segunda-feira, 30 de abril de 2012

Junto palavras

Junto palavras como a criança que junta
palitos de picolé
armando uma construção
que ninguém vai ver
e que desfaz quando acabada
e que dos mesmos palitos inicia nova construção
Junto palavras dentro do silêncio
E o tempo aninha-se ao brinquedo
e encobre a vida,
eterno sisifismo,
e esvoaça
no seu caminho sem volta
As palavras espalham flores,
gotas d'água,
orvalhos pelas manhãs,
cantam cigarras à tardinha,
trazem de volta os passarinhos,
incendeiam o cricrilar dos grilos,
põem no céu as estrelas
e em meus olhos saudades
que às vezes parecia até cisco
que nem dava pra ver a manhã caminhando
O sol rasgando as sombras de maio
neste último dia de abril,
mastigando o friozinho da manhã,
sorve o outono e entra pela janela
acendendo as letras pretas na página toda amarela
E a palavra uma hora se revela,
outra hora foge,
inventa,
cai em contradição
Junto palavras como quem junta
nos ventos
sua vaza de solidão

Imagem: Wassil Kandinsky

sábado, 28 de abril de 2012

Domingo de abril

Final de abril
  (domingo)


Declamam as cigarras, estridentes,
o cotidiano da tarde quente

Giram em torno das vidas que esperam
as águas latejantes e envolventes dos sonhos

Risca os ares dourados do outono
uma estrela que inaugura um céu cadente

Cantam nas bordas dos varais
os orvalhos nas manhãs odorosas

Dançam na curva da noite tiritante
os anjos e suas  tessituras

Desce sobre o mar pulsando em ritmo
a bruma esquecida na névoa pungente

Voa em busca do leito largo de um sol
a andorinha que foge das lágrimas
                                            [do inverno

Canta barcarolas com vozes vindas da infância
o vento amarelo que pousou entre teus cabelos

O mundo nem parece mergulhado no caos
as estações se sucedem
os sóis, despertos, roçam o horizonte 
e os dias, todos os dias, abrem os olhos
para incompreensíveis manhãs
à espera do perfume rosicler da aurora


Imagem: Joan Miró

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Como você

Silêncio
Num outono vermelho
as folhas secas se debruçam sobre
os níveos véus da manhã
e caem sobre o silêncio
Colho os versos que a lágrima semeia
nos jardins antigos do pranto
nos quintais de uma antiga criança
Correm descalços os sonhos
pelas praias desnudas da tua ausência
dos teus mares
agora exaustos
a agonia das espumas
desenhando rendas nas ondas
querendo ser poesia
O verso
que não se mostra inteiro
A dúvida
que me divide ao meio
A rima
que arrulha na ponta da língua
e não acontece
A palavra se esconde
atrás das flores que brotarão na primavera
Um vento distraído
se equilibra sobre a página
                              [ainda em branco
A manhã esbatida
flutua sobre os sofismas
Nas entrelinhas
há algo vago
como uma saudade
quebrada
como uma noite
sem céu
sem estrelas
sem o som singelo dos sinos
ou algo assim
como você

domingo, 22 de abril de 2012

Antes que a flor morra em mim

Deixo para minha irmã a lembrança da primeira vez que vimos o mar,
a onda dobradando aos nossos pés
a alegria da areia
a bola colorida
globo terrestre
tão desprotegido o mundo em nossas mãos
Deixo as sensações e as respostas flamejantes do imponderável "Patinho Feio"
Deixo os gestos imóveis
as palavras que eram só carinhos
eram só ternura
aconchego
e mansidão
A lembrança dos quintais que já não existem mais
Deixo os passos a perguntar para onde ir
depois que  a flor desabrochou no pequeno canteiro onde os cravos
pintam de branco e vermelho a pequenina vida em pétalas de uma poesia tirante a Deus
depois da aurora subindo pelas escadas cheia de sugestões para o dia,
depois da sandice da dor

Para Pingo deixo nos lábios o gosto da infância doce e curiosa
Deixo incessante no ar o odor da noite pintalgada de pequeninas contas azuis
Deixo os dias dourados pela luz dos fins das tardes de outono
Deixo o branco da espuma das ondas soando distantes
o mar imerso na noite de lua
amante
companheira
A voz da fonte marulhando na penumbra leve da noite que chega com seus olhos
O colo aconchegando as linhas de um poema
O beijo nu
O poema nu
o soneto em sua boca

