domingo, 26 de julho de 2015
A cidade entardece
A cidade entardece
faz-se cantiga
ritmo
concerto
harmonia
no bimbalhar dos sinos
na hora da Ave Maria
A cidade enternece
em incipientes jardins
no canto invisível e desmesurado dos pássaros
ressoando nas árvores mal termina a madrugada
A cidade é súplica e prece
carpidas no recôndito de memórias ancestrais
no mimetismo do destino
A cidade envelhece
irrequieta menina
frágil senhora
idosa olhando o branco infrangível dos lírios
o viço da relva
o róseo perfume prenunciando a primavera
o poente sendo levado para dentro da escuridão
A cidade mente
despudorada/mente
incoercível/mente
inelutável/mente
inte/mente
A cidade treme
diante dos clamores do vento
A cidade é corrupta
parasita
pervertida
extorque a morte
locupleta-se de indeléveis sombras e medos
A cidade é arrivista
marginal
nunca tem ponto final
A cidade geme
sonâmbula
letárgica
roga piedade
a cidade
A cidade implora
demora
como o verso escondido na memória
como uma lembranças da infância
como o beijo e a carícia dos namorados
como o seio acalentando inefavelmente a mão
A cidade chora
antes de cair desmesurada
junto com as folhas das árvores
e o silêncio quieto do outono
A cidade é nervo-exposto
latejando dolentemente
A cidade enlouquece
cuspindo ruídos e sombras
A cidade esquece
flores felpudas nas janelas
abertas para a tarde afetiva e terna
esquece
segredos de lugares
distâncias temporãs
ilusões físseis
A cidade grita
aflita
solitária
entesada
A cidade se encolhe
quando o inverno chove
sobre o casario e a claridade
como um punhal gelado
A cidade rosna
para a vida que passa
nas rodas dos veículos
A cidade abriga a massa
amorfa
indolente
vitimizada
estigmatizada
impotente
inerte
abusada e violentada
em nome de uma pseudo humildade
A cidade sangra
sete dias
sangues de mulher
letárgica e despossuída
desvalida
A cidade segue à deriva
insonte
réplica transfigurada
aviltada
feudo de injustiças
submissa e muda
A cidade diz poesias
em alarido
quando o vento passa na vegetação da praça
quando o pingo cai na poça da chuva da manhã
e círculos concêntricos aspiram a esfera
que espera e roça em ondas a superfície da água
a cidade declama poesias
durante os espasmos da hora do rush
durante a cadência da dança das luzes
nos longos caules das flores vermelhas e amarelas
dos faróis dos carros deslizando refletidos sobre o asfalto molhado
no rosto indecifrável da fadiga da existência
na delicadeza da máscara kabuki acentuando a doçura das tardes
na hora do dia indo embora na ladainha dos relógios
A cidade me invade
fragorosamente
num alarido
de cores
cheiros
e sons
que o vento lento e alheio carrega escondido
como uma ausência tristíssima
como o instante imperdoável de acordar do sonho
como o silêncio murmurando entre as palavras do poema
que não diz o que poderia dizer
e não enternece a impressentida meiguice da cantiga
cantada à toa para a solidão
para as ruas desertas
para as janelas abertas
espiando, serenas, o burburinho tremeluzente dos carros
uma cantiga
entoada pela cidade para uma noite sem estrelas
para um céu escuro e sem lua
para uma madrugada sem ventura
para um mundo andrógino e sem Deus
sem arrimo e sem muletas
sem lembranças
A cidade corre
escorre
e discorre
como o canto difuso das cigarras
zune
sibilando nas praças
tangendo as pálidas sombras das árvores
debandando pássaros
despetalando rosas
A cidade consome-se em momentos
de euforia e de aflição
A cidade entardece...
entre a síntese e a contradição
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