domingo, 28 de dezembro de 2014
Os outros que há em mim
o que é que eu falo para estes outros que há em mim?
como mostrar a eles que as escolhas estão erradas,
que os caminhos escolhidos não andam nem levam a nada?
andam a tatear tristes mundos
lancinantes noites
dias profanos
cada um com seu atavio
cada um com sua algaravia
cada um exigindo precedência
"há vozes no meu quarto
que pedem mais do que posso sonhar"
diz Mia Couto
e assim me calo
e assim ouço a eternidade
a lua que vejo agora não é igual a da última vez
quando meus olhos choravam a minha ignorância
a flor que toco é lá na infância
onde borboletas voavam sem asas
e eu, ignorante, as tinha nas minhas mãos
ainda hoje tenho presa a minha alma por um cordão
o que é que eu falo para estes outros em mim?
que mentem
enganam
adulam
dizem que sou o que não quero ser
e não sou
e nunca são
se não desespero e dor
imploram carinho, atenção
se despem e se prostituem por qualquer meia dúzia de palavras vãs
de frívolos sorrisos
comem as migalhas que caem das mesas e das camas
regurgitam o destino
despertam e sonham o pecado
tonteiam-me
olham a tropeçar na infinita cegueira
que direi a estes outros?
para que acordem do sono
do sonho fútil que devora a vida
do engano
que veste de desejos o mundo
se quem sonha sonhos cativantes não deseja ser acordado
que dizer a eles?
que olham para não ver
que pouco ou nada dão a vida
mas, que tudo querem ter
duas palavras, salamaleques e um mimo
compram a submissão
ao escravizante prazer
que dizer?
que dizer?
aos meus outros viciados
arrivistas
prostitutos da existência
que dizer ao Divino que em mim habita
e que é o meu verdadeiro Eu?
que dizer para a vida que envelhece dentro do espelho?
que dizer para o rio onde minha sombra se banha?
para a ingenuidade extasiante da flor na janela?
como abrir as portas sem que o escuro não entre?
que dizer para o tempo que me espreita?
que dizer para a mulher que comigo se deita
para atendermos ao rogo da luxúria,
para preenchermos o vazio sem gesto,
o insuportável nada
e tentar elidir
e esquecer o medo?
poderia usar qualquer droga,
se tudo fosse tão pouco
poderia ficar louco
dissolver a Divindade no caos
rasgar a alma em pedaços
rasgar o mundo vidente
e os mundos duvidentes que desconheço
pôr para correr os demônios
correr, tropeçar, rastejar
cansado
na sede beber cicuta
chorar o infinito
depois inspirar fundo
enraizar o corpo na terra
fazer a eterna guerra
até deixar de existir
motivos para chorar
qual a palavra indizível,
alheia e tão semelhante a minha voz,
que possa iniciar o indispensável diálogo entre nós?
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