terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O caminho que anda sob os meus pés

 
O prólogo de Zaratustra

Aos trinta anos apartou-se Zaratustra da sua pátria e do lago da sua pátria, e foi-se até a montanha. Durante dez anos gozou por lá do seu espírito e da sua soledade sem se cansar. Variaram, porém, os seus sentimentos, e uma manhã, erguendo-se com a aurora, pôs-se em frente do sol e falou-lhe deste modo:

“Grande astro! Que seria da tua felicidade se te faltassem aqueles a quem iluminas? Faz dez anos que te abeiras da minha caverna, e, sem mim, sem a minha águia e a minha serpente, haver-te-ias cansado da tua luz e deste caminho".

Nós, porém, esperávamos-te todas as manhãs, tomávamos-te o supérfluo e bem dizíamos-te.

Pois bem: já estou tão enfastiado da minha sabedoria, como a abelha que acumulasse demasiado mel.

Necessito mãos que se estendam para mim.

Quisera dar e repartir até que os sábios tornassem a gozar da sua loucura e os pobres da sua riqueza.

Por isso devo descer às profundidades, como tu pela noite, astro exuberante de riqueza quando transpões o mar para levar a tua luz ao mundo inferior.

Eu devo descer, como tu, segundo dizem os homens a quem me quero dirigir.

Abençoa-me, pois, olho afável, que podes ver sem inveja até uma felicidade demasiado grande!

Abençoa a taça que quer transbordar, para que dela manem as douradas águas, levando a todos os lábios o reflexo da tua alegria!

Olha! Esta taça quer de novo esvaziar-se, e Zaratustra quer tornar a ser homem.

Assim principiou o caso de Zaratustra.


Friedrich Wilhelm Nietzsche.
In Assim falou Zaratustra.



Como Zaratustra ia eu no caminho e me perguntava: que caminho é este que eu tomei onde as sombras não dormem à espreita de que eu caia e elas me assaltem a alma. Que caminho é este onde o sol, por vezes, esplende e brilha tanto que incandesce e me ofusca o espírito. Não encontro ninguém que ouça e entenda a noite. Passaram-se tantos anos e os vales ainda guardavam a queda. Os bosques são de cinzas e o vento escorre por entre os troncos tisnados. Ardem. Por vezes não encontro água que beba. Por vezes não encontro sono que durma. Minha alma vagueia.

de quando em quando respiro
enquanto percorro e deslindo este caminho
que anda sob meus pés
tenho o hábito de, vez por outra, voltar o olhar para trás
assim como quem espera um possível companheiro
para juntos caminharmos pra longe da escuridão

tantos já percorreram este caminho que ora percorro
talvez não os encontre ali na frente
após uma das curvas do caminho
após o silêncio preso aos meus passos
talvez estejam alguns, ou mesmo todos, aqui comigo agora
se não de quem seriam estas vozes que clamam tanto em meu peito?
estas partes de mim que vêm recolher a minha noite?
enquanto aguardo o luar vestir-me de prata e âmbar

talvez, naqueles tempos de cada um
houvesse luas flutuando hesitantes
mais estrelas cheirando a rios de cor no céu pendoado
no dia também morasse o escuro
e as noites se incendiassem de tanto sol
talvez, alguns dias, a dor fosse tanta
e o caminho fosse a veia aberta e latejante
na têmpora de um mundo insone
que só dormisse no colo do amor incondicional

talvez os dias fossem fogueiras que a noite apagava
que à noite também houvesse um céu para os pássaros dormirem
e mares por onde só se andava de candeia na mão
talvez, naqueles tempos, na bifurcação da estrada,
flores brancas e negras brotassem
umas entremeadas das outras
flores atravessadas pelo vento e pelo silêncio da paisagem
flores se abrindo para os olhos de ontem

talvez um rio nadasse nas águas das chuvas cheias de solidão
a poesia estremecesse ao sair das minhas mãos
talvez a pedra já estivesse no caminho
e sentisse e pensasse e sonhasse
e adormecesse em soluços como o menino que fui
talvez houvesse, entre as pessoas, algumas de olhos azuis,
outras com olhos verdes, muitas de olhos castanhos e negros
e todas olhassem com o mesmo pasmo o firmamento

talvez o caminho seja esta noite inquieta e rumorosa
talvez, de tanto cruzar a solidão da grande ponte
e ouvir a voz dolente das águas soluçando
confrangidas pelas margens do rio
meus passos se esquecem a andar sozinhos e ligeiros
em direção à tempestade

talvez!

talvez o mundo fosse um mistério maior do que as suas ruínas
talvez a consciência ouvisse mais a alma e a criança que espera
talvez o que se disse e fizesse do mundo e do homem fizesse mais sentido

o abismo sempre esteve, sempre estará lá
fendendo o caminho
impuro
escuro
sorvedouro
sem margens
ou memória
de amor ou ódio

talvez eu encontre as chaves da minha cela nesta prisão
talvez não

meu coração se encanta
com a tessitura e o aroma das palavras
que amam os dias
se entregam às madrugadas
que recendem à poesias
e têm, na essência, o silêncio dos timbales
e dos olhos a lê-las

minha alma se espanta
esquece
para em seguida recordar
as noites ao meio dia
o vento varrendo os desertos
e as planícies
derrubando o perfume das folhas
num mundo onde o sol quando se apaga toca o chão
e cheio de chuva e rios e cheio de dor não demora a esfriar

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