quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

O ano "novo" será do jeito que a gente o fizer


um dia faz-se de um segundo
depois de outro segundo
fluindo...
enquanto a terra gira
sobre si mesma a uma velocidade de 1.666 Km/h

uma semana faz-se de um segundo
depois de outro segundo
que vão fazendo os dias
depois outro dia
sóis e noites manando no céu
antes mesmo de o tempo ser tempo

um mês faz-se de um segundo
depois de outro segundo
que vão fazendo os dias
depois outro dia
que vão fazendo as semanas
depois outra semana
depois...
luas sem nome demoram-se
em lunações
o tempo de serem fases

um ano faz-se de um segundo
e de outro segundo
que faz um dia
depois outro dia
originando as semanas
depois outra semana
advindo um mês
depois outro mês
depois...
o gosto da estações
calores
folhas secas e luz, muita luz
o vento frio olhando pela janela
cores flores perfumes
a vida chegando do ar
manando seres e sons
o que alegra e o que dói
girando ao redor do sol
a 107.000 quilômetros por hora
e a um milhão de quilômetros por hora
com relação ao centro da galáxia

a todo segundo a vida demanda escolhas e ações
                                                            (omissões?)

o ano não é novo nem velho
o ano que se diz novo é mera
continuação daquele que se diz velho
que, por sua vez, é a continuação
da continuação, da continuação,
de todos os anos passados desde o Éon Hadeano

o ano que se inicia está impregnado
de passado
e o vir a ser é uma semente
sensações para continuar a poesia
ou faze-la diferente
conforme a alma deslinda-se
enquanto a poesia se faz com  sonho
e as palavras que brotam da mesma terra
onde repousam a certeza da morte
e a impermanência da vida
entre a vida e a morte há sonhos sem nome
o sonho maior deveria ser o de ser gente
há tempos aguardamos o SER HUMANO,
entre mentiras e alaridos

o ano que se inicia não é novo em si
o ano que se inicia é promessa
o ano que se inicia é devir
que pode não se cumprir

um ano não se faz novo
nós nos fazemos novos
com um gesto novo
depois de outro gesto
de atitudes e escolhas
novas ousadas diferentes
do cantochão e do ramerrão
contidos nos velhos atos e discursos
da sede antes da água
do escuros antes da luz
do imponderável
do insaciável
do inesgotável
do enigma
de uma fome infinita
do sonho e da sombra
da semente antes da flor
da palavra se escondendo antes do verso
do esconso silêncio antes do amor

o ano,
esta discriminação humana,
quando ele for,
caminho ou escada
matéria frugal, gás ou vapor
segredo primordial
pergunta banal
será do jeito e da feição que nós o fizermos

FORÇA A TODOS PARA QUE POSSAMOS
SER SERES HUMANOS MELHORES 

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O caminho que anda sob os meus pés

 
O prólogo de Zaratustra

Aos trinta anos apartou-se Zaratustra da sua pátria e do lago da sua pátria, e foi-se até a montanha. Durante dez anos gozou por lá do seu espírito e da sua soledade sem se cansar. Variaram, porém, os seus sentimentos, e uma manhã, erguendo-se com a aurora, pôs-se em frente do sol e falou-lhe deste modo:

“Grande astro! Que seria da tua felicidade se te faltassem aqueles a quem iluminas? Faz dez anos que te abeiras da minha caverna, e, sem mim, sem a minha águia e a minha serpente, haver-te-ias cansado da tua luz e deste caminho".

Nós, porém, esperávamos-te todas as manhãs, tomávamos-te o supérfluo e bem dizíamos-te.

Pois bem: já estou tão enfastiado da minha sabedoria, como a abelha que acumulasse demasiado mel.

Necessito mãos que se estendam para mim.

Quisera dar e repartir até que os sábios tornassem a gozar da sua loucura e os pobres da sua riqueza.

Por isso devo descer às profundidades, como tu pela noite, astro exuberante de riqueza quando transpões o mar para levar a tua luz ao mundo inferior.

Eu devo descer, como tu, segundo dizem os homens a quem me quero dirigir.

Abençoa-me, pois, olho afável, que podes ver sem inveja até uma felicidade demasiado grande!

Abençoa a taça que quer transbordar, para que dela manem as douradas águas, levando a todos os lábios o reflexo da tua alegria!

Olha! Esta taça quer de novo esvaziar-se, e Zaratustra quer tornar a ser homem.

Assim principiou o caso de Zaratustra.


Friedrich Wilhelm Nietzsche.
In Assim falou Zaratustra.



Como Zaratustra ia eu no caminho e me perguntava: que caminho é este que eu tomei onde as sombras não dormem à espreita de que eu caia e elas me assaltem a alma. Que caminho é este onde o sol, por vezes, esplende e brilha tanto que incandesce e me ofusca o espírito. Não encontro ninguém que ouça e entenda a noite. Passaram-se tantos anos e os vales ainda guardavam a queda. Os bosques são de cinzas e o vento escorre por entre os troncos tisnados. Ardem. Por vezes não encontro água que beba. Por vezes não encontro sono que durma. Minha alma vagueia.

de quando em quando respiro
enquanto percorro e deslindo este caminho
que anda sob meus pés
tenho o hábito de, vez por outra, voltar o olhar para trás
assim como quem espera um possível companheiro
para juntos caminharmos pra longe da escuridão

tantos já percorreram este caminho que ora percorro
talvez não os encontre ali na frente
após uma das curvas do caminho
após o silêncio preso aos meus passos
talvez estejam alguns, ou mesmo todos, aqui comigo agora
se não de quem seriam estas vozes que clamam tanto em meu peito?
estas partes de mim que vêm recolher a minha noite?
enquanto aguardo o luar vestir-me de prata e âmbar

talvez, naqueles tempos de cada um
houvesse luas flutuando hesitantes
mais estrelas cheirando a rios de cor no céu pendoado
no dia também morasse o escuro
e as noites se incendiassem de tanto sol
talvez, alguns dias, a dor fosse tanta
e o caminho fosse a veia aberta e latejante
na têmpora de um mundo insone
que só dormisse no colo do amor incondicional

talvez os dias fossem fogueiras que a noite apagava
que à noite também houvesse um céu para os pássaros dormirem
e mares por onde só se andava de candeia na mão
talvez, naqueles tempos, na bifurcação da estrada,
flores brancas e negras brotassem
umas entremeadas das outras
flores atravessadas pelo vento e pelo silêncio da paisagem
flores se abrindo para os olhos de ontem

talvez um rio nadasse nas águas das chuvas cheias de solidão
a poesia estremecesse ao sair das minhas mãos
talvez a pedra já estivesse no caminho
e sentisse e pensasse e sonhasse
e adormecesse em soluços como o menino que fui
talvez houvesse, entre as pessoas, algumas de olhos azuis,
outras com olhos verdes, muitas de olhos castanhos e negros
e todas olhassem com o mesmo pasmo o firmamento

talvez o caminho seja esta noite inquieta e rumorosa
talvez, de tanto cruzar a solidão da grande ponte
e ouvir a voz dolente das águas soluçando
confrangidas pelas margens do rio
meus passos se esquecem a andar sozinhos e ligeiros
em direção à tempestade

talvez!

