domingo, 30 de novembro de 2014

Espiral

Não tenho tantas certezas
Tão pouco tantas verdades
Não tenho dogmas
ou doutrinas
que não possa tremer de encanto,
espanto e medo
diante da inexorabilidade da morte,
diante da imponderabilidade da vida
Por onde é que se começa a destrinchar e mastigar a vida?
Em que ponto do banquete se começa a deglutir a morte?
nesta festa de canibais embriagados e ególatras
onde brincamos de deuses descrentes, padecentes, quem sabe?
A morte fusionando a vida,
consumindo a vida irresoluta,
atada a um fio de esperança
e um novelo de solidão
E ninguém vê
Todo mundo quer ir por céu,
mas ninguém quer morrer
Só o outro morre,
por que a vida é mesquinha, assim
Me diga onde é que é vida?
Onde é que é morte?
Quem é que sabe o segredo, a mentira destes mundos?
Quem sabe se tem outra vez
entre tantos nunca mais?
Destino sem denotação alguma
Quando menos se espera a morte bate à porta
e se não abrimos, ela, com intimidade,
pega a chave embaixo do capacho
antes que possa
cumprir a jornada dos dias úteis (útil pra quem patrão?)
bater ponto o mês inteiro
confundir-se ao dinheiro e à ganância ingente
descolar um amor descolado
pra depois do expediente
quando a noite já cansada
adormece para o amanhã
Amanhã...
Um dia pra ser feliz
Lá adiante
Bem pra frente
Quanto tempo ainda
para que a sombra se deite sobre a luz
e os ponteiros do tempo
sirvam de cravos a nos pregarem na cruz

Me comovo
Guardo o milagre
nos lagos cintilantes onde o sol flutuou,
ígneo alcobaça cobrindo as águas com o brasil do fim de tarde
deslindando a alma encarcerada
na parábola e no  mistério,
mestre e discípula
a alma suscita lembranças
da flor antes mesmo da flor ser flor
da última expiração
precedendo a primeira inspiração
vida e morte
noite e dia
luz e sombra
yin e yang
acendendo e apagando mundos
Tem vidas (e cada vida é um mundo)
que duram milionésimos de um segundo
e também são pra toda vida
como toda vida é pra toda vida
Cientistas,
misturando teorias e pitacos a bilhões de dólares,
hão de encucar,
ruminar e deitar farolices
para quem quiser ler ou ouvir
sandices desatando nós
Hão de arguir, quando o sol esfriar,
quem somos,
donde viemos,
pra onde vamos,
gênese e apocalipse da vida
A vida, sem explicação, é para toda a vida
até que uma nova estrela, já morta, nos deixe ver sua luz
transformando em energia o que era agônica consumação
num cosmos de bilhões de anos

Fecho os olhos e aspiro o perfume da flor
adubada a estrume
A vida, por um momento, se explica,
faz sentido
quieta e sem luz
como um útero primordial
pulsando a noite que desprendeu o dia

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Cinco anos


A PRIMEIRA VEZ DA IDADE
 
A vez
que tive mais idade
foi aos cinco anos.
 
Meu pai,
com solenidade que eu desconhecia,
perante seus superiores hierárquicos,
apontou e disse:
 
- Este é meu filho
 
E deu-me a mão
coroando-me rei.
 
Mia Couto.
In idades cidades divindades. Editorial Caminho, 2013.
 
 
 
Brincam os dias
dos meus cinco anos
respiram na rua de terra
caminham irisados pelos ventos do deserto
que se estendia em minha volta
fizesse o que fizesse
por mais águas que lhe desse
enchia-se mais de desertos
o meu deserto sem nome e sem amor
 
Choram os dias
dos meus cinco anos
de medo,
de angústia,
de dor
a pedra atirada
contra as paredes do mundo
as ranhuras da linha na mão
um pequeno punhado de barro
um graveto
para quem tem fome de sonho é pão
 
