A rua de terra também está dentro do espelho
no qual me olho
É a mesma rua que apascentava o meu destino
nas manhãs de amargo frio
de um tempo no qual as palavras
se evolavam ao vento
e ditavam aos raios de sol pouca coisa
ou quase nada
É a mesma rua que me olha
de dentro deste espelho bardo
embaçado pela garoa
nas manhãs onde a névoa ria-se de mim
menino que fui
e que chorei sem motivo
o que senti ser amor
na mansuetude orvalhada do mundo
que alvorecia na docilidade rubra do pôr do sol
e no encantamento das flores no jardim
no fim de tarde
Cravos,
rosas,
marias sem vergonha,
antúrios
a enfeitarem meu mundo dentro do espelho
a sussurrarem silêncios aos meus lábios,
a dizerem loas aos meus ouvidos,
a mostrarem-me a poesia por toda parte
Outro quintal,
outro jardim,
outro dia,
outra vida...
quem sabe outros versos,
que molhem meus olhos,
não os meus olhos de agora,
mas os meus olhos da infância
quando a tarde falava da Natureza
e eu, debruçado na janela,
olhava para o jardim
e para a sua simplicidade pueril
quando o eterno era o hierático mistério
que habita em mim,
habita a flor
e a pedra
que faz o castelo do rei
e apascenta os seus rebanhos de vento
e que estalam quando o murmúrio é saudade
E há nos castelos a noite esbatida pelo luar
há gretas onde vive a fria escuridão da ilusão
feito bolhas de sabão
que a minha alma se reconhece na sua
imponderabilidade
há, nos castelos, tanta dor
e tanto ódio
e tanto medo
nos olhos e nas mãos dos homens
Há a imagem da lua nas águas todas desta ilha
e da rua dentro do espelho
que se desmancham sob a névoa lacrimosa
da aurora que por mim chora todos os dias
o que fui
Lá fora as estaçoes se sucedem,
traçam os gestos que as palavras terão
ao dizer meu sentimento que é da mesma matéria
da qual meus sentidos fazem o mar
e as ondas
e a lembrança nítida de alguém
que passou há muito por aqui
Abro a janela
Sinto o cheiro suave da chuva que caiu de madrugada
fazendo do rio o seu silêncio
Murmuro teu nome às flores acordadas pela manhã
que suavemente vai delindo os sonhos
enquanto o vento passa trazendo consigo
o verde novo da primavera
entre os dias e seu devir
Pela janela a luz bruxuleia
como esta vida que arde dentro do espelho
e acende a rua da minha infância
e não sofro mais ou menos
pelas coisas terem sido como foram
ou como são
A rua da minha infância,
tal como a sinto,
só existe em mim
e a imagem dentro do espelho pulsa,
sem nome
que é assim que as coisas existem
No espelho baço olho para o ontem e o amanhã
O ontem me trouxe até aqui
onde este dia chuvoso e cinzento
entristece o meu medo
e erro por pensamentos e caminhos
pelos quais já passei
e que a luz do sol,
quando voltar a brilhar,
acenderá os círios nos finais de tarde
que antecedem as noites,
negação do dia
O amanhã construo agora,
neste momento
O amanhã não existe sem a minha interferência,
enlaço meu ato ao destino
que me entrega a vida dividida em quatro estaçoes,
sensações de uma realidade primeva
onde não cabe meu sonho e o sonho que tenho de mim
Amanhã não estarei mais aqui...
A noite tocará de leve os meus olhos...
A luz lassa apagará a imagem no espelho
Não é a minha morte o fim de tudo que existe
Antes de mim o Universo já se exprimia
e depois de mim se exprimirá independente
dos espelhos que interroguei
A noite tocará de leve os meus olhos
e a minha Alma, serena, recordará o que fui
enquanto o humano era usurpado de mim,
enquanto a voz do menino esquecia-se
na rua de terra
dentro do espelho no qual me olho
sem reparar na leveza do momento e do tempo
que fazem os olhos dentro do espelho
contemplarem a incerteza de existir
como um som que canta ao longe
e não se tem certeza de que o ouvimos
ou se é o murmúrio oculto no vento que passa
e dá vida e voz ao bosque
e dá vida e voz ao amor
e aos lírios que incendeiam os campos supernos
e tecem saudades com o branco regato do amanhã
cheio de eternidade
onde paira a névoa dourada de cada manhã
impulsionando o lento e imarcescível
carpir das horas
E de dentro do espelho sairão as canções
da infância recortando o passado
e a primavera que chegou
junto com as reminiscências de um inexorável destino
e o cheiro eterno da terra e da relva úmida
da chuva que caiu,
trazendo o pranto para a flor,
a alegria para o rio,
a sensação de ritmo para a vida,
o orvalho para a folha suave e só,
Só, sem ser abandonada
só, assim como o passar do vento
e a imagem no espelho haurida
não reflete a vida, mas, sim,
o que os meus olhos vêem
e o meu intelecto nomina
sufocando com a solidão das palavras
o encanto que nos espera ao mirarmos
a imagem intrigante no espelho refletida
A rua da minha infância está dentro do espelho
assim como a minha vida
e os momentos em que tudo dentro de mim
se dissolve
e a Alma chora esquecida
vagando entre as sombras de um mundo
antigo e difuso
Um mundo impalpável...
como o matraquear desmedido da mente
onde a vida implora, anônima,
o perdão que o Destino possa lhe conceder
em meio à dúvida que vive em mim
Imagem: Luna Lee Ray
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