talvez o mundo fosse um mistério maior do que as suas ruínas
talvez a consciência ouvisse mais a alma e a criança que espera
talvez o que se disse e fizesse do mundo e do homem fizesse mais sentido

o abismo sempre esteve, sempre estará lá
fendendo o caminho
impuro
escuro
sorvedouro
sem margens
ou memória
de amor ou ódio

talvez eu encontre as chaves da minha cela nesta prisão
talvez não

meu coração se encanta
com a tessitura e o aroma das palavras
que amam os dias
se entregam às madrugadas
que recendem à poesias
e têm, na essência, o silêncio dos timbales
e dos olhos a lê-las

minha alma se espanta
esquece
para em seguida recordar
as noites ao meio dia
o vento varrendo os desertos
e as planícies
derrubando o perfume das folhas
num mundo onde o sol quando se apaga toca o chão
e cheio de chuva e rios e cheio de dor não demora a esfriar

domingo, 28 de dezembro de 2014

Os outros que há em mim


o que é que eu falo para estes outros que há em mim?
como mostrar a eles que as escolhas estão erradas,
que os caminhos escolhidos não andam nem levam a nada?
andam a tatear tristes mundos
lancinantes noites
dias profanos
cada um com seu atavio
cada um com sua algaravia
cada um exigindo precedência

"há vozes no meu quarto
que pedem mais do que posso sonhar"

diz Mia Couto
e assim me calo
e assim ouço a eternidade

a lua que vejo agora não é igual a da última vez
quando meus olhos choravam a minha ignorância
a flor que toco é lá na infância
onde borboletas voavam sem asas
e eu, ignorante, as tinha nas minhas mãos
ainda hoje tenho presa a minha alma por um cordão

o que é que eu falo para estes outros em mim?
que mentem
enganam
adulam
dizem que sou o que não quero ser
e não sou
e nunca são
se não desespero e dor
imploram carinho, atenção
se despem e se prostituem por qualquer meia dúzia de palavras vãs
de frívolos sorrisos

comem as migalhas que caem das mesas e das camas
regurgitam o destino

despertam e sonham o pecado
tonteiam-me
olham a tropeçar na infinita cegueira

que direi a estes outros?
para que acordem do sono
do sonho fútil que devora a vida
do engano
que veste de desejos o mundo
se quem sonha sonhos cativantes não deseja ser acordado

que dizer a eles?
que olham para não ver
que pouco ou nada dão a vida
mas, que tudo querem ter
duas palavras, salamaleques e um mimo
compram a submissão
ao escravizante prazer

que dizer?
que dizer?

aos meus outros viciados
arrivistas
prostitutos da existência

que dizer ao Divino que em mim habita
e que é o meu verdadeiro Eu?
que dizer para a vida que envelhece dentro do espelho?
que dizer para o rio onde minha sombra se banha?
para a ingenuidade extasiante da flor na janela?
como abrir as portas sem que o escuro não entre?
que dizer para o tempo que me espreita?
que dizer para a mulher que comigo se deita
para atendermos ao rogo da luxúria,
para preenchermos o vazio sem gesto,
o insuportável nada
e tentar elidir
e esquecer o medo?
poderia usar qualquer droga,
se tudo fosse tão pouco
poderia ficar louco
dissolver a Divindade no caos
rasgar a alma em pedaços
rasgar o mundo vidente
e os mundos duvidentes que desconheço
pôr para correr os demônios
correr, tropeçar, rastejar
cansado
na sede beber cicuta
chorar o infinito
depois inspirar fundo
enraizar o corpo na terra
fazer a eterna guerra
até deixar de existir
motivos para chorar

qual a palavra indizível,
alheia e tão semelhante a minha voz,
que possa iniciar o indispensável diálogo entre nós?

Tão longe é aqui

         

          Tão longe é aqui
(Título do filme de Eliza Capai)


lá fora os ventos são só silêncios
incessantes
amoráveis
a alma é ausência
o sentir é dormência
os olhos ainda não se acostumaram ao escuro
o mundo se olha cego
nada se vê do veludo negro da noite
estrelas viajam nos céus
encruzilhada de mim

chove

uma chuva vermelho-carmim
dentro dos pingos lembranças
de você
lembranças de mim

em um segundo a desatada distância
entre eu e você
entre você e você
entre eu e eu
entre eu e aquele que vejo e que me olha do espelho

entre eu e você há caminhos que saem daqui às 22:39 horas
pontualmente
todas as noites
caminhos que vão para o passado
regresso à sombra que não deixa nascer a manhã
assim como a estrela traz o passado na luz
que só agora se vê
beleza de milhões de anos atrás

tão longe o que sou
tenho que nascer outra vez
e outras (se preciso for)
para viver o amor
mas, eu não quero viver
o meu, o teu amor
a ilusão da carne
a escravidão da carne
eu quero viver o amor incondicional
eu quer aprender das lágrimas o gosto do sal

não há caminhos em mim
há chuvas convulsas
há pedras caídas do tempo
interpondo-se no caminho
que haveria, mas não há
há sonhos que se arreliam
há um menino chorando,
comendo a parede de barro
há poeira,
muita poeira
e grandes redemoinhos
quando tento voltar para casa
o vento joga poeira nos meus olhos
sozinhos
não consigo encontrar o caminho
erro
vivo das migalhas que caem no chão
tantas vezes
morri em busca do caminho
mas, caminho não há
tão longe é aqui

sábado, 27 de dezembro de 2014

Honey

 
A LINGUA LAMBE
 
A língua lambe as pétalas vermelhas
da rosa pluriaberta; a língua lavra
certo oculto botão, e vai tecendo
lépidas variações de leves ritmos.
 
E lambe, lambilonga, lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais ativa,
atinge o céu do céu, entre gemidos,
 
entre gritos, balidos e rugidos
de leões na floresta, enfurecidos.
 
Carlos Drummond de Andrade.
In O amor ao natural, pag. 49, Editora Record, 2011. 
 
 
 
honey, você tem que me dizer
se tá bom, se tá ruim
meu beijo, assim, em você
se você não fala nada
a mágica pode não acontecer
a poesia pode se esconder
e não vai ter varinha nem fada
que faça você flutuar
Minha menina pequena, se você não fala nada
eu posso errar os caminhos
eu posso me errar nos carinhos
mesmo querendo acertar
a minha língua procura
teu mel, honey, a tua doçura
busca onde mora em ti a eternidade
o tempo em suspensão
a suposição da morte
a indecência e a castidade
a imersão fremente na vida
toda a tua pele despida
tudo de propósito pra te encantar
E a chuva prenunciada
só o vento lépido e cálido pode trazer
Docinho, cicia, sussurra,
fala a linguagem das mãos,
me diz como quer
me diz se quer
que eu vá abaixando ou subindo,
mais lento ou mais rápido,
se é o beijo molhado
se é o lambe da língua
se é o roçar açodado dos meus lábios
nos lábios da tua flor
que faz você me molhar
honey, flor da açucena, o teu corpo fala,
mas fala palavra pequena
e eu posso me enganar
flor da açucena, amorzinho, tem dó de mim
tem pena
que enlouqueço, perco o juízo
no teu gosto álacre e conciso
na tua flor namorada
na tua flor ensopada
que eu bebo eu babo eu deslizo
honey, meu mel, minha abelha rainha,
quando eu te beijar,
minha boca na tua boquinha,
me prenda a cabeça com as coxas
me solte só quando gozar

Constatação


Existem três coisas que poderiam tornar o mundo um lugar melhor para os homens viverem:

- Tomar banho

- Fazer a barba

- Escovar os dentes

Sem estas três coisas o mundo seria positivamente bem diferente

Sem estas três coisas o mundo caminharia para a paz e o nirvana

Durmo sem corpo e sem alma


"Durmo sem corpo
como um cão
que, em si mesmo,
inventa um travesseiro"
 
Mia Couto.
In Versos do prisioneiro - Última carta do preso ao poeta.
idades cidades divindades. Editorial Caminho SA, 2013.
 