Correm os dias
dos meus cinco anos
tão bela é a bola e o mar
e o aroma do sol
empapa meu corpo
iludido e solitário
correm os dias,
estes enormes dromedários,
a manar estes momentos de ternura
 
Cinco anos...
a alma estilhaçada
a infância sorve a chuva na tarde tímida
que caminha para a noite a passos largos
nas bordas do mundo vai sangrando o ruído escuro
da violenta figura com o golpe irrompendo da mão
a tua figura se desfazendo como um grito reverberando
no vazio da tua inexaurível truculência
empilhar as dores
engolir o soluço
sufocar
nos meus olhos cinco anos de melancolia
e desamparo
na minha (des)ilusão,
sem rumo,
na neblina dos meus cinco anos,
no silêncio das noites longas e inquisidoras
onde a emoção preenchia todos os escuros
da noite esquecida do sono
na noite onde inventava outras vidas
eu só queria te amar

A garatuja do tempo gritava outro dia
chovia a chuvarada e a beleza das águas
fazia da manhã as praias da minha infância  
depois da chuva punha barquinhos de papel
rumo a um mundo que só havia dentro de mim
ouvia o som puro da água e dos torrões de terra
que a chuva deixava cair
junto com a minha solidão
invisível como a sede e a recordação da água

Cinco anos suplicando,
esperando a tua atenção e o teu afeto
eu era apenas um menino que cantava baixinho
e inventava histórias para dormir que só a noite escutava,
histórias de animaizinhos solitários e com medo
onde no final o amor se revelava e enchia a noite
e os animaizinhos da noite de aconchego
e o sono vinha como uma saudade
que ia se desfiando e doendo aos pouquinhos
eu era apenas um menino que ouvia segredos
que ondeavam na formosura das tardes
onde o vento flertava com os cravos no canteiro
e sonhava mistérios
nas noites onde as palavras tinham alma
e onde a alma dizia coisas
despedindo-se da madrugada
coisas que ouvidas em silêncio, terna e atentamente,
bem que podia ser poesia
 
Cinco anos...
nunca me destes a mão
a não ser para me fazer morrer com a outra
ou para o opróbio da benção sem nenhum amor,
sem admiração,
sem respeito
apenas espanto
medo
e humilhação
oscilando as fadigas da raiva e da dor
a alma sufocada e oprimida
soluçava na angústia de se expressar
doíam-me os ossos, a pele, a alma
mas o que mais me doía
era não poder te amar

 

domingo, 23 de novembro de 2014

O que carrego nas mãos


"E escondo
recantos tão escuros
que nenhuma manhã visitará"
 
Mia Couto.
In Tradutor de Chuvas. Caminho SA, 2013.
 
 
 
 
O que carrego nas mãos
se não estes escuros
esta sombra da qual me visto
esta noite da qual me sonho
esta distância na qual me morro
este tempo ao qual me vendo?
 
Desde quando tudo demorando em ser firmamento?
A tarde passando assentada
e tudo demorando em ser caminhos de areia
que vão dar num mar sem tamanho,
como uma incomensurável lágrima azul
o dia restando lacônico
o sol pespontando a existência do rio
e vermelho-amarelando  as águas que, dissolutas,
bebem estrelas,
desfocam a lua
e o mundo hesita quando o vento passa já sem grades
e o ar quebrado estremece querendo chover

O que carrego nas mãos
se não estes escuros
esta sombra da qual me dispo
esta noite da qual me pássaro
esta distância na qual me voo
este tempo no qual me extingo?

sábado, 22 de novembro de 2014

Atentai para os olhos dos que choram sem saber


PARTO E PRANTO
 
Soube o que era chorar
quando Amélia,
no funeral do irmão,
em lágrimas se desabotoou.
 
Rosto desprotegido,
mãos em desmaio,
aquele pranto fazia inexistir
as tristezas todas do mundo.
 
Não era compaixão
o que no peito me doía.
 
Invejava nela a fraqueza,
a coragem desse desamparo.
 
Não invejes, meu filho, disse minha mãe
Chorar assim, só uma santa.
 
