sábado, 31 de outubro de 2015

Noite sem nome


calo,
o grito entreaberto
o gesto apartado
o amor esparramado nas águas,
escorrendo nas pedras,
pisando a madrugada,
está sublimado em tudo,
em ti,
que os meus dedos possam tocar,
minha boca possa beijar,
que os meus olhos possam pensar
e desesperar pois é noite
e ainda és sonho

os dias condenados ao exílio

a noite asilada,
esbatida,
sonha
e não demora a chamar-me,
mas chama-me excluindo o amor

em algum canto de mim nossas mãos,
repousam entrelaçadas,
também dormem
o instante e o tempo ardem
o instante e o tempo tem o teu sabor
e o ardor
de antes de haver o tempo
antes da incerteza do instante
perpassando os momentos trêmulos
e silenciosamente indeléveis
na mansidão dos dias breves
e absortos

as canções feitas de enganos
vadiam em mim
ilhas desgarradas,
ausentes,
vésperas de mares,
ventos inacessíveis

alguns versos
são azuis
e não se calam
e é preciso que não se calem
para dizerem a ternura
e a delicadeza negra dos teus olhos
dentro da nossa noite sem nome

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

A solidão dos meus medos


a solidão dos meus medos
e das palavras que digo
onde me escondo
na madrugada antiquíssima
abrem-se  ao canto dos pássaros,
seguem os barcos
despertos pela luz da aurora

a manhã perfuma os fogos
acesos nas tuas noites
e ainda queimando a te procurar,
as tílias balouçando no tempo
são alento,
a luz diluída debruando a aurora,
emoldurada no vento,
sussurra e cicia
enredando um novo dia
e os dias inventam luzes
e claridades
inventam ilusão e alegria

os pássaros,
indiferentes aos relógios,
sem horas com as quais lutar,
cantam simplesmente por que nasce o dia
por que algo dentro de si os faz  cantar
e os faz cantar irrompida e desatada cantoria
e os pássaros inventam  cantos
eternos de melodia

a aurora
alta,
infinita
e primitiva
descerra escarlates
jardins sem nomes
aninham-se as lembranças que a noite trouxe
na manhã ainda embriagada de sono
as cores todas da melodia das luzes
pousadas na ponte
ainda escorregadia de sereno,
abstraída sobre o lago inerte
sarapintado pelas folhas que caem
antes que os olhos as sustentem
nos galhos que pendem
carecendo do silêncio
que não há,
nunca houve,
nunca haverá,
e a aurora inventa lagos
e a brisa sobre os lagos
e nos lagos águas trementes

a manhã sente e entende os ruídos
da claridade,
da terra afogueada
sente as centelhas do milagre
e não precisa sentir mais nada
para que o dia separe-se do escuro
encobrindo os passos rumorejados da madrugada
e a manhã invente os dias
e a inocência do azul no céu
como um milagre
que se espera
e se alcança
algo ou alguém
chorando inventa
a intrincada esperança

sábado, 10 de outubro de 2015

O homem que eu nunca consegui ser


vai caminhando,
cada vez mais para longe de mim,
o homem que eu nunca consegui ser,
os sonhos que adormeceram
no mundo das idéias
nas noites de vigília e sofreguidão,
incontáveis sonhos inanimados,
perpassando a imanência da alma
deixando na minudência dos dias
a desconfortável sensação
de olhar para mim,
olhar em volta,
e não me ver
e nunca ser
e ser o outro
e ser o mesmo sempre ser
em tanto tempo consumido
deixando a lágrima como forma
inominada e infinita das quimeras que grassam
sendo os dias claros e sem segredos
sendo as noites dos escuros mais profundos
dentro dos mais sustidos medos
dentro dos mais longínquos  mundos
que afloram em mim
pássaros voando ausências
e memórias do não ter sido
reminiscências de vidas que não vivi
partes de mim,
cisma e mistério
atravessando os segundos
sendo que os olhos que tenho
divergem e devoram as imagens que contemplam
são estes olhos que por vezes olham inertes
para o que ainda não tem nome
ou cujo o nome se perdeu
quando a primavera debandou os pássaros
ou os gestos intangíveis lhes consumiram
e, no entanto, ainda inunda a alma de comoção
e de estesia

o homem que nunca consegui ser
era muitos
o tempo passando era vário,
a solidão invisível,
indizível
e as lágrimas do homem que eu nunca consegui ser
eram muitas e prolongadas
e com o tempo vão secando no rosto
do menino medroso que sempre fui
maduras, convulsas, desesperadas