Para meu irmão deixo um verso condenado ao silêncio abrasante das areias
Deixo esperanças e uma saudação a possíveis extra terrestres que, por ventura,
nos visitem em suas máquinas voadoras,
com seus poderes de deuses (quem sabe?)
e suas tristezas ocultas no enigma das galáxias que os abrigam
Deixo um raio de sol incendiado nas frestas do quarto
Deixo no antigo relógio da sala os olhos sem poesia das horas
Deixo barcos em meio à névoa dócil das manhãs nascendo numa praia de pescadores
Deixo o sorriso lavrado com a goiva da infância

Para Diva deixo a jóia perene das noites engastadas nos anéis do Lua Nova
Deixo um horizonte resplendente de cores de um arco-íris nascendo depois da chuva,
por sobre a Avenida Ipiranga
Deixo as noites bucólicas onde cantarolávamos Chico, Caetano e Gil
Mais uma dose da sinuosa conversa,
cicios
que a noite é todo o Universo na Teodoro Baima
Deixo, também, meus discos do Pìnk Floyd
e um grito atordoado que a cidade tenta abafar
E no silêncio que se segue ao grito eu deixo-lhe o meu baú da infância
rampa para meus vôos noturnos
pra eu não morrer de tristeza
constante no nevoeiro das lembranças lacrimejantes e eternas

Deixo para Bruno um automóvel sob a sombra de pelúcia do abacateiro

Deixo para Rafael os arabescos do mar que riscam em grafite os sóis poentes

Deixo para Simone a sede destas décadas irredutíveis dormindo entre saudades que as noites trazem de longe
Deixo o sabor do amor molhado na sua pele de urgência e carinho olhar suspirando um desejo polaco
e chorando um gozo com a inocência de um anjo
Deixo o afago que cingia meu peito entre as chuvas douradas dos seus cabelos
e onde ficaram retidas as canções ciciando as descobertas
dos sentidos que em fogueiras se faziam arder no corpo alvo
como uma gatinha ronronando meu nome pra ser saudade

Para Cida deixo este olhar esquecido na janela de um abril
a espiar pela frincha por onde seus olhos partiram sem volta
Deixo os mistérios que pode haver numa vida
e a vida mesmo acontecendo: mistério?
Deixo, na sua vida ausente,
nas suas tardes hoje tão sós,
as canções e os cantos gregorianos para alegrar sua alma,
para mitigar o choro amiudado dos seus dias
Deixo uma lágrima suspensa que ainda não aprendi em qual pedaço da nossa história eu devo guardar
Olho para você
o que sobrou de você
pergunto: por onde andará sua alma?
Caminhará campos floridos?
Pedras agudas e doridas? 
Por onde andam suas tristezas?
Não choram nem riem
A vida carregando seu silêncio inconsciente
inexcedível se supera
Quando te libertarás, amiga minha, desta prisão surreal?
Lá fora, nos quintais, as borboletas já deixaram os seus casulos
indiferentes ao medo,
ao espanto da vida vista de perto
A vida a ser cumprida mesmo quando escondida nos seus olhinhos anímicos,
brisa soprando no bambuzal a dizer:
Senhor, tende piedade de nós!

Para Cláudia deixo os poemas de amor inacabados
Deixo a lágrima posta na face da memória
Deixo a semente e a possibilidade da flor
Deixo na flor as quatro estações dissolvendo-se nos orvalhos azuis de uma manhã de sol moreno
e nos braços abertos de Iracema a evanescência do abraço

Para Maria deixo cinco pétalas da flor que trazia nossas noites
Uma janela aberta
Um quarto em penumbra
A inexistência das horas nos nossos braços
Maria, eu nunca te disse, mas eu gozei naquela noite de lentos murmúrios
enquanto sussurravas teu amor de mulher com uma voz de criança
Maria, deixo para você, meus dedos percorrendo o teu corpo
teu cheiro de terra úmida,
teu travo de perdição,
teu gosto de mistério e segredo