Aquelas lágrimas
eram para Deus: não havia chão para as receber.
 
No regresso a casa,
a minha mão estremeceu, indefesa,
sobre o ombro de Amélia.
 
E como era extenso o ombro de Amélia.
 
Meu trêmulo dedo
a lágrima enxugou.
 
Ela me olhou,
com modos de ausência.
 
A sua voz era uma brisa
no dizer da surpresa: chorei, eu?
 
A tristeza mais triste
é dos que nem sabem que choram.
 
Mia Couto.
In Tradutor de chuvas. Caminho SA, 2013.
 
 
 
 
Atentai para os olhos e a face dos que choram sem saber
Deixai as lágrimas se desdizerem em sonhos e mensagens
que a chuva miúda lhes recordava
e lhes desenhava, a lhes escorrer pelo rosto,
revelações e arabescos
e o gosto todo do sonho e da brisa que sopra à noite
e que a um canto o canto reviva
e enlace a solidão oculta nos olhos obliterados pelas lágrimas
que a vida é estes grãos de incertezas
estes poemas calungas,
é este sonho antigo e sem fim,
este instante onde a sapiência incognoscível se manifesta
e se esvai antes da semente cair na alma
e morre como a luz há de morrer num derradeiro poente,
esta dor cor de cereja,
escorrendo incontinenti por entre os dedos
sem que se atente minimamente para as perguntas
ou para o silêncio e a ternura engastados nas respostas
 
Lamentai, em silêncio os olhos e a face dos que choram sem saber
Deixai as lágrimas se desdizerem em silenciosos soluços
e que do soluço faça-se a brevidade do tempo ingente
posto que seus olhos se fecham
e vão por caminhos sempre tristes
conduzidos pelo medo e a dor maior que dói e aflige
para além do ignoto momento
em que suas lágrimas deixam o sal
nas costas das suas mãos entre suspiros e mentiras
e seus lábios, sem perderem o encanto,
tartamudeando a palavra que não sabe,
deixam em meu ombro
o adocicado do borrão do seu batom

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Eu nunca te disse

TRADUTOR DE CHUVAS
 
Um lenço branco
apaga o céu.
 
A fala da asa
vai traduzindo chuvas:
não há adeus
no idioma das aves.
 
O mundo voa
e apenas o poeta
faz companhia ao chão.
 
Mia Couto
In Tradutor de Chuvas. Caminho SA, 2013.
 
 

Eu nunca te disse
do momento que continha todo o tempo do mundo
e dentro da quimera do mundo o poeta
que ainda se sobressalta diante das palavras
que tombam nas folhas de papel como o fruto maduro tomba no chão
como tomba o silêncio no vácuo
silêncio que só subsiste fora do poeta
eis que em seu peito viceja a angústia onírica da imanente solidão humana
e o instante atemporal sem princípio nem fim
o poeta busca nos signos a Verdade que una a palavra ao ato
e junto ao poeta e a Verdade que o poeta busca
e ao pranto que chora as trevas obliterando a visão
a página inelutável e indelével do Destino
indizivelmente imarcescível
demoradamente silenciosa
descomedidamente incoercível
onde habitam
o tempo impregnado de designíos
os imperceptíveis liames do  medo
a sombra e a luz
onde adormecem sobre o mar branco
os ventos que andam na brisa fulva
e traz a dádiva ou a sina
conforme leiam a página a mente ou a alma
Eu nunca te disse
do  momento intenso da madura manhã
que se levanta no horizonte
onde repousam os astros
depois dos passos antigos e escuros da noite
palimpsesto que se raspa e não se apaga
e se mantém
e se acumula
no Livro sempre inconcluso e indecifrável a que chamamos Vida

domingo, 16 de novembro de 2014

De que me servem as palavras?


De que me servem as palavras
se vão partir para morrerem solitárias
e esquecidas logo ali adiante?

Com quantas palavras me espanto
ao saber que o robô pousou no cometa
e captou a sua voz antiga falando a fala dos poetas?

Do que eu já disse quanto despiu-se ao teu coração?