 
 
durmo sem corpo e sem alma
pois já não sei a alma que tenho
minha alma é multi e vária
minha alma quando ama fica à flor da pele
alguém em mim deita e rola contigo na alfombra,
te beija com beijos dissolutos
um outro alguém de mim mesmo é grito e agonia, transido de poesia
e que se apaixonou por você
a enésima pessoa entre bilhões deste planeta
girando a uma velocidade de 1.666 Km/h,
se apaixonou por você qual Eros por Psiquê
que não podia ver a face do marido
sob a condição de assim lhe perder
porém, Psiquê, certo dia,
o coração totalmente tomado pela curiosidade,
viu o rosto do marido
Eros, diante da promessa quebrada,
abandona Psiquê
sozinha e infeliz
Psiquê, depois de penar pela vida, entrega-se à morte
caindo em sono profundo
Eros ao vê-la tão triste e arrependida
implorou a Zeus misericórdia
e, com a concessão de Zeus,
despertou sua amada
e viveram felizes
pra sempre?
não sei
o pra sempre é muito tempo
mesmo na mitologia
o pra sempre não cabe entre dois braços
já um abraço pra sempre
pode me afagar eternamente
sempre que você fizer carinhos em mim
mesmo que ausente
o pra sempre é feito de cheiros no ar
do roçar de pele com pele
do balbucio carinhoso durante o amor
do grito de gozo
o pra sempre começa quando termina o fugaz
o pra sempre é o momento presente,
ali, para sempre tremente
o pra sempre pode ser de repente
mas nunca pode ser sem você
o pra sempre é o tempo que a alma leva para esquecer
o pra sempre é
onde vago entre a lua e o sol
tentando responder o enigma
buscando respostar em vísceras
para o segredo que o demiurgo me deu
 
preciso morrer todo dia
para afastar a tempestade
preciso afastar as nuvens e deixar o céu sempre azul
por que eu moro numa ilha
e quando chove eu fico, literalmente,
cercado de água por todos as lados
inclusive por cima
e eu não quero me afogar antes de 07 de junho de 2016
 
não tenho tribo, seita ou religião
meu corpo é dois
meu corpo é mais
meu corpo é soma após a divisão
 
por favor, não diga nada
não diga nada
 
convivendo com a minha alma,
debaixo do assoalho,
vive a metade que ama
vivem, anjos, potestades,
um anacoreta e as verdades
que a mentira me diz
vivem as mulheres que amo
e seus nomes escritos a giz
 
me entusiasmei a falar do corpo e da alma
e esqueci do cachorro-travesseiro
(figura esta que, diga-se de passagem, achei linda por demais)
às vezes me sinto cachorro-travesseiro
um cachorro que gostaria de escrever, de dentro do seu sono/sonho,
poemas positivos, ternos, amoráveis, otimistas
mas eu sou um cachorro que tem esta tristeza arrivista
tem tanta sombra no meu dia
tem estes mortos das minhas guerras
os esqueletos desta minha terra
pedindo missa e contrição
tem tanto espelho quebrado
e seus sete anos de azar
queria tanto que o "outro" apaixonado
também pudesse falar 
e, mais do que pudesse falar,
pudesse acontecer
lá fora o tempo passando
aqui dentro eu lhes amando
acho que sou um sonhador exilado dos meus próprios sentimentos
 
aqui estou eu de volta com o meu drama, minha elegia
vamos falar do cachorro que foi para isto que abrimos o parágrafo acima
agora é a vez da voz do cachorro
vamos cuidar bem do cachorro
vamos por o cachorro na cama arrumada
vamos ninar o cachorro
e sua canhestra e canina poesia
vamos respeitar sua raça (se é que tem uma)
eu duvido que tenha
se tivesse uma raça bem posta na vida
não seria de si o seu próprio travesseiro
este cachorro, me parece,
é daqueles que dormem em buracos que fez pelo quintal
que come os resto do almoço
que deglute tua morna carícia e o osso
que abana o rabo quando fulana chegar
(até ai morreu o Neves: abanar rabo todo cachorro abana)
queria ver era o rabo abanar o cachorro
isto, sim, é que seria bacana
este cachorro, como eu, em noites de lua cheia,
uiva e late para a lua
acordando o sono da rua
e uiva, uiva, uiva
até o coração se acalmar
depois procura um dos buracos existentes no quintal
enrola-se em travesseiro
não tendo conta em banco
não tendo nenhum dinheiro
não havendo cadelas no cio
que possam tirar-lhe o sono
apascenta-se com o cricrilar dos grilos
e dormita
não dorme
dormita
 
engraçado
mudei de assunto,
falei do cachorro,
mas ficou a sensação
de que  nunca deixei de falar de mim
 
fora da vida dita real e dura
só um anjo me segura,
sem delonga, sem firula
para que eu não saia latindo
e abanando o rabo
mijando em poste
implorando carinho (epa! isto eu já faço. acho que o anjo se distraiu)

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Esqueçam tudo que eu escrevi


Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
 
Fernando Pessoa



disse o ex-presidente
logo depois de ser eleito

"esqueçam tudo que eu escrevi"

sei que não preciso pedir isto a vocês
que me leem de vez em quando aqui
(aproveito para agradecer pela deferência)
posto que suponho que muitos
entre os inumeráveis seguidores do blog
tenham mais no que pensar do que na minha agonia
mas, entrem na brincadeira,
façam de conta que ainda lembram de alguma coisa que leram aqui
e que eu, tendo sido eleito presidente da República Anarquista
das Luas Antigas, pela vontade popular dos que aqui seguem meu blog,
peça-lhes, aos meus sete bravos seguidores, que de agora em diante
serão denominados cidadãos Lua Antiguenses, que esqueçam tudo o
que eu escrevi
não soa estranho?
o que aconteceu de lá pra cá?
mudei e troquei radicalmente de ideias?
que, dentro da esquizofrenia na qual vivo, não consigo mais me reconhecer
no que escrevi?
caí na real e me apercebi do papel ridículo que faço publicando meus
textos chinfrins?
coerência é uma palavra gasta
se é que chegam a usa-la e, principalmente, pratica-la
quem de nós, entre milhões, lembra do que disse à Maria?
nem vou perguntar o que disseram ao José

"esqueçam tudo que eu escrevi"!!!

o que eu escrevi não tem cheiro
o que eu escrevi não tem gosto
o que eu escrevi não tem rosto
o que eu escrevi devia ter sido jogado na latrina
regado com creolina
ensebado com vaselina
não exposto aos vossos olhos sensíveis e críticos
peço desculpas àqueles a quem incomodei com a minha vaidade sovina,
com minha prepotência suína
me perdoem, também, os porcos
usei suína só pra não perder a rima
e por não ocorrer nenhuma palavra melhor
eu lhes peço, eu lhes imploro, não
não esqueçam o que eu escrevi
ao contrário do presidente eu acredito nas minhas sandices
são elas que me dão sustentação e estofo
diria que me dão, pasmem, equilíbrio
é nelas que me lambuzo
é com elas que me deleito
é com elas com quem me deito
é com elas com quem me ajeito
é com elas com quem tomo jeito
em doses homeopáticas, alopáticas e psicopáticas
é com elas com quem me desapatizo
(esta eu inventei agora e significa sair da apatia)
são elas que tornam os meus dias inesperados, inigualáveis, incomuns
sempre novos, sempre uns, sempre "fun"
sou sandeu com carteira da ordem de classe e registro firmado em cartório,
lavrado em três vias de tarja preta
minha loucura é o que de melhor e mais produtivo
e mais criativo que eu tenho em mim
minha loucura, a bem da verdade, expressa-se em surtos e vertigens,
às vezes pressa, ás vezes demora, sem dia nem hora para ir embora
são coisas de quem é do 1º dia de virgem
minha loucura eu levo para passear quando tem sol
vejo e limpo as cacas que fez, dou banho, ponho talco,
alimento com uma mistura de apatia e opressão do dia-a-dia, ponho pra arrotar, antes de dormir
minha loucura é minha pílula dourada para não ficar louco aqui fora
minha loucura, quando surta, eu cuido, medico e tiro a febre de hora em hora

Coisas que pensei, vi, vivi, ouvi e morri

 
LAMENTOS DO TIO AFRÂNIO (2)
 
Tenho tanta saudade
de estar morto, disse Afrânio.
E pediu-me que o levasse para a janela.
 