Deixo, comovido, para meu pai
esta sensação de desamparo que está no âmago da minha vida
Deixo os erros do caminho por onde nós passamos,
um tão longe do outro
Deixo as pegadas prisioneiras na estrada deserta e árida por onde não andou o amor
Deixo o esquecimento do drama e a evocação do meu olhar triste qua ainda hoje vejos nos espelhos dolorosos e nestes gestos de barro a anotar, indiferentes, tudo que não fui
a minha palavra retraída
o choro escorrendo pela terra no meu rosto
Deixo para o meu pai o meu perdão

Para o Gera deixo a canção solitária da flauta transversal
O vento cheio de solidão
Solidão, tarde no cais
Solidão que me escuta
Solidão dos dedos brincando com as notas musicais

Deixo para minha mãe esta saudade sem entendimento
Esta pergunta dos meus onze anos: de onde vem tanta dor?
Mãe, meu riso nunca está onde estou
e a dor, porta da noite deserta, abre-se quando os dias chegam amedrontando
Deixo pra você, mãe, meu coração
aquele mesmo que eu tinha quando inundou em você o sonho infrangível da morte
Deixo meu coração de onze anos que um dia se calará
O sol da tarde confunde-se com os telhados das casas em Americanópolis
A rua era Maria como você, minha mãe
O choro é como um cativeiro que o tempo incongruente traz em seus ritos,
mãe
Pra senhora, minha mãe,
deixo meu amor, 
só meu amor...
                    [que nada mais tenho de meu. 

Não plantei árvore,
não escrevi livro
Deixo minha inquietude no enigma que é um filho

Deixo para o meu filho
uma rua de terra onde ele possa se trajar de barro e poeira
onde a bolinha de gude escorra ágil e certeira
e a pipa voe no céu
por entre nuvens que não se explica como é que já nascem poesia
uma rua que seja Maria
Deixo os céus verdes- azuis do Perí
Deixo ao meu filhos um lugar que não é meu
a estrela que não é minha e que apareceu bem em frente da minha janela,
deve ter sido o vento que trouxe,
e que trazida por ali ficou pipilando seus ares de madrugada
Deixo um navio no porto
no porto eu deixo um mar e uma vida por começar
Deixo uma mão que é a minha
pra quando ele escorregar
Deixo o desespero e a esperança
junto a um sonho
Deixo a nostalgia de agosto
e a fúria dos anos diante da existência
Deixo as poesias escondidas nas paisagens
vermelhas dos outonos
nas flores dormentes do inverno
no bulício da primavera
na inocente infância do verão
Deixo um beijo carinhoso
Um abraço terno e companheiro
Deixo o meu amor
e este jardim sem mourões e sem pecados de afeto
                                                                          [e emoção

Deixo a todos estas cantigas inatas das aragens dos dias
que enfeitam as janelas e os batentes das portas das casas
onde em criança brincávamos e inventávamos a vida
Deixo a flor orvalhada pelas lágrimas de uma manhã que chora
a despedida de alguém
Deixo, por fim, este carinho incomensurável e misterioso que cantarola
o que eu, atrevidamente, chamei de poesia.

Imagem: Joan Miró

terça-feira, 17 de abril de 2012

Elegia das palavras

Não é a palavra gasta
que nos mortifica
Não é a palavra cansada
e dúbia
que nos mantém cativos 
a manchar-nos os olhos
a nos tapar os ouvidos
com o azinhavre da indiferença
que se esgueira pela noite escura da hipocrisia
É o gesto obtuso
que atravessa o asco
e se condensa dentro do peito
como um grito invisível
irrompendo do pretencioso abismo
onde tudo é orgulho e presunção
De dentro do silêncio implausíveil
da mezquinhez
em meio ao espúrio átimo de tempo
flutua a tua mão em direção à minha
e agora,
neste momento onde as tardes e as noites,
com suas hastes de ecos gritando ao vento
balançam nesta brisa morna
do outono infensa a qualquer digressão,
vive o momento humano
o vento no espelho
a face sem nome
onde me reconheço em você
e mesmo sendo seus olhos o princípio do verso
a poesia não acontece,
mas guarda um silêncio
que mora na mão
que a outra espera
fragmento do medo
não do escuro,
mas do degredo
do segredo
de que tudo termina
na eternidade
que gira e soluça
criando e consumindo os dias
à revelia dos nossos nãos
Sei que num destes dias
haverá alguém que ouvirá
o silêncio que ainda trago
assimilado às noites
onde o poema se cala
em intangível melodia
e lentamente se afaga
nas minhas mãos de menino
que tecem versos e mentiras
para suportar o mundo
que freme nas frestas do tempo
a gotejar iniquidades
pelos séculos
dentro das estrelas de anil
castiçais azuis
na noite movediça e muda
envelhecida
como a luz e a água
e o sol poente
regressando inermes
à madrugada
sem alma