Quanta palavra mata a fome de um estória?

A palavra me conta desde que eu era menino
e o mundo morava onde eu morava
e o mundo acabava onde eu acabava
e cabia, com idioma e brasão, dentro do meu sonho

A palavra é margem ou é rio?
A palavra faz em mim calor e frio
Faz a insônia nas noites
Desfaz a insânia crassa e anacrônica da vida

A palavra começa antes da boca e da mão
e é inacabada e infatigável como a solidão

A palavra começa
antes da luz regressar à retina
e escrever em meio a lençóis, afagos e abraços
o nome da negra noite
nos olhos negros da menina

De que me servem as palavras quando,
solitárias e esquecidas, morrem,
ali mais adiante,
menino e amor?

sábado, 15 de novembro de 2014

Muros

Derrubaram "o" muro
com golpes de picareta,
histeria,
discursos propondo o "novo"
com cheiro de velharia
Derrubaram "o" muro após 28 anos de delírio e isolamento
"Caiu o muro" (dizem)
O homem,
este ser separatista e segregacionista,
é que parece nunca cair (em si)
E, "terminada" a guerra-fira
requenta o que sobrou
da nefasta hipocrisia
da sinistra tirania
da funesta vilania
da sopitável apatia
Requenta, em suas estranhas entranhas,
a mentira de uma pátria
a agonia dos jogos de poder
a piromania das guerras

"Caiu o muro" (é assim que falam)
Porém, antes que se dobre a esquina (murada, por sinal)
os homens, amnésicos, erguerão outros muros
tijolo a tijolo,
pedra a pedra
sobre a caliça do muro derreado sobe outro muro
engendrado em belos discursos
ambíguas intenções
 caiados de empedernida diplomacia e circunlóquios
e pleonasmos
muito bem articulados, no entanto
Muros separando a gram(n)a verde do próspero quintal
da miséria estiolada e purulenta que escorre pelos esgotos
que daqui não se enxergam, mas que, quando sopram os ventos,
sente-se o cheiro das cloacas e das pessoas abjetas do lado de lá

Agora escoram de todas as formas o muro que ameaça se esboroar
e de onde do outro lado escorre, das secreções humanas e da estupidez milenar, o ebola
que se enrola e se embola na baba viscosa e corriqueira da morte

Rebentam outros muros onde antes cresciam violetas e eldeweiss
Há rumores de que os muros da pobreza e da fome,
arquitetados com indiferença e descaso,
segregam, em suas mansardas, 790 milhões de pessoas,
enquanto 1/3 do alimento produzido no mundo vira lixo,
salvo erro ou salvo engano do homo sapiens sapiens,
1,3 bilhões de toneladas de comida são jogadas no lixo por ano

E os muros vão se somando às pedras do que caiu
Nas cidades os muros se sucedem tragando e calando os dias,
acoitando a escuridão,
caminhando com as sombras e os perfumes das meninas que logo chegarão
com seus sapatos despudorados,
vestidas de perfume barato,
sussurrando amores qual pura pucelas,
chegam e recostam-se aos muros negaceando suas preciosas bucetas cheirando à urina
Os muros apagaram o sol
e as paisagens dormiram,
os cães, do outro lado do muro, ladram para os pederastas e proxenetas
que contabilizam as trepadas e a mais-valia das bucetas cheirando à urinas das meninas

Somos 7 bilhões de habitantes no planeta
Sete bilhões de homos sapiens sapiens (homem sábio,
                                                               é assim que, pretensiosamente
                                                               nos denominamos)
persignando-se insontes diante dos muros,
Uns por desconhecimento, outros por malícia e astúcia,
enquanto Philae, o robô, pousa no cometa 67P/churyumov-Gerasikenko,
após uma viagem de 10 anos, 6 bilhões de quilômetros percorridos,
ao custo de 1 bilhão de dólares,
a espreitar segredos primevos que nos revelarão o pó e a pedra, a poeira e o gás
Os cientistas, no centro de controle (murado), vibraram com a façanha como se tivessem servido
um prato de comida a quem tem fome,
ou como se tivessem feito pousar em pleno deserto um copo d'agua para o viajante sedento
Aonde nos levará tanta ciência?