Para eu saber que anoitece, explicou.
 
Não quero que a morte
tenha saudade de mim.

Mia Couto.
In idades cidades divindades, pag. 58, Editorial Caminho SA, 2013.
 
 
 
 
Nasci para o mundo
 
Tarde demais
 
Vou morrer
 
Nasci como nascem as manhãs
 
Vou morrer como morrem as estrelas
 
Trazido pelas mãos da aurora
 
Autofágico e engolfado  pela ventania
 
Ou pela mão atroz da sina
 
Hei! você, toma este punhal
 
Vai pro fundo da caverna
 
Livra-me de mim
 
Que a minha voz não se cale
 
Que o tempo me seja ameno

Me ensine

Dê a feição de um Todo às várias partes de mim

Me nimbe
 
Reflito sobre a loucura e a sanidade

Se eu chego um pouco mais tarde

uma das duas já tomou conta de mim
 
Do meu jardim
 
Onde brotam flores de papel
 
A chuva que chove nas flores... é de papel serpentina
 
O vento que embala as flores, volátil e leve, de papel também é feito
 
O trinar dos pássaros que me comove, é de papel pautado pra guardar som e arpejo
 
De papel é minha face,
 
Meu tormento, meu destino
 
De papel é o chapéu do menino que corre e sonha dentro de mim
 
Minha menina é de papel crepom e tem negros olhos de cartolina,

minha menina
 
Os crepúsculos dos dias
 
E o sol que me ilumina, de papel também os são
 
De papel minha alegria,
 
Minha poesia
 
O tremor que há algum tempo se esqueceu nas minhas mãos
 
Meu sentimento banal
 
E de papel picotado é o meu discurso
 
De papel carbono a minha personagem
 
en el gran circo del mundo
 
sem lona e sem picadeiro

abarrotado de bilhões tão parecidos comigo
 
A vida escrita, em meio ao rebuliço,
 
é guardada em maços de papel almaço
 
Meu susto rabisco, traço e esboço em papel vergê:
 
Grite agora ou cálice para sempre
 
Calo-me
 
Morro-me, então,
 
desempenhando o papel de saudade
 
figurando no papel de solidão
 
Aqui fora tudo fica tão calmo

a morte é dissolução

Aqui dentro, textos, poemas, poesias,
 
elegias, madrigais,

bilhetes, cartas, rascunhos,
 
os tratados que pensei, mas não escrevi
 
farfalham
 
trescalam
 
as imagens de tudo que eu não vivi.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

A palavra e o poeta


A poesia, esfinge incognoscível,
Semeia na alma o enigma
Perscruta respostas no silêncio das palavras,
Na angústia do solilóquio abstrato e ambíguo
Que se levanta e que recrudesce a cada manhã
Na dissonância entre o discurso e o gesto
No tédio palpável entre o enfaro e o resto
Abre portas
Cria mundos
Adormece o tempo
Decupando os dias
Em palavras laceradas e assômatas

Subsiste em cada palavra a possibilidade do poema
De cambiantes sentidos
Tanto faz se versa sobre a completude
Ou se tem o vazio como tema
A palavra é dúvida, é dilema
A palavra pode ser casta e amar o poeta
Ou então mulher da vida e amar ainda mais o poeta
Mas que besteira homérica que eu disse,
Pois da vida todos somos
E é da natureza da vida cafetinar a existência

Palavra é bicho arisco
Tem mil e um artifícios
Tem mil e um orifícios
Se piscar os olhos
Franzir um talvez no cenho
A palavra foge
Se esconde
Vira segredo
Medo
Agonia
Androginia
Se não cuidar a palavra te enlouquece
Se duvidar a palavra te mata
De mortes muito doídas

A palavra nimba o sonho
E o toco seco e tisnado
Pela queimada e a ambição
A palavra deita-se ao sol
E pega um bronze legal
Se é branquinha fica morena
Se é morena fica uma mulatinha sensacional

A palavra sobe na árvore
E cai ao soprar do vento
E se despedaça e se mistura
E se deriva inteira
Necessitando de sufixos e prefixos
E se torna indeslindável
É preciso, para entende-la daí em diante,
consultas terapêuticas constantes a um bom dicionário

Num só instante
A palavra é fogo
É água
Alegoria
Centelha
Substância
E essência
Alma
Descrença
Pecado
Linimento e danação

A palavra que a tudo define também de tudo definha
A palavra flutua
Sobre o silêncio do rio
Diz noite
Melancolia
Eternidade
Enlaça a cintura do sol
Diz teu nome
Vira poesia
Suavemente poetiza-se
Veste amarelo
Gira como um girassol
Flerta com o poeta na janela
Aceita o convite do poeta para entrar
Se deita com o poeta
E faz amor com o poeta
Em várias preposições
Ama-o pela frente, por trás
Dá a bundinha
E ama o poeta como se ele fosse
Seu substantivo próprio
O adjetivo mais primitivo
Advérbio de tempolugares e modos
Negação, e dúvida
Verbo transitivo, intransitivo, bitransitivo e de ligação
Conjunção carnal, anal, oral, et cetera e tal
Tudo muito tesífero, tudo muito gostosinho e legal
Interjeição de prazer e gozo
Artigo, a princípio indefinido, crescendo e definindo-se, latejante e duro no afinal
Numeral: uma, duas, "n" vezes, conforme dite o desejo e o tesão e a natureza
Pronome do caso reto e duro, obliquo, quando ela lhe dá a bundinha
Ama o poeta como se ele fosse seu único homem

A palavra e o poeta saem de mãos dadas a passear
Nas ruas
Nas calçadas
Na praia
No jardim
A vida boba, assim
De repente
Ela pede pra voltar pra casa
Diz que já está com saudades
Que quer um beijo onde vaza
seu mel de abelha rainha
Nem bem entram em casa
A palavra levanta a saia
E entrega-se à vertigem
Ele dela enamorado
Ela dele amante e confidente
Geme como uma virgem
Incendeiam o ar parado e frio
Banham-se das águas sensuais e tépidas
Que escorrem de sua gruta quente, seu rio
Flutua
Cio no cio
Dá a bundinha

A palavra não tem limites
Bebe, toma só mais uma, a saideira
Fuma, cigarro de palha e cigarro com piteira
Joga, na loto e no bingo, joga pela vida inteira
Trepa, até saciar a fome
Goza, tresloucados gozos de menina
Anda sem calcinha, a danadinha
Dá a bundinha
Mija no box do banheiro
Cicia, chama o poeta
E volta a foder no chuveiro

Pinta e borda
Faz gato e sapato do poeta
Acorda-o de madrugada
Não lhe deixa mais dormir
Beija, lambe, chupa, mordisca, o pau duro do poeta,
Trepa
Dá a bundinha
Sussurra reza e oração
E coisas dignas de excomunhão

A palavra não tem  momento
As palavras mais bonitas só se entregam ao sentimento
Sendo dele esposa e amante
Puta e acompanhante
Cerne e sumo
Caminho e rumo
A palavra bonita só dá para quem lhe dá carinho

A palavra, como se nota,
Se deixar ela falar, não cala nunca
E fala tanta besteira
E fala tanto palavrão
A palavra só se aquieta depois de atormentar muito o poeta
E foder com o poeta, e cansada diz "eu te amo"
E só se cala e só termina quando começa assim: FIM