Imagem: Joan Miró

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Uma criança morre

Neste momento uma criança morre
sem alarido
como prova de sua morte
somente o choro de uma mãe
A manhã grita azuis em meus ouvidos
Ouço poemas
que berram em mim
palavras que ficam como uma mancha
Meus olhos não vêem a criança
morta
O mundo é vasto em seu fosso de densa luz
e morre-se de tudo nesta manhã de abril
onde o sol roça os telhados cheirando à maresia
e vive-se por nada
fingi-se que se vive
A fome,
a miséria,
o fim entrando inadivertidamente na vida,
as perguntas sem respostas,
nas bocas,
nos becos,
por onde passaram minuciosamente seus passos,
por onde pulsaram suas veias
em meio ao pó,
ocre lama,
nas tempestades de março,
em meio aos enganos da vida,
porejando lágrimas sobre os despojos da criança morta,
o delírio que se move em meio ao pus
Nunca mais lhe espancarão
Nunca mais o gosto amargo da bile na boca
Nem um lampejo sequer da dor que que só calava com o sono
na rede
este gemido queixoso
este soluço fingido oculto sob pálpebras 
e punhais
nunca mais lhe espancarão
nunca mais
É mistério como de um segundo para outro a gente muda de mundo
Ligando uma vida na outra?
Assim,
na vida parca
dos seus tão poucos anos
transpondo-se por entre estampidos
por entre gestos e medos
da vida fúria lá fora
da vida zunindo aqui dentro
também se morre
de trizteza,
de miséria,
de inaniçao,
de esgotamento
deste jeito bom de criança
que os anjos do céu também têm
nesta alegria infindável,
que apesar da dor,
via-se inteira no teu sorriso
de pipa no céu,
de bola no gol,
de pião na roda
de bola de gude matadeira
Agora o beijo de Sirlene acabou
A tua voz se fez poema
a dar piruetas no branco do papel
longe de mim e de todos
que pintaremos de azul o teu céu
e a tua poesia de pedra,
cacos de vida
e de tristeza
que já não tem serventia

Imagem: Salvador Dalí

domingo, 15 de abril de 2012

O circo

Ficou no campinho de terra dos anos 60/70 o circo
entre risos de uma alegria macia que enchia a vida do bairro
e que fluia no ar pelos remendos da lona esgarçada
Ficou nos longos pés do palhaço Pururuca
a jogar no público, assustado, baldes de confete
a expectativa de um banho de água que acabava em confetes
Como um gesto tão simples podia nos sacudir de tanto rir?
Ficou na face fascinante dos leões e seus rugidos
que nos prendiam às tábuas da arquibancada
o esquecimento das feras que habitavam a vasta pobreza
O domador e seu chicote de estalo que fazia qualquer bicho obedecer
o que dizer de mim
cada estalo eu me encolhia como se fosse em mim
aquele leão bem que podia ter se rebelado
para apagar de mim aquele sobressalto ao estalo do chicote
na escuridão entalada dentro de mim
estilhaçando o relâmpago nos meus olhos
Olhos girando junto com as motos no globo da morte
A voz, um fiozinho branco no coração apertado
em cada volta das motos
que se cruzam
e se perpassam
tão rentes
tão próximas
que a custo mantemo-nos nas arquibancadas
e ai de quem piscar os olhos
pode perder a manobra mais radical da tarde
pode perder a oportunidade de ajuntar no abismo do desconforto
o som da tarde rarefeito nos rumores dos motores
enquanto uma vida se faz aqui dentro divergente da que se faz lá fora
sob os lares fortuitos onde se debruçam as crianças nas esquinas do medo 
Restam as arquibancadas dançando ao som da pouca bandinha
A respiração presa no vôo dos trapezistas
A tarde quente roubada à sensualidade das pernas das bailarinas
Moleque não presta
Moleque não pode ver pernas de mulheres nestes anos 60/70
E no final do espetáculo tinha as lutas de telecatch
Os Reis do Ringue
A molecada toda delirava com os golpes dos lutadores
O bem, o tempo todo, à mercê do mal
mas no fim, sob os olhos atentos dos leões e nossos,
o bem triunfava
A aquibancada delirava naqueles anos 60/70