Imagem: Ramiro Ramirez Ramirez

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Miséria e fome


Senhor,
viestes nos procurar
a mim e a este cão que atende pelo nome de Fome
trouxestes alento para as nossas lágrimas
trouxestes o cântaro cheio da Tua Verdade
e da Tua comiseração

da latência das Tuas palavras
inventa-se a paciência e/ou o desespero
escorrem os momentos para o fim
e o fim é a catedral onde a neblina apagará os círios
que consomem os dias e as noites
inelutavelmente

o homem deglutindo a fome
o cão salivando a fome
a criança aprendendo a fome
subsistem por imposição da vida

crianças famintas arrostando a fome
crianças no lixão mimetizando-se com os urubus
crianças carcomidas pela estultice dos discursos vãos
crianças apedrejadas pelo egoísmo inaudito
crianças pedindo nos semáforos
crianças na prostituição

dizei, Oh! Senhores chefes das nações que sendo várias
deveriam ser uma
que almoçam e jantam e arrotam e jogam o sobejo fora
os campos semeados e as colheitas são insuficientes?
a semente, se mente e não vinga e se vinga e se morre?
a miséria é algo tão distante, insólito e obscuro
sem direito sequer a um osso para o cão, a um pão duro?

sentados diante da emoção incomensurável
da mansidão de uma aurora
molhada pelo sereno que o vento traz
e acordado pelo sussurro dos deuses,
olhando para o que acumulamos,
um dia pressentiremos (será?)
que morrer de fome, na lassidão da miséria
é a quinta-essência da indiferença
açodando os círios acesos para que se apaguem
mais celeremente todos os dias
sem atentar que tudo que É É eternidade

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Jardim de folhas secas


deito-me embaixo da árvore
e deixo-me ficar,
insonte,
criança,
olhos cerrados
entre as folhas e o tempo
entre os sonhos levitando lembranças
e os pensamentos que a luz e o calor do sol sugerem,
ilusões,
divagações,
o nada movendo-se,
esperando que os sonhos amadureçam
simples e comuns
doces como só acontece ao sonhos serem
sem palavras que os digam
percebendo o mundo pelos sons sutis
e pelas sensações que fazem da vida o Mistério
sem as certezas que os olhos impõem à alma
sem o tempo a mover-se na distância
entre os momentos

deixo-me ficar
criança
cego das muralhas do mundo
atento a mim
e ao que em minha alma arde do sol
ouvindo o sussurro
inundado do remanso do lago
e das águas amorosas fugindo das margens
molhando o azul
do céu que separa a vida verdadeira
do cárcere do tempo obsoleto
levando nuvens sossegadas,
lembrando a modulação de tantas vozes
do vento nadando nas folhas
marulhando o silêncio
de coisas encantadas
onde pássaros,
no final do dia,
vêm cantar e beber
o sumo dos sonhos escorrendo pelo meu peito
e espojarem-se na demora da poeira acesa
de tantas coisas intricadamente caladas
e breves
que caem e secam
nas sombras das árvores
no jardim de folhas secas

terça-feira, 6 de outubro de 2015

O passado todo está aqui


o passado todo está aqui,
neste momento,
o antigo desejo desperto
a flor que se abre
e que esteve sempre aberta
nas coisas visíveis e invisíveis
nos cheiros resvalando à melancolia
na desordem das estações
na neblina adormecida sobre os campos
adormecidos
na solidão eternizada
dos anacoretas
e as descobertas
e os segredos
dos seus solitários mundos
naquela dor olvidada
e que renasce e nos consome
na face tranquila das lágrimas

o passado está todo aqui
em cada escolha que faço
desmanchando o homem que sou
e seus ideais
e dos retalhos finais
refaço-me
percorro novos caminhos
tão antigos
pressentidos e antigos caminhos

