quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Fragmentos

Gazel fluviante
 
Enquanto dormes, fico a contar
as cores do teu rosto, o fluvial
corpo levíssimo no sono, chilreando
as pernas verdejantes, fogo,fogo
que vai plantando o inverno. Enquanto
dormes, fico a discorrer as falas
da tua imóvel boca. Cabisbaixos
os pés apenas tocam, os lençóis,
e a alma toda, um corpo, somos nós.
 
Carlos Nejar.
In Poesia reunida II, jovem eternidade.
Novo Século, 2009.

 
 
Enquanto dormes dedilho as cordas do teu sonho
ressoando junto ao que em mim falta de ti,
junto à espera e às mãos em silêncio
cúmplices anônimas das florações
que dão cores ao dia,
dão perfume à flor que brota nos jardins desta vida compassada
e voz ao canto alegre das crianças
Dão ao dia vislumbres de eternidade
e recriam a aurora consoante a face de ébano da madrugada,
e a ternura imanente ao gesto intangível 
que transforma o teu nome
na ilusão indelével e ausente que ficou
meigamente enternecida no pouco que sei de mim
Foi tanto medo
e um inverno de cores densas
O amor que suplicava à noite que não se fosse
e suavemente sentia o sopro da brisa da manhã bruxuleando a luz das estrelas
Teu nome que a brisa sussurrava entre as acácias e os instantes tímidos do dia
E que os meus lábios espreitavam
sem se atreverem a dize-lo
posto que tudo foi fantasia
Fantasia o que não teve fim,
fantasia o que sempre foi noite
resvalando das inconsúteis lembranças que se derramaram de jarros antigos, 
entre verdades e mentiras
e tantos véus turvando a visão e esboroando sonhos
 
Amanhece, e as boninas ousam ser
mais amarelas e vermelhas
do que o sol que se alça de chama em chama
aos teus suspiros, somente 
A noite desperta cansada de ser escura, e se esconde,
enquanto a luz da manhã flutua
inocente em teus cabelos
e brinca travessa com a eternidade fugaz da manhã azul,
efêmera e diáfana
Bela, quando ao passar lá fora faz caminhar as sombras
e girar os girassóis

Amanhece,
e o dia vai deslindando-se pouco a pouquinho
Intemente, rabisca o crepúsculo
sangrando o sol,
avermelhando o mar,
rolando os seixos,
suspirando alcovas,
arrastando folhas magoadas pelo ar,
enquanto o orvalho soluça deslizando nas folhas geladas e quietas
e a vida espera em silêncio um linimento para o "nonsense" da existência,

O poeta, com sua alma ébria e antiga,
escreve verdades e mentiras e cata cacos e fragmentos de solidão,
pespega estórias banais
e se reconhece
nas merencórias e mal traçadas linhas
de extraviadas e esquecidas cartas de amor,
naquilo que o amor, redivivo, chamou de sonho,
naquilo que a vida, diletantemente, chamou de dor

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