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

FELIZ NATAL


Que no seu natal tenha um sol antes da neve

Que o brilho dos teus olhos seja o mais belo enfeite na tua árvore de natal

Que o amor incondicional reconcilie seu coração

Que não precises de ouro para seres feliz

Mesmo que as tuas palavras possam vir a ser pecado

Que os teus gestos sejam sempre a remissão

Abre as janelas

Deixa-te embriagar pela ternura do terral

Na algazarra das crianças já é natal

Nos jardins a vida já está madura

A chuva molha as florezinhas de papel

Crianças estendem as mãos, pedem nas ruas

Algo além da fantasia de um Noel

Nas ruas onde as crianças pedem não cai neve

A vida é premente e o tempo do semáforo é curto e breve

E papai Noel não consegue chegar com seu trenó

Para elidir tanto vazio e tanta solidão de ser tão só



*As rimas ficaram pobres, forçadas, sem ritmo. Me perdoem. Não consegui fazer coisa melhor. Se bem que o mais o gostoso é a brincadeira, é o fazer ou tentar fazer. As rimas ficaram tão pobres quanto os (Eu ia dizer tão pobres quanto os meninos de rua. Mas, não posso dizer isto. Os meninos são mais pobres. Bem mais pobres. Nada têm. A rima por mais pobre que seja ainda tem a poesia e a mim a cutuca-las. E isto já é muito.

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Ouvem?

São fragmentos de canções que o vento traz

São anjos a cantar de pés descalços, trajes puídos

A nos lembrar que o natal é todo dia (ou deveria ser)

Todo dia há fome e miséria

Todo dia há guerras e arrivismo

Todo dia há um sorriso a ser dado

Todo dia há um abraço a abraçar

Todo dia há um perdão a perdoar

Todo dia (todo instante?) há um poema a poemar

Todo dia o dia faz poesia, entrega pra noite e se vai

Todo dia

Todo dia

Todo dia a vida cabe num poema

Todo dia a vida é um poema,

Como a manhã que nos chama, todo dia

Seja o céu azul ou um borrão

Levantamos, e com a nossa melhor voz,

o nosso gesto melhor, a alma ardendo,

danamo-nos a declamar

a nossa melhor poesia



Feliz natal, Feliz natal!

FELIZ NATAL A TODOS!!!

A vida em preto e branco


A vida dormitava letárgica, em preto e branco
Eu não sabia o que era o amor
Eu não sabia que os anjos dormem em ninhos
Nada era meu
Nada
Nem o tempo que cai e se distende
Nem o destino e seu silêncio incognoscível

Ao sublime devanear da vida, dos sonhos coloridos
Meus olhos inocentes se encantaram
Não é lindo o jeito como ela descansa?
E agora quando chove as cores molham os dias
O arco-íris suspira, reverbera, de leve cobre o chão
Onde é que eu vou arrumar cores assim?
Onde o céu esplende luas vermelhas, noites de prata, sóis de marfim
Procurei, procurei, procurei...
O vento azul e doce bradava, esbatendo o entardecer:
A primeira coisa que devemos fazer é separar as coisas agradáveis
daquelas que são desagradáveis
Nos olhos do vento a lágrima ainda era escura, ainda havia sombras
Enfatizando a continuidade ao invés da alteração

As flores agora são verdes, vermelhas, amarelas, azuis
Vistas com os olhos do sentimento e da estesia
Nos jardins havia inquietação de cores
E havia a mão e o grito insontes nos lábios do poeta

Onde é que já se viu?
Como puderam fazer isto?
Puxa, está tudo tão esquisito
O que saiu errado?

As pessoas mudam
E não voltam a ser o que eram?
"A mente que se abre a uma nova ideia jamais volta ao seu tamanho original"

E de tanta palavra sem cor, sem arrepio, fez-se o silêncio
Não tive a intenção de magoar ninguém

Nada existe aqui fora
Todas as coisas estão dentro de você
Talvez você só saiba quando perde

Ela não está linda daquele jeito?
Ela não está tão bonita como da primeira vez que a viu?
Ela não está linda?
Você gostaria de dizer isto a ela?
Você não pode parar o que está dentro de você

Borboletas carregam o dia repleto de Tempo
O Tempo é mais que a espera
Não se esqueça de mim. Mesmo que você nunca volte

Amo você
Eu sei
Amo você também

Eu tinha a vida certa
O que vai acontecer agora?
Eu não sei
E você, sabe o que vai acontecer?


Este pretenso poema é uma brincadeira que me ocorreu fazer ao assistir o filme "A vida em preto e branco". As frases em itálico foram extraídas aleatoriamente dos diálogos no filme, portanto qualquer semelhança com pessoas e fatos da vida real é mera coincidência. A frase entre aspas é de Albert Einstein. As demais frases são de minha criação.

O texto está meio sem nexo. Por incapacidade minha e por que não consegui pegar o começo do filme, o que torna o início dos diálogos meio truncado.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

A vida não dorme


O vento, irrequieto, gira revoluto
Misturado à noite translúcida e singela
Arranhando  as treliças da janela
O som ciciante do vento na janela me pesa nos olhos
Adormeço
Não sou feliz, nem sou triste
Adormeço e a vida, com suas horas inúteis e sua danação, para
Durmo enlaçado à última palavra
Que a mão derrubou na folha, eu já quase adormecido
Durmo enlaçado aos vendavais
E aos redemoinhos espiralados no bulício dos quintais
Que não dormem em tempo algum
O sono preenche o quarto e a mim de escuridão
Nem sonhos nem pesadelos nem mundos outros
Vêm me pegar pela mão
Tudo calado e numeroso escuro
Meus olhos estão cegos de tanta noite
Em cima, embaixo, ao redor de tudo
Escuro, escuro, escuro...
Pra que escuro tão grande para uma vida tão pequena?
Minha alma deitou-se nua e possuiu meu sonhar
A noite amarelada apartou o medo que me repete desde menino
E me esconde durante o dia
O medo enrodilhou-se do outro lado,
Junto aos pecados e à impiedade
Medrando a vida desperta
Repleta de uma realidade imposta e impostora
A vida aflita e miúda, antiga, hipócrita e demagógica
Ainda é cedo para se derramar as lágrimas sem culpa
A madrugada veda os vidros miméticos das janelas
E as suas mixórdias de sombras e sons
A cidade dorme, ressonando o chiado dos carros
E resfolegando o cansaço das ruas
Os homens abastados dormem, subjugados e felizes com seu ouro,
Com seus carros, seus cartões de crédito,
Conta fria no estrangeiro e suas mulheres impolutas
Os homens humildes dormem, subjugados e felizes,
Com seu arroz com farinha, de vez em quando feijão,
Com seu café requentado, seu pão duro e adormecido,
Sua marmita de flandres, dentro, por cima de tudo,
Um ovo estrelado, por baixo e em volta o resto de ontem
As sarjetas dormem, fétidas corredeiras do luxo
Que a cidade venera tornado em lixo
Os cães ladram baladas dolentes para que um outro cão responda
O desconforto agônico não dorme jamais
Na madrugada opalescente lampeja o verde de um vaga-lume
Uma criança chora o choro, que o peito da mãe calará?
A alma palmilha a migração dos pássaros e a giração dos mundos
A aurora espera no escuro
Espera, distraída, o esquizo dia sair da caixa do remédio de tarja preta,
vestido na bula
E assim dizemos com arrogância e douto saberque a vida é como é
É hora do desassossego cavucar e cavucar
Para ver se alguma coisa acontece
Faz anos que nada acontece nesta sesmaria
Só mesmo a sina e o destino para medrar tanta letargia
Sob o olhar triste, remelento e medroso dos moleques dos semáforos
Calma, não vamos desesperar
O vilipêndio está lançado à terra fértil, um dia vai germinar