ainda habita em mim o menino que fui
(que sou e sempre serei)
que sonha no passado
e fala no presente
dentro do futuro do homem que sou
e nos sonhos vislumbra o porquê
que me anulam
e lanham-me
e, lanhado, entro no mar
e banho-me longamente de água e sal
enquanto a vida vai dissipando-se ante o engano
dos percursos nos quais me enredo
e me dissolvo como a pedra se dissolve
lenta e inexoravelmente
deixando na vida esta poeira
onde os pássaros vêm banhar-se
nos finais de tarde
espojando-se na mansidão da escuridão
que se desce tépida e lentamente sobre a vida
que vai trespassando e escondendo o mundo
a mostrar-nos a meiguice da noite cálida
tão antiga
e tão presente nos pulsares e nos quasares
nos astros que não dormem jamais
e que vão dizendo a vida
aqui e agora
de todos os anos pra trás

Imagem: Claude Theberge

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Vem de onde?


Vem de onde
esta escuridão amara que sufoca
e pára as horas?
Este medo
dos medos que não tremem
e que não fogem?
Esta fera que me espreita
e assoma entre as imagens do espelho?
Este golpe seco, intermitente
que me atinge e que me acorda
em meio às purpúreas madrugadas?
Esta angústia
fatigante do passado que não se cala,
                                               e geme
                                         e desespera
nesta noite estendendo-se sobre os telhados
pisando as tristezas das ruas
apreendendo-se nas minhas mãos prisioneiras
destes gestos tão antigos,
esperando
os pássaros retornarem aos ninhos
e aos galhos sonolentos
desprendendo
sombras amarelas
sobre os olhos ondulantes dos lagos

Vem de onde
este canto
que se existiu,
já não existe?
Esta lua
oblíqua e negra derramada nestes ventos?
E a ausência inconcebível deste mar?
Vem da onde esta voz de sons tão cálidos
esta melodia de ilusão
que canta nesta noite
aprendendo a ser noite em teu olhar?

Vem de onde
esta ilusão em que vivo
neste inacabado
de mundos dentro de mundos?
Estes passos inseguros
caminhando as distâncias das quais falam os ventos
que me levam pelos céus manchados de travessia
onde o ar
encrespa as águas,
tilinta,
esquece e asfixia
onde a palavra primordial estremece
e se expande
como poente e moradia
da luz do sol depositada
na paisagem ao redor do fim do dia?

Imagem: Christian Schloe

sábado, 3 de outubro de 2015

O sonho irrompe


o sonho irrompe
nas madrugadas
trêmulas
de imagens tardias e leves
germina, anoitece
tateia lembranças,
esquece
o sonho derrama-se ou cai
e rescende
como fruto maduro e doce
o sonho
convulso ou brando
se desnuda
em outra clara realidade
e se move
trazendo
das ilhas
que se desprendem dos mares
calmas ou aflitas
a sombra do humano espelho
imagens que nunca vi
aonde o tempo ainda não chegou
e os caminhos circundando o mar
não guardam os passos das pedras
nem o amanhecer dos gritos
pendoados no ar

mas o mar,
há tanto tempo,
vai-se embora daqui
na penumbra infrangível
e encantada das tardes
levando o dia,
levando o dia,
até que a noite cresça
aprisionando a luz
até que a noite desça
pondo no céu
outra alegria,
outra alegria...

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Aonde?


aonde as flores
ainda olham,
lentíssimas,
quando caminhas
como a estrela da tarde
antes de chegar o luar
esquecida da noite
e pela noite esquecida?

aonde os frutos
desatam-se e caem
na memória da sombra das árvores
e deixam a primavera imóvel
e as tardes nas minhas mãos?

aonde as chuvas
partem sozinhas rumo aos rios
molhados pela solidão do sol poente?

aonde o dia
mistura-se ao esquecimento
e retorna à ausência onde
andam os caminhos sem memória
e os abandonos falam de saudades?

aonde tuas mãos
desarrumam as chuvas
e afagam as sombras
das palavras que ainda não te disse?

aonde teus pés
caminham sob o firmamento
e a mansuetude do dia demorando a nos dizer?

aonde teus olhos
encontram a noite,
passando lenta e sonora,
passando meiga e serena
semeando o mundo
com o sopro denso e escuro?

aonde os teus lábios
(e só os teus lábios podem)
dizer o que ainda sou?