LAMENTOS DO TIO AFRÂNIO (2)
Tenho tanta saudade
de estar morto, disse Afrânio.
E pediu-me que o levasse para a janela.
Para eu saber que anoitece, explicou.
Não quero que a morte
tenha saudade de mim.
Mia Couto.
In idades cidades divindades, pag. 58, Editorial Caminho SA, 2013.
Mia Couto.
In idades cidades divindades, pag. 58, Editorial Caminho SA, 2013.
Nasci para o mundo
Tarde demais
Vou morrer
Nasci como nascem as manhãs
Vou morrer como morrem as estrelas
Trazido pelas mãos da aurora
Autofágico e engolfado pela ventania
Ou pela mão atroz da sina
Hei! você, toma este punhal
Vai pro fundo da caverna
Livra-me de mim
Que a minha voz não se cale
Que o tempo me seja ameno
Me ensine
Dê a feição de um Todo às várias partes de mim
Me nimbe
Me ensine
Dê a feição de um Todo às várias partes de mim
Me nimbe
Reflito sobre a loucura e a sanidade
Se eu chego um pouco mais tarde
uma das duas já tomou conta de mim
Se eu chego um pouco mais tarde
uma das duas já tomou conta de mim
Do meu jardim
Onde brotam flores de papel
A chuva que chove nas flores... é de papel serpentina
O vento que embala as flores, volátil e leve, de papel também é feito
O trinar dos pássaros que me comove, é de papel pautado pra guardar som e arpejo
De papel é minha face,
Meu tormento, meu destino
De papel é o chapéu do menino que corre e sonha dentro de mim
Minha menina é de papel crepom e tem negros olhos de cartolina,
minha menina
minha menina
Os crepúsculos dos dias
E o sol que me ilumina, de papel também os são
De papel minha alegria,
Minha poesia
O tremor que há algum tempo se esqueceu nas minhas mãos
Meu sentimento banal
E de papel picotado é o meu discurso
De papel carbono a minha personagem
en el gran circo del mundo
sem lona e sem picadeiro
abarrotado de bilhões tão parecidos comigo
abarrotado de bilhões tão parecidos comigo
A vida escrita, em meio ao rebuliço,
é guardada em maços de papel almaço
Meu susto rabisco, traço e esboço em papel vergê:
Grite agora ou cálice para sempre
Calo-me
Morro-me, então,
desempenhando o papel de saudade
figurando no papel de solidão
Aqui fora tudo fica tão calmo
a morte é dissolução
Aqui dentro, textos, poemas, poesias,
a morte é dissolução
Aqui dentro, textos, poemas, poesias,
elegias, madrigais,
bilhetes, cartas, rascunhos,
bilhetes, cartas, rascunhos,
os tratados que pensei, mas não escrevi
farfalham
trescalam
as imagens de tudo que eu não vivi.
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