O cão dormita sob a escada
Travesseiro de si mesmo
Em volta o vulto do vento se acumula e zumbi
O Universo, por estas bandas de cá,
Dormita sem descuidar dos filhos seus
A bilha ao alcance das mãos
O Universo nos olha pelos olhos humanos de Deus
O céu marisca estrelas
O abacateiro, lá no fundo do quintal,
Derrama sombras e sons de folhas e galhos
Num vozerio ininteligível e insistente
As pedras da rua bebem a lua
Um bêbado, sonolento e vacilante
atravessa a noite ziguezagueando desgarrado da chusma
anestesiada e dócil
Tosse e balbucia palavras engroladas para um ouvinte ausente
Adormece na calçada, hotel com milhares de estrelas
Sem mais perguntas nem filosofias, a não ser as que deixou no bar
Enquanto durmo ruminando o sonho cenobita

Que ao raiar do dia a vida rediviva, atada ao sol,
Me entre pela janela e me acorra de tanta dúvida e medo
E não se esqueça da minha dor sem remédio
Do escuro que, seja noite, seja dia, se alastra em minha alma
E sufoca com tanta tristeza e tanto vitupério
E não me faça mais chorar
Só não me faça chorar

Debaixo da escada o cão se coça sem despertar
Talvez sonhe com o osso que a vida há de lhe dar
O gole d'água
E uma sombra inerte pra voltar a descansar
O peso desta vida de cão

A madrugada sonolenta boceja diante do discurso das horas
O incriável, o inominável,
Toda a beleza do mundo flutuam como uma pena no ar
Como o azul sobre o mar
Como o amor que te ama
E que te leva pra passear
E que te leva pra cama
E flerta com os teus lábios
E os desenha com os dedos
Estremece
O beijo pejado, tirado às páginas de um livro
E cartas cheias de amor
E algumas iluminuras, palavras para enfeitar o que vivo te dizendo
O amor, fragmento de Deus, também flutua no ar
E em sonhos se apresenta tirando a roupa aos amantes
Insinuando-se, unindo amados
E sequiosos, molhando de tanta tentação camas a corpos
Deve ser assim
Me embriago
Amo a cruz e o pecado
Ando sobre a areia quente dos medos
Por não vislumbrar outro caminho
Ando ganindo, com os olhos tristes e sozinho

A vida não dorme, dormita
As estrelas põem brincos na noite
A lua perora no céu suspiros prateados e versos meneantes
Cabe ao vento revoluto versejar as pétalas das flores
Depois que o dia raiar
Antes do mar secar
Depois que a felicidade voltar dos campos pendoada de sonhos
Depois que a chuva cair, tamborilando nos telhados
Depois do beijo na nuca
"Eu te amo", digo às mulheres que ficaram em mim
Acordo para o dia amarelo
Num tempo antigo
Anterior aos dinossauros
Anterior à palavra,
Mas, já cheio de espantos e de sentimentos
Chove
A chuva é hoje, é agora
Sinto falta de uma poesia que fosse minha
Queria tanto dizer: "Chove! Amo a chuva e quem chove"
E que isto dissesse tudo
Fosse espelho e provocação

E tudo que era era segundo a sua natureza e seu devir
O mundo, sabático,
Medita,
Sofisma,
Sopita,
Mas, não dorme

domingo, 21 de dezembro de 2014

Pingo


A noite insone e sozinha não me deixa dormir,
busca entre as sombras dolentes um confidente
que possa ouvir tanto silêncio
Me acorda na madrugada
Quem sabe o que quer comigo?
Vou à sacada
Acendo um cigarro
Acendo lembranças,
abrindo o sonho com as mãos
Sinto a brisa arrepiando-me o corpo como faziam
a mulher amada e a volúpia dos seus orgasmos
Na noite insonte tudo que vive cicia a carícia de um nome
Teu nome que não termina e retorna e me acha e me chama
e me deixa nostálgico por demais
Sentamos, meu coração e eu, na beirada da noite para te ver chegar
e repaginar tanto sentimento
Penso em você e borboletas voam no rastro da imaginação
Abraço a lembrança como abraçava você
Escuto a tua voz de menina dizendo no meu ouvido:
"vem, anda beijar meus peitinhos"
Teus seios castos que cabiam inteirinhos nas minhas mãos,
na minha boca e que couberam pra sempre na minha vida
Cabiam exatamente nos beijos que eu só tinha pra você
Teus peitinhos despontando na saliva morna das tardes de um tempo
que pôs você em mim e nunca mais você foi embora
Tua nudez melodiosa deslizava na minha nudez ávida de ti,
montava em mim,
me engolia,
sem pressa,
se derramava em mim
indecente como a cama no chão
como o desejo que vai da boca pra mão
Tua nudez esquecida do vestido e da calcinha,
com lacinho na frente e bichinhos estampados,
tatuou os meus sentidos com a brasa incandescente
do teu corpo fogoso,
do teu desejo enchendo de súplicas os nossos dias,
do teu beijo rubro que murmurava o passado irreversível
latente dentro de mim

Na noite fica este aroma de nostalgia
Todos os ventos silenciam e a folhagem estanca
É tempo de solidão
Tempo de eternidades revolutas
É tempo de escrever novamente o teu nome nos muros
das casas do bairro
Psiu, psiu, menina dos olhos que apagam a luz,
meu coração precisa urgentemente
pegar, afagar, beijar tuas mãos,
como eu fazia, borboleta amarela namorando o jardim em plena primavera,
enquanto a vida tecia, à sorrelfa, a saudade
que ali adiante me esperaria

Um aperto no peito soa
e se esparrama como o teu cheiro se esparramava em mim
A lua dorme na relva de nuvens e não vem espiar os meus olhos lacrimejantes
Mas, eu canto
Cantarolo, só pra mim, a canção que te despia e te absolvia de todo pecado
Não importa se a canção traz de tão longe tanto beijo,
tanto latejo,
tanto roçar,
tanto desejo
tanta luta,
tanto suor,
tanto dedo,
tanta mão,
tantos ais,
tanta inocência
Eu canto pra tua ausência presente dentro de mim
Eu canto mesmo assim

O ar é só brincadeira dos pássaros meditando a manhã
Os pássaros trinam segredos azuis e brancas formosuras
Tudo como na primeira vez
Se houvesse o tempo

A cidade ressona
Um carro, boquirroto, se repete em seu som modorrento,
segue exausto o seu curso,
sem eira, nem beira,
doendo nas curvas metuendas e rascantes

Há plenitude no quase silêncio que alumbra
No indistinto silêncio efêmero estremunhando o mundo
No quase poema
No eterno dilema
entre pintar ou bordar com você
Com você, no nosso mundo, eu pintava e despintava
bordava e desbordava
beijava e desbeijava sua nudez de menina
e vadiava contigo até nossos desejos ficarem quietos e calados
e a taça borbulhante transbordasse de tesão
e o amor trouxesse o cansaço
e você dormisse em meu braço
o sono sem pecado da criação

Meu mundo,
assim percebido entre a noite elementar e o nada absoluto,
quieto como um furacão que se arma na vã placidez do passado,
pergunta, gesto ou tremor subentendido,
escondido
meu mundo, arquétipo involuído dos meus medos,
por um instante inebria-se em rumores e em travessos segredos
que confabulam palpitantes o que fui:
menino sem razão,
transido de liberdade,
que nunca vai morrer de coisa à toa
apaixonado pela menina da rua
embriagado pelos seus pulsares
e a noite que dorme nos teus olhos negros
Confabulam palpitantes o que sou:
um homem sonhando amores adolescentes na madrugada silente
buscando em meio ao negro da noite os olhos negros de Pingo
Pingo d'água, Pingo de amor, Pingo de fogo
Seria Pingo só por ser pingo de gente?