Há outros, ainda, que por tédio
aborrecimento
fastio
intransigência
egoísmo
mesquinhez
medo de sentir medo
erguem seus muros em volta das casas,
dos quintais,
dos rios para que não cheguem ao mar e libertem as terras roídas às margens
da brisa para que não desate no ar o lirismo inteiro da poesia
de tanta manhã e de tantas tarde inefáveis
da folhagem que o vento levaria
dos sonhos que se poderia sonhar
dos conceitos nos quais se poderia pensar
da voz do povo para que não se possa escutá-la
do ateísmo
do fanatismo em nome da fé
Erguem muros
sobre a palavra
que poderia nos resgatar
Erguem muros de sevícia e ódio
de ciência e dor
aprimorando e açulando a Bomba que, um belo dia,
servirá o cogumelo
em nossas mesas de jantar

sábado, 8 de novembro de 2014

Estranhamente diferente


Buscando palavras pro texto no dicionário me deparei com esta: "Insociável"
Definição: incapaz de aceitar as normas sociais e inclinado a procurar alguma ocupação ilegal"
(Dicionário eletrônico Houaiss)

Insociável sempre fui,
Só não sabia que era tão grave.
Agora entendo porque comecei a escrever.
Aderi à escrita como a minha ocupação  ilegal,
dada a minha ojeriza social.

Então, vamos escrevinhar.
Mas, sobre o que?
Reviro baús,
armários,
segredos,
arquivos,
o abrigo da memória,
quintais de um passado,
indeléveis no silêncio da gota absoluta da alma,
dissipando a sensação de efemeridade com a qual a vida arde,
onde encontro:

1 par de botas de sete léguas
1 traje completo da roupa nova do rei
1 farda de soldadinho de chumbo
1 chapéu de três bicos
2 tranças de Rapunzel
2 entradas para a festa no céu
3 casinhas, 1 de palha, 1 de madeira e 1 de tijolo
1 alcatéia de lobos vorazes, astutos e maus
1 par de olhos ausentes da cinderela dormente
1 tribo de vovozinhas,
1 legião de príncipes adâmicos
1 castelo onde a princesa dorme, padece, desfalece, enquanto espera o príncipe adâmico
1 falange de heróis na tv, nas brincadeiras, nos livros
1 chusma de vilões na vida, na realidade, na similitude dos livros
1 patinho feio a nadar num lago/espelho da vida
1 ovo de ouro (da galinha dos ovos de ouro)
1 DVD acústico da cigarra
1 noite de inverno com a formiga e sopa quente
1 Rosa
2 dedos de prosa
2 réis de mel coado
1 tostão furado
1 minutinho de eternidade
1 cantilena de outroras
1 inelutável saudade
1 latifúndio de nãos
1 torrãozinho de sins
1 trisco de mar
3 fardos de neblina
mancheias e mancheias de sonhos
1 punhado de alegria
1 amigo acenando de muito, muito longe
1 bocadinho do centro de uma noite escura onde o céu se apagou
                                                            e adormeceu, simplesmente
2 maços grandes de suavidade
1 frasco oloroso de ternura pueril
1/2 dúzia de nuvens, das mais branquinhas e insontes
1 pote de luz furta-cor
1 cálice de vento tinto
1 pizza primeira luz da manhã, 1/2 aurora, 1/2 madrugada
1 pitada de "insights" surrealistas
1 medo de um medo ruim
1 medo de ter medo de ter medo de mim
3 colheres de chá de baba de sono/lento
1 fatia pequena de passividade
1 carrada de razão
1 pote inteiro de desencantos
1 taça de ingenuidade
1 mão esperando as migalhas
1 gole amargo de desamparo
1 beiral pro cata-vento
1 bolota de gude
1 pião batatinha
5 figurinhas, 2 repetidas, 1 carimbada
1 sombra 3x4 com data
2 frascos amarelos de silêncios multicores
1 relógio cuco para deleite da gente miúda
3 tramelas
2 portões
1/2 face sociável
1/2 face intragável
1 potinho de beijinhos de esquimó
1 herbário de ausências doridas
1 queixo caído
1 penca de nostalgia
1 talagada daquela que matou Sócrates
1 saco sem fundo de humildade
1/2 xícara de chá de lágrimas
1 tarde escrita à mão
1 apagador de sol
1 acendedor de noite
1 fim de tarde caindo dentro do mar
1 vento soprando de mansinho o organdi e o linho azul da inefável liberdade
1 lua pra namorar
1 país de índios, escroques e escravos
1 marca d'alma
12 grosas de paciência
1 foco de luz bruxuleante deixando entrever a verdade
1/2 dúzia de palavras usadas, mas em ótimo estado
1/6 de mentiras
1 nome escrito na beirada da folha do caderno, entre setas, corações e flores
1 mundo paralelo onde a morte é solução
1 côdea de solidão

