Já gastamos as palavras pelas ruas, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
gastamos tudo menos o silêncio.
Gastamos os olhos com o sal das lágrimas,
gastamos as mãos à força de as apertarmos,
gastamos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro
nada
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao
outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha pra te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes
verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um
aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastamos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade.
In Poesia.
Rosto Editora - Modo de ler, 2011.
Houve um tempo no qual
Houve um tempo no qual
o sol abria e encerrava o dia sem palavras,
lírico e imarcescível
gestos insontes
Houve um tempo no qual
o amor fazia-se audível entre os silêncios
das tardes que ardiam em rubras cores
face e máscara, luz e sombra
dando contornos à noite
Houve um tempo no qual
o céu jungido ao mar
era o começo do céu na terra
era o começo do mar no ar
Houve um tempo no qual
a poesia lia os meus dias
e escrevia, escrevia, escrevia,
nas pedras que sustentam
e que separam
as terras e os mares do mundo
Houve um tempo no qual
a canção era o silêncio
e o sentimento dedilhava as tessituras
do amor indiscernível
como alegoria em meu corpo
Hoje as palavras estão gastas
restaram, teimosamente, alguns versos por fazer
restaram muitas perguntas e vicissitudes
que a cisma da noite traz,
alheia às sombras que já dormiam
Hoje o dia amanhece com o seu tanto de assombro
os pássaros cantam promessas
o dia é folha em branco que estremece à brisa
e o passado é como um lago
onde vejo a circunstante aleivosia do mundo
mas não sei o que lhe vai no fundo
O passado, como forma verbal e temporal, passou
eu passei,
tu passastes,
ele (o passado) passou
passaram os textos e as cartas insondáveis
sonhos contidos nos textos e nas cartas também passaram
nós passamos,
vós passastes,
eles (os sonhos) passaram
O passado, passou
os pássaros, indiferentes às vilezas humanas,
gorjeiam como fazem a bilhões de amanheceres
fastos ou nefastos,
apascentando o meu presente (brinde, dádiva, mimo, oferenda, oferta)
transbordando de trinados o meu silêncio
e o meu destino
e escrevia, escrevia, escrevia,
nas pedras que sustentam
e que separam
as terras e os mares do mundo
Houve um tempo no qual
a canção era o silêncio
e o sentimento dedilhava as tessituras
do amor indiscernível
como alegoria em meu corpo
Hoje as palavras estão gastas
restaram, teimosamente, alguns versos por fazer
restaram muitas perguntas e vicissitudes
que a cisma da noite traz,
alheia às sombras que já dormiam
Hoje o dia amanhece com o seu tanto de assombro
os pássaros cantam promessas
o dia é folha em branco que estremece à brisa
e o passado é como um lago
onde vejo a circunstante aleivosia do mundo
mas não sei o que lhe vai no fundo
O passado, como forma verbal e temporal, passou
eu passei,
tu passastes,
ele (o passado) passou
passaram os textos e as cartas insondáveis
sonhos contidos nos textos e nas cartas também passaram
nós passamos,
vós passastes,
eles (os sonhos) passaram
O passado, passou
os pássaros, indiferentes às vilezas humanas,
gorjeiam como fazem a bilhões de amanheceres
fastos ou nefastos,
apascentando o meu presente (brinde, dádiva, mimo, oferenda, oferta)
transbordando de trinados o meu silêncio
e o meu destino
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