro das vogais
namorando na poesia,
por vezes é cerração,
que não deixa ver do outro lado,
às vezes é vento canoro
passando entre o capim,
outras vezes se mostra inteira,
ou pode nunca ter fim
Às vezes a palavra foge
e se esquece dentro de mim

Há palavras que só vertem sentido ao sonho e à alma
de quem é sandeu ou paroleiro
É no íntimo de cada um que a palavra escrita
deslinda a sua força e o seu devir,
conforme a fome e a sede que apoquente o leitor
fazendo-se, segundo o seu entendimento,
sua lúcida danação ou o seu adejo redentor

Apenas a palavra é mais linda do que a brisa de agosto