e esta sensação de que tudo poderia ser estranhamente diferente...
                                                                                     mas, não é

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Não quero tribos, nem seitas

Não quero a perversidade das tribos
a algaravia das tribos tangidas de cá para lá
de lá para cá
acorrentadas à esperança inerte e sonsa
e intuí que a mixórdia e a hipocrisia moram lá dentro,
na casa grande/mansão e na senzala/favela
como um diabo habita os infernos de trevas nebulosas
e por vezes me transcende e me ilude,
astuto e velhaco como cabe ser a um bom diabo

Não quero a impostura das tribos
Nem a mendicância dos fragmentos do tempo
Não quero catar a semi luz da lua nova que esquecestes
na escuridão refratada nas noites de vidro opaco e denso
A minha bandeira e o meu emblema
são estas letras/palavras/verbos raspados a garatujados livros,
são esta tentativa anímica de me entender poesia
são estas melancolias vertidas nestes signos azuis
onde a cor não está na cor,
está no feixe de fótons sobre as células
e no movimento dos átomos
delineando frequências de ondas
que interpreto como a cor das letras do poema,
que misturo na paleta retórica do trivium
e subverto os oximoros os quais me expressam
et toute les formes de solitude
onde os dialetos se misturam
(Parlez-vous français?) e tudo e nada dizem

Não quero a inclemência das tribos
Meu clã sou eu
e esta solidão de pedra, pó e caliça,
e este exílio de mim mesmo,
e a minha humanidade,
em tudo que ela tem de bom e de ruim,
incorrigível no que tenho de pior,
impenitente e tacanho
menosprezado no que me resta de meu:
algumas palavras roubadas e um discurso sandeu

Não, não quero tribos, nem seitas
Apascento-me na solidão
entre a sozinhez da ilha ingente e insana que sou
e a vastidão do mar antigo e vermelho,
aos olhos de um sol,
esfera perfeita e intransigentemente vermelha
num fim de tarde de outubro
sob o cosmos e seu todo o tempo do mundo
e solto como estrelas a adernar
na longa viagem do inicio dos tempos,
das nebulosas às super novas
navegando num céu difuso,
até o momento em que eu, você e o cosmos
sejamos "simplesmente" poeira de estrelas
tal qual um sol geofágico que
um dia nos engolirá antes de morrer

Não quero a tristeza das tribos
Queimei as minhas aldeias
Minha tribo é meu medo obscuro
de ser esmagado pelas vaidades,
pelas veleidades indômitas
e pela insuportável "realidade" que palpita,
neste deserto perene sem o lenitivo das estações
onde as areias caminham
pelos caminhos das aragens
e por onde os olhos vermelhos das tardes
acompanham  o serpear ligeiro da serpente
sobre o extenso leito de areia calcinada