Ficou no país do ame-o ou deixe-o um gosto de sangue
de membros quebrados a estocadas
Ficou nos caminhos manchados de pólvora onde gravitavam
fuzís e feras trajadas de ternos
qual varejeiras verde-oliva
Ficaram os porões escuros onde a vida se derramava junto com a água suja das latrinas
Nos anos 60/70 lutava o bem contra o mal sem se saber quem era quem
Lutava-se em nome da pobreza e da agonia
e os mortos daí resultantes não foram lembrados num fantasmagórico mistério surreal
E a pobreza e a agonia, deitada em berço esplêndido, sonhava com futebol, carnaval e bunda de fora e cachaça
Não tinha tempo nem jeito para identificar e cinjir o brutal sono dos justos
Tudo um grande silêncio mantido sob as solas dos coturnos
um grito sufocado no capítulo da novela
Nos anos 60/70 vivíamos o nosso Gulag que mastigava e engolia pessoas inteiras sem deixar nenhum vestígio
Mas por que me comovo com estas histórias?
Tinha-se futebol o ano inteiro
Carnavais e mulatas que eu nunca namorei
A cachaça estava quase de graça
Por que sofrer se as manhãs e as tardes e as noites ordinárias traziam o aroma da brisa
e os cadáveres não deixavam nem cheiro?
Houve uma tristeza em 66 que só quando me afasto do espelho percebo
enquanto a arquibanda de miseráveis delirava naqueles anos 60/70
Ficaram nos anos 60/70 o meu sorriso de menino e a dor lacinante do facho aceso da ignorância nos recônditos da minha casa onde a tarde roxa se dissolvia na minha saliva e nas minhas lágrimas
porque eu chorei quando o chicote estalou em mim
e se esvaía lá no fundo a minha vontade de viver
Ficou em meu coração de 60/70 a dor que eu nunca soube dizer
a dor que eu nunca pude entender
e que ficou zoando dentro de mim
tonitruando nos meus dias e nas minhas noites
pulsando em fome
delirando em poemas que eu não sabia
adormecendo na história do Patinho Feio
primeiro livro
que incendiou minha mente e deixou esta sensação de eu ser outro
e nunca mais eu fui o mesmo
e nunca mais eu me achei
nem nunca mais me deixaram dormir
agora cochilo sobre os joelhos
e ainda choro a outra metade da dor

sábado, 14 de abril de 2012

Girassóis

A tarde chove sobre os telhados
trazida pelos ventos que arrastam
nuvens pra debaixo das telhas
manchadas pelos rios
debruçadas sobre a vida
escondendo constelações
que se amontoam
nas platibandas
no céu tingido de cinza
onde estrelas viajam a milhares de quilômetros por hora
expandindo o Universo
no mesmo instante em que uma criança morre
diante da minha indiferença
como um sonho que se acabou
como um aprendizado
sob a chuva passando por aqui
neste exato momento
apagando nos caminhos que andei
o som e o cheiro da poeira dos meus passos
tanto caminhei em direção ao mar
e mergulhei nas suas águas o amplo dissentir
que traçou tão fundo a minha vida
tantas mortes
tantas vidas
vividas diante dos espelhos
onde se calam os meus silêncios
e as vozes do que fui
a imagem no espelho não sou eu
nada diz dos momentos irrrefletidos
dos meus tormentos noturnos
nada diz dos ecos irrefletidos da minha alma
que ressoam na tarde
ressoam no tempo nu
em meio a um campo de flores
e gavetas repletas de imgens desbotadas
que molham o sol onde me vejo
em cada aurora canora
em que a flauta mói o rumor dos pássaros
vestindo a árvore de negro e marulhos
na eternidade que a manhã vaza em dourados
bibelôs de vento e bruma
e se acaso
na chuva da manhã o sol se apagasse
dentro da sua própria vertigem
dentro do labirinto de ferro das nuvens
negando a sua própria existência?
e se acaso
no tardar lento do dia a criança morresse
pelas ruas da sua vida pequena
de desamor
de abandono
um cão sem dono
sem palavras que a definam
o seu (des)gosto (asco?) pela vida
sem afeto?