Pingo, passaram-se dias e noites,
alguns ficaram em retratos,
outros aos poucos enlouquecem,
andam em círculos,
escrevem cartas com canetas de tinta invisível
bebem saudades,
deglutem o tempo...
não sabem, querida, que o tempo não passa para o amor

sábado, 20 de dezembro de 2014

Preciso de um amigo, não de um juiz


Preciso de um amigo, não de um juiz
Preciso de um amigo que me lembre o que de mim esqueci
O que de mim, precipitado, misturei e confundi
O que de mim nunca soube
O meu texto e a minha exegese
Minha cegueira e meus passos desesperados
Minha essência emanada, pouco a pouco, dos instantes de muitas vidas
Dos tantos medos,
cansaços
Das lágrimas que o vento enxugou num afago cálido e terno
Das lágrimas que rolaram pela máscara kabuki da terra seca no meu rosto
Da soberba que recrudesce e me entorpece e me petrifica a alma
Da voragem insaciável do meu ego caótico e inebriado,
flutuando entre a luz e a escuridão dos becos esquizofrênicos e opiáceos
Do meu mundo de faz de conta,
dos meus castelos de areia,
da minha terra do nunca,
do nunca na brincadeira,
das fábulas que me instigaram,
da minha mente que mente,
do meu eu que desmorona e ausculta os solilóquios do medo
Da torrente impetuosa que gira e move e transborda
o escuro e revolto do meu âmago bipolar

A minha mão indecisa, um dia, escreverá os poemas que regressaram comigo
Serei poeta por um dia, que seja
Mesmo sem saber faze-lo (sê-lo)
Alguns lerão os meus versos e dirão: que desespero
Há os que verão no que escrevo leitura para o banheiro,
Haverá os juízes, de dedo em riste, que darão a sentença:
"morto estaria se viesse aqui buscar dinheiro"
Outros, ainda, a maioria, numa indiferença cotidiana e contumaz ,
sacudirão as palavras todas ao lixo do esquecimento
Cada um no seu momento
Cada um no seu lamento
Cada um no seu tormento
Para cada qual sua dor, sua sina e seu linimento

Preciso de um amigo que me ouça,
sem perambular pelas minhas palavras em busca do bem e do mal
Preciso de um amigo não juiz, sem juízo
Um amigo irremediavelmente mortal,
inconsequentemente surreal,
que coma comigo o sal,
um amigo et cetera e tal
Não precisa gostar de poesia,
nem de ver o pôr do sol na praia da Daniela
nem a luz que inventa o dia,
nem questionar qual é a estrela mais bela
mas que tenha estesia,
volúpia e uma alma com pontos de exclamação, reticências,
vírgulas e conectivos, sem o cruel ponto final.
Que tenha linhas e mais linhas,
parágrafos e mais parágrafos repletos de pontos de interrogação
Que seja original na essência
e sobretudo humano,
suscetível ao toque e ao olhar
E mesmo que eu me cale,
que eu nunca mais diga nada,
o meu silêncio seja para ele tão eloquente
como o silêncio que cicia, se alteia e dialoga com a madrugada
Que seja como eu, condenado, à revelia, à existência solitária e sisifista
de buscar verdades e mentiras dentro da impermanência
e da grande ilusão de Mara que nos cega os sentidos
Condenado a vestir e despir a sombra e a persona incognoscível
sem atinar muito bem com a fantasia
e o segredo que nos mantem em pé mesmo que oscilantes
Que não tenha medo do exílio da morte indecifrável que nos espera sob as fases da lua,
sob o sol das manhãs, mergulhada na catarse do sono final,
que em nosso sonho se aconchegasse
e se aninhasse
e em nossos braços adormecesse
E, assim, a vida fizesse-se ausente
E morrer é seguir em frente
Pelos caminhos tocados pela metáfora da noite rediviva,
pelos rios onde o passado, o presente e o futuro se alinham

Escancaro as janelas da minha morada
Ainda há sombras arrevesadas buscando significações
A vida mascarada pelo lusco-fusco, virada do avesso
Onde o fim?
Onde o começo?
A minha vida se esconde
sob as pedras do jardim
Meu amigo há de trazer sóis incandescentes, luas cheias de centelhas,
para iluminar o escuro
do que de mais noite há em mim

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

"O inferno são os outros"


"O inferno são os outros"
      (Jean-Paul Sartre)

E é tudo sempre o outro

As coisas não estão boas?
O outro que brigue
O outro que lute
O outro que proteste
O outro que pague
O outro que pense
O outro que sinta
O outro que se corrija
O outro que se aflija
O outro que se sacrifique

Quero passar com minha pressa e meu carro?
O outro que olhe
O outro que pare
O outro que ceda

Há divergências entre a gente?
O outro é que não entende
O outro é quem está errado
O outro é que é diferente
O outro que peça perdão
O outro é que é indiferente
O outro nem sequer é gente
O outro é que é incoerente
O outro é que é demente
O outro é quem provoca
O outro é quem distorce tudo
O outro é que é mudo e surdo

Não se faz a mudança sonhada?
O outro é que é covarde
O outro é que é evasivo
O outro é que é pessimista
O outro é que é arrivista
O outro é que é egoísta
O outro é que é sanguessuga
O outro é que é vagabundo
O outro que é sem moral
O outro é que é vagal
O outro é quem estraga o mundo
O outro é o fim da picada
O outro é puro veneno
O outro é quem não quer nada

O mundo é um lugar medonho?
O outro é quem engana e mente
O outro é que é serpente
O outro é que é insidioso
O outro é que é o perdido
O outro é que é ladrão
O outro é que é vilão
O outro não toma jeito
O outro é quem dá um "jeito"

O outro não é o que tu querias?
O outro só tem defeitos
O outro é só falsidade
O outro é um tanto quanto estranho
O outro sé tem tamanho
O outro é só safadeza
O outro é só frustração
O outro é tudo de ruim que eu não sou
O outro é este ser cheirando a enxofre
O outro é só confusão

O outro?
Ah! O outro...
Desgraçado, vil!!!
jamais foi santo, o desditoso
sequer beato em contrição
Nem anjo de asa quebrada
Nem ao menos anjo de procissão

O outro é o coisa-ruim chupando manga
O outro é o protótipo do cão
O outro não tem limite
O outro não tem sentimento
O outro não tem futuro
O outro não tem respeito
O outro é só tormento
O outro não tem lisura
O outro é só despeito
O outro não tem querer
Pesando e pensando bem
Nem mãe o outro deve ter

