TRADUTOR DE CHUVAS
Um lenço branco
apaga o céu.
A fala da asa
vai traduzindo chuvas:
não há adeus
no idioma das aves.
O mundo voa
e apenas o poeta
faz companhia ao chão.
Mia Couto
In Tradutor de Chuvas. Caminho SA, 2013.
Eu nunca te dissedo momento que continha todo o tempo do mundo
e dentro da quimera do mundo o poeta
que ainda se sobressalta diante das palavras
que tombam nas folhas de papel como o fruto maduro tomba no chão
como tomba o silêncio no vácuo
silêncio que só subsiste fora do poeta
eis que em seu peito viceja a angústia onírica da imanente solidão humana
e o instante atemporal sem princípio nem fim
o poeta busca nos signos a Verdade que una a palavra ao ato
e junto ao poeta e a Verdade que o poeta busca
e ao pranto que chora as trevas obliterando a visão
a página inelutável e indelével do Destino
indizivelmente imarcescível
demoradamente silenciosa
descomedidamente incoercível
onde habitam
o tempo impregnado de designíos
os imperceptíveis liames do medo
a sombra e a luz
onde adormecem sobre o mar branco
os ventos que andam na brisa fulva
e traz a dádiva ou a sina
conforme leiam a página a mente ou a alma
Eu nunca te disse
do momento intenso da madura manhã
que se levanta no horizonte
onde repousam os astros
depois dos passos antigos e escuros da noite
palimpsesto que se raspa e não se apaga
e se mantém
e se acumula
no Livro sempre inconcluso e indecifrável a que chamamos Vida
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