Definham minhas palavras que nada dizem
diante de tanta dor
Minhas palavras almoçam e jantam
Minhas palavras riem com meus lábios
a matraquear em meio ao espanto da solidão
enquanto a criança morre
despida de vida
nas ruas a sua prisão
lenta
nos bueiros e vãos
da cidade de merda
ratos
baratas
e esta pústula a lhe cobrir o corpo
é o que lhe coube

No fim de tarde tendendo a dourados e vermelhos
olho da minha sacada
do alto dos meus oito andares
onde moro
e pressinto: a vida é uma roda morrente e inelutável!!!

Só sinto falta de girassóis para chorarem comigo

Imagem: Bernadette Triki

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Aonde eu estaria

Acordo,
Penso em você
Penso aonde eu estaria
neste dia e nesta hora
se meus braços não tivessem
enlaçado a tua cintura e os teus gestos?
Aonde eu estaria se meus olhos ainda soluçassem
a tua ausência e o teu silêncio
e a minha boca passasse as estações
sorvendo o mel que era a tua primavera?

Ainda é abril na clausura das rosas
nos regatos consumidos pela nudez das tardes
pela solitude dos ventos
Ainda é segredos na inexorabilidade do outono
que se desdobra sob o céu cinzento
aonde inexprimiveis pássaros cantam bacarolas
e a vida se esquece cheia de encanto
Ainda é demora a palavra que te conhece
e que ainda arde em minha pele quando a brisa passa
vermelha e cobre e diz teu nome junto à minha janela

Penso...
Aonde eu estaria
neste dia e nesta hora
se o amor é vasto e louco
e basta apenas um pouco
destas àguas afogadas no esquecimento
como um rio engolido pelo mar
para eu lembrar do teu rosto nos poemas que leio
na poesia oculta (longe)
num tempo de pássaros e flores
nas manhãs ondulando ao vento nos beirais dos dias

Aonde eu estaria
neste dia e nesta hora
barco sem vela
mares demorados
areias ancoradas ao destino
olhos cansados
as mãos presas ao passado
que envelhece interminavelmente

Não me procures
esquece-me dentro dos espelhos
na praia anoitecida
no silêncio
despido de perguntas
ocultanto sílabas
cortando o ar
não me digas adeus
não te despeças
não me diga seus motivos
que a palavra pode ser dura
a palavra magoa e fere
e lenitivos não têm a menor valia

Esquece-me
que escolhi morrer com os versos
numa madrugada
alastrada de ternura
verde-água...
poesia

Imagem: Georges Barbier

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Maria

Há poesia no instante oculto
por este outono de abril
ameno
sob os ventos coloridos
das tardes ermitãs
há os pássaros que cantam
os finais de tarde que
entram pelas portas e
janelas
e já não se pode apagar
o horizonte traçado a giz
incendiado em vermelho
onde caem sóis atrás dos montes
incriados
dos seios dóceis da terra
enquanto o azeviche da noite
envolve o desamparo do dia
e brinca com o teu nome,
Maria
das tantas noites de estrelas
dos teus passos esquecidos
nos ruídos da noite
e entram pela minha janela
oferecendo teu corpo
que escorre pela minha cama,
Maria
por entre a febre do meio das tuas pernas
despindo meus quinze anos
despindo tua calcinha vermelha
teu perfume de rosas
tua boca mastigando as palavras
antes de dizê-las para o quarto
morrendo do teu gosto
teu corpo a me perguntar se gozei,
Maria
pergunta, Maria...
diz, Maria...
novamente
os indecifráveis nomes
do meu corpo no teu corpo
que o tempo passou sem teus olhos,
sem teus abraços,
sem nossos lençóis,
o tempo passou, Maria,
fazendo de tudo um passado
guardado em velhas gavetas,
inacabado em tanto amor
que quando lembro de ti, Maria,
já não te chamo pelo nome,
te chamo de minha flor
Maria,
a vida era tão pura entre os teus seios,
origamis de seda e de tule
carícias de beijos
que o tempo tornou lembrança
que o tempo passou,
Maria,
e trouxe tuas coxas,
trouxe teus lábios,
trouxe teus braços
trouxe teus olhos negros
teus negros cabelos
negros, negros, negros
como as nossas noites
feitas de sonhos girando
nos teus beijos de mulher
desejos roubados
de uma vida qualquer
faces no espelho
mentiras,
te perdi novamente...
...