sábado, 13 de dezembro de 2014

Todo o amor que eu não te dei


Sabe aquele amor que eu não te dei?
Hoje tenta ser poesia
Ilusão e elegia
Liturgia
Ser sede
Dentro do copo da noite
Ser noite
Dentro do copo vazio
Todo o amor que não te dei
Virou enredo na vida chata, exata e real,
Enredo, alegoria
Dolo, fraude, aleivosia
Tento poemar os meus dias
Agora, sem hora nem dia perco o juízo,
Buscando entre o caos bipolar
O sentimento que abra porta e janela
Para que quando tua ausência passe
Ainda veja na tua face
Teus olhos me trazendo pra sempre
A noite cheia de sol
Com todo o amor que eu não te dei
O dia fez-se perjuro
Escorre a inquietude da tarde
Feita de zanga e saudade
Trazendo a noite que mora
No escuro dos olhos teus
Nos teus cabelos que dormem
Negros sobre os teus seios
Branquinhos, tímidos
Soluçantes entre os meus lábios
Pequeninos frutos esperando passarinho
Depois da chuva forte
Dois poemas esperando boca a declamá-los
O amor que eu não te dei
Chove toda madrugada
Pinga dentro do meu quarto
Goteja nos meus sentidos
Vai molhando e formando poça
Nas tolices necessárias que eu não disse
Alaga, lateja e se esfrega no teu grito
E te beija onde nunca te beijaram
E crava as unhas no suor que escorre da tua bunda
Sabe aquele amor que eu não te dei?
Vai te buscar na lonjura
Te enlaça a cintura
Beija teu colo
Aspira teu cheiro
Desabotoa tua blusa
Tateia e tira o teu sutiã
Bota a mão nos teus peitinhos
Brinca com um bico de seio
Mordisca e lambe a infância dos teus mamilos,
Beija sugando,
Chupa beijando,
Entre os lábios,
Entre a morder um tantinho
Diz te amo
E ama
Passa a mão na tua bunda
Perde-se entre as duas vontades
Levanta tua bunda
Tira tua calcinha
Bebe, sorve,
Lambe, devagarinho,
Teu gosto
Teu gozo
Embriaga-se de mansinho
Na volúpia do vinho zonzo
Que escorre da tua flor
Na taça da tua virilha
Se serve
Teu gosto
Teu cheiro
Terno
Cálido
Bebe você
No teu silêncio singular, nos teus orgasmos plurais
No cais dos teus doces ais
Entre os macios hemisférios
Onde o beijo percorre o rego
E ama-te, pequena e doce
E te possui por trás
Sabe aquele amor que eu não te dei?
Volta pra casa sozinho
Dos sonhos que então sonhei
Na boca o gosto acre dos gemidos
No corpo todo um sussurro
Na pele todo um carinho
Me conta coisas
Às vezes penso que ele vai chorar
Todo o amor que eu não te dei
Hoje são estas letras
Postas como se fossem a minha coxa
Entre as tuas coxas
Sentem sua bucetinha pulsando,
Beliscando
Respirando
Desejo
Fruta partida
Sentem você molhada e quentinha
Me babando segredos e afetos
Com os teus beicinhos de sal e gozo

domingo, 7 de dezembro de 2014

A noite é sede


Melhor dormir se o tempo se faz sem ti e guardar-te em sonho até tu mesmo seres noite.
(Mia Couto)
 
 
A noite é sede
e meus lábios estão secos
meus braços são espera
meus passos esqueceram os caminhos
meu sonho ficou em ti
ficou na tua noite meu sonho
ficaram meus dias na rua avessa
e molhada de chuva e vagar
derramei teu nome em cada flor do jardim
chorei
entre soluços pensei vislumbrar o poeta
dos versos, dos gestos,
do nada em que adormeço
desfolhei flores na despedida
cego, pisei o destino como quem pisa a serpente
curei minhas dores com o sal das minhas lágrimas
quando a noite veio de novo
sopesando com parcimônia os indeléveis caminhos escuros
já não chorava
a noite floriu com ímpeto
apagando o rio,
as casas
a letra cansada do poeta
o verso dorido do poeta
o amor apagou-se antes da noite
o amor apagou-se com o crepúsculo
e o pó que subia dos caminhos
a lua, suavemente, adormeceu sobre a papoula
as estrelas cantaram elegias da criação
a noite girou,
emprestou vozes e silhuetas ao sonho
entonteceu-me
recostei minha cabeça na saudade
e dormi
junto ao recordo de ti
para que tudo o que sonhei e o que vivi
não fujam de mim

sábado, 6 de dezembro de 2014

Alguma coisa


Limites
 
Quem disse alguma vez: até aqui a sede,
até aqui a água?
 
Quem disse alguma vez: até aqui o ar,
até aqui o fogo?
 
Quem disse alguma vez: até aqui o amor,
até aqui o ódio?
 
Quem disse alguma vez: até aqui o homem,
até aqui não?
 
Só a esperança tem joelhos nítidos.
Sangram.
 
Juan Gelman.
In Amor que serena, termina? Editora Record, 2001.
 
 
 
Alguma coisa está para acontecer
Quando a água beber a sede
Quando o ar se tornar fogo
Quando o amor, de si tão quente, fusionar o ódio
Quando o homem humanizar-se atendendo ao rogo
terno da aurora,
ao choro inteiro da alma de uma mãe
 
Alguma coisa aconteceu
E com aporias me devora
E antes que você vá embora
Saiba, senhora
Que o dia que vinha veio e nasceu
por detrás da cerração
E a noite ficou lá fora tingida em pó de carvão
E a água lavou o fogo
E o amor se fez sem rogo
E o homem afagou o ódio
E a sede fartou-se de choro e saliva
E eis que a vida ainda é viva
E em usual sossego
Alguma coisa acontece
Entre o instante e o agora
Se a noite fica do lado de fora
Alguma coisa acontece
ao rogo terno da aurora
alguma coisa
                      a
                        con
                               tece:
do caos inebriado
e amarfanhado
que tanta estrela criou
fez-se esta realidade incognoscível
subjacente
jacente
se/mente
lançada ao chão
para que mais nada aconteça
e não me roube o mundo
e a paisagem placebo e movediça que subsistirá
ao que penso ser no engendro hermético da mente
e às veleidades que no tempo vago e vazio de mim se falará


domingo, 30 de novembro de 2014

Espiral

Não tenho tantas certezas
Tão pouco tantas verdades
Não tenho dogmas
ou doutrinas
que não possa tremer de encanto,
espanto e medo
diante da inexorabilidade da morte,
diante da imponderabilidade da vida
Por onde é que se começa a destrinchar e mastigar a vida?
Em que ponto do banquete se começa a deglutir a morte?
nesta festa de canibais embriagados e ególatras
onde brincamos de deuses descrentes, padecentes, quem sabe?
A morte fusionando a vida,
consumindo a vida irresoluta,
atada a um fio de esperança
e um novelo de solidão
E ninguém vê
Todo mundo quer ir por céu,
mas ninguém quer morrer
Só o outro morre,
por que a vida é mesquinha, assim
Me diga onde é que é vida?
Onde é que é morte?
Quem é que sabe o segredo, a mentira destes mundos?
Quem sabe se tem outra vez
entre tantos nunca mais?
Destino sem denotação alguma
Quando menos se espera a morte bate à porta
e se não abrimos, ela, com intimidade,
pega a chave embaixo do capacho
antes que possa
cumprir a jornada dos dias úteis (útil pra quem patrão?)
bater ponto o mês inteiro
confundir-se ao dinheiro e à ganância ingente
descolar um amor descolado
pra depois do expediente
quando a noite já cansada
adormece para o amanhã
Amanhã...
Um dia pra ser feliz
Lá adiante
Bem pra frente
Quanto tempo ainda
para que a sombra se deite sobre a luz
e os ponteiros do tempo
sirvam de cravos a nos pregarem na cruz

Me comovo
Guardo o milagre
nos lagos cintilantes onde o sol flutuou,
ígneo alcobaça cobrindo as águas com o brasil do fim de tarde
deslindando a alma encarcerada
na parábola e no  mistério,
mestre e discípula
a alma suscita lembranças
da flor antes mesmo da flor ser flor
da última expiração
precedendo a primeira inspiração
vida e morte
noite e dia
luz e sombra
yin e yang
acendendo e apagando mundos
Tem vidas (e cada vida é um mundo)
que duram milionésimos de um segundo
e também são pra toda vida
como toda vida é pra toda vida
Cientistas,
misturando teorias e pitacos a bilhões de dólares,
hão de encucar,
ruminar e deitar farolices
para quem quiser ler ou ouvir
sandices desatando nós
Hão de arguir, quando o sol esfriar,
quem somos,
donde viemos,
pra onde vamos,
gênese e apocalipse da vida
A vida, sem explicação, é para toda a vida
até que uma nova estrela, já morta, nos deixe ver sua luz
transformando em energia o que era agônica consumação
num cosmos de bilhões de anos

Fecho os olhos e aspiro o perfume da flor
adubada a estrume
A vida, por um momento, se explica,
faz sentido
quieta e sem luz
como um útero primordial
pulsando a noite que desprendeu o dia