Não quero a vida cediça qualquer que seja a tribo
Não quero a semiologia e a subserviência das tropas em marcha
Não pertenço ao latifúndio canhestro
e derruído de um mundo rendido aos proxenetas,
nem à noite consternada
com o canto do pássaro no escuro rútilo da madrugada
replena de sons e pulsares e tambores estelares
embalando o mundo inteiro
e a flor interrompida
pela neblina plangente do inverno cinza e seus sufocantes gemidos

Não quero nenhuma tribo soturna
nenhum clã, nenhuma nação
Não quero a cegueira noturna,
a cegueira in/condicional,
a cegueira escuridão pondo fim às cores do dia,
pondo fim aos dias que vinham do mar
Minha tribo sou eu
e este silêncio agônico e interregno,
desatento
onde versos se esboroam
e em grãos são levados pelos ventos,
grafados em palimpsestos
e me devoram a razão
na aporia dos sonhos
ensimesmando meu coração
anátema que fui, que sou, que serei
sem um céu surreal como ilusão

sábado, 1 de novembro de 2014

As guerras e as gentes do mundo de cá e de lá


 
Li no jornal:

A luta contra o Estado Islâmico custa em média 8,3 milhões de dólares por dia



Vi na tv e no site dos Médicos Sem Fronteira - MSF:

Com R$ 30,00 ao mês (R$ 1,00 por dia) cuida-se de 2 crianças desnutridas com menos de 5 anos de idades

Com R$ 60,00 ao mês (R$ 2,00 por dia) 1 pessoa vivendo com HIV/AIDS recebe tratamento que prolonga a vida

Com R$ 84,00 ao mês (R$ 2,80 por dia) 252 pessoas com cólera podem ser tratadas a cada mês

Com R$ 120,00 ao mês (R$ 4,00 por dia) 1.980 pessoas podem ser vacinadas em um ano contra meningite

Com R$ 320,00 ao mês (R$ 10,60 por dia) 74 feridos em área de conflitos podem receber antibióticos para infecções a cada mês.


Nos ventos escatológicos vêm a lâmina calcinada da fúria,
a mão pesada da sanha,
a mão de ferro da ira,
os dedos cheirando à pólvora
Senhor, as guerras se espargem em borrifos rubros de sangue seco
Senhor, as guerras são tantas e várias
e tontas espreitam morituris mortuis
Mata-se desde sempre
em nome de um deus,
em nome do engodo de uma liberdade (ensandecida e beligerante)
Sob a estultice de uma ideia
Para defender uma causa nobre(?)
Retalho da pobreza e da dor que a chuva de ogivas recrudescerá
Mata-se com honras de herói nas guerras
frias, quentes ou mornas
Nas guerras santas ou satanizadas
Guerra dos seis dias
Guerras dos cem anos
púnicas, medicas,
guerras, guerras, guerras...

A guerra é a ausência da palavra
e seus contrários
é a ausência de uma alma que sinta a essencialidade da luta interna
e de uma mente que pense, discurso e peroração
é a sombra por trás do homem
e sua mentira dulcificada pelo delírio narcisista do ego
e pelo desespero tácito e a ânsia por novas seitas, gurus e novos deuses

Na vida envelhecida e insone,
agônica e agonizante
quantos morrem na paz carcomida pela fome e pela miséria?
Outra guerra esta dos pobres esquálidos e imundos
que insistem em dividir sua sujeira e seu depaupério com o mundo
Estranha vida esta onde o homo dito sapiens não se comove,
não se inquieta, diante do desdém e da avareza verminativa
com que constrói sub-repticiamente seus castelos sobre abismos e indiferenças

Agora, além da primavera e seus sofismas,
é madrugada
A vida dorme
A natureza urdi o encanto, as cores e o perfume das flores que se abrirão com o dia
O homem...
maquina o seu próximo crime
a próxima invasão
o próximo ataque
o próximo alvo
envolto pela bandeira nacional
A morte, assim, faz menos mal?
Morrer pela mão do tédio alheio é tão fácil,
tão triste
tão surreal
Morrer, assim, é tão banal

DOAÇÕES PARA O MSF: www.msf.org.br
                    ou pelo telefone: 0800 941 0808