No fim de tudo este silêncio
cansaço
palavras que o murmúrio escondeu
paixão nos poucos anos que eu tinha
Maria,
quando lembro de ti
no fim de tudo
eu sinto um carinho imenso
ficou as flores que nunca te dei
apressado que eu estava
para me arvorar um passado
onde eu pudesse viver minha nostalgia,
Maria.
Agora são 23 horas e 38 anos depois
Cada dia passou como o seu tom de saudade
às vezes tão lentos
às vezes com pressa
conforme seja gelo
ou seja fogo
o meu coração
que ainda é teu,
Maria
Tudo tão imperfeito
a vida afastou você de mim,
mas não te tirou dos meus sonhos,
do meu peito
inocência
amor guardado em canduras
vento soprando brisas em teus cabelos
brumas encobrindo a ausência
berço noturno,
cama,
linho,
Maria,
teu perfume é o temo de espera
nas madrugadas sem ti
do teu corpo fiz as margens
deste rio que volteava o teu mar
onde pus a navegar os meus bracos
como criança diante do encanto das águas
e como se desconfiasse que partias,
tu ias
Mar/ia.
E o meu medo
e o rumor dos teus passos
emudeceram a noite em um silêncio,
sílaba por sílaba,
insustentável
como a palavra angustiada
que eu tentei te dizer
mas que ficou só pra mim
olhando pela janela evasiva
que te trazia pra mim
Maria,
pra que rimar um amor tão antigo
se já não há mais janelas
e o passado dispensa salamaleques?
Maria,
tô indo embora
em meio a madrugada...

Eu menti,
Maria,
eu menti...

Imagem: Marta Wiley

domingo, 8 de abril de 2012

Sob a noite

O olhar encantado
sonhando estrelas
dentro das noites
beslicando a vida
que bem longe demora
é assim que uns dias vêm
e outros vão embora
tudo que vem depois
entre um escuro
e uma aurora
são imagens que daqui de dentro
são as pressagas das daí de fora
Os finais de tarde
naquela rua Maria eram
o colo onde Deus dormia
e dos seus sonhos
bebia-se a água da sede
de vida e de poesia
deste fim de tarde
pousado neste fim de dia
onde os girassóis,
sufocados pela noite,
esbatem as cores das horas
deste sol primevo
das flores deste regaço de abril
Onde deixei minha infância?
Onde deixei os meus passos?
E a lama...
Onde deixei?
E a lama dos meus passos?
Meus passos de menino,
um sonho de Deus
O sonho de um final de tarde
com seu vermelho hermeneuta,
sua palavra sem excedentes
Brilha no olhar do homem
a primeira estrelinha
Brilha sobre a miséria do homem
a estrela que sai do hálito azul da tarde
e pulsa confundindo o coração do homem
Sob a noite,
o olhar encantado,
o homem sonha estrelas
sem saber que a estrela já brilhou
fora da Caverna de Platão,
onde alheio à vida só se vive de ilusão
Já brilhou e brilhará
para reis e generais,
proxenetas,
miseráveis,
banqueiros e
prostitutas
Brilha, levemente, no fundo da taça
onde bebemos, felizes,
a cicuta nossa de cada dia
Brilha a estrela na noite dos
teus esplendentes olhos negros
reverberando no arfar do mundo
a alegria das flores abertas
Agora,
enquanto a constelação,
pássaro azul,
faz-se em poesia
ronda a tua sombra quente,
o teu corpo nu,
nus os teus olhos negros,
a tua fome nua,
Maria

Imagem: Julius Bissier