domingo, 30 de agosto de 2015
Cidadão não é uma cidade grande
Cidadão,
como pode parecer aos mais afoitos e/ou mais aflitos,
não é aumentativo de cidade
não é o homem atrás da grade
da tela da TV
esperando o amanhã cair-lhe no colo em 3 D
engolindo passivamente as "verdades"
que eles têm para lhe dizer
Cidadão não é a fome
sem nome
brotando do chão rachado
morada do desatino
não é o pai
não é o menino
cujos os passos ouço no drama
na lama
não é o vento calado
não é o rio seco e estatelado
secando com raiva o gado
Cidadão não se faz
bebendo o fel na ponta da lança
cidadão não se faz
com crianças esperança
enquanto a multidão dança
entontecida e falaz
com os artistas em cartaz
Cidadão não é pronome
indefinido
relativo
possessivo
sem posses
sem nada ter
demonstrativo
sem nada para mostrar
interrogativo
sem perguntas a fazer
Cidadão não é agente da passiva
passivo
esperando que o inominado aconteça
e que o mundo renda-se a seus pés
como nos programas que vê
hipnotizado e a mercê
da propaganda sorvida
como parâmetro de vida
Cidadão não é o sujeito da oração
que de oração estamos fartos
cidadão é predicativo
ligando o pensar aos atos
Cidadão não é sujeito oculto
atrás dos medos
que vai ao culto
e carrega o terço entre os dedos
a bíblia embaixo do braço
e desanda em ladainhas
de frustração e cansaço
a escamotear divinos segredos
e mistérios da criação
Cidadão não é sujeito indeterminado
ao ostracismo fadado
sem saber se é ou não
escravo alforriado
criando o próprio mundo
Cidadão é sujeito simples
como a pedra e o poema
que vai a luta
e faz acontecer
entre as premissas do dilema
Cidadão é sujeito composto
de fibra e de valentia
de incurável utopia
luta, peleja, porfia
Cidadão é verbo
em todos os seus tempos
em todas as suas conjugações
com todas as injunções
é o ser que se flexiona e se expressa
em pessoa, número, tempo, modo e voz
para além da letargia dormindo dentro das noites
e o ofuscamento dos mil sóis das ilusões
Cidadão é quem faz os caminhos por onde a vida andará
levando as promessas e sonhos que ardiam
nos olhos da sua infância
inunda rios
faz cessar os calafrios
com assombros e estrelas
e luas que passam mudas
porém sempre lindas
sempre nuas
sempre dele
sempre tuas
faz o cego enxergar
e o obtuso questionar
para além do último pedaço duro de pão
para além do punhado de farinha
amordaçado ao feijão
CIDADÃO
cavaleiro da triste figura
a sonhar com Dulcinéias
enquanto os sonhos que sonham
os barcos ancorados nos poemas
enfunam as velas do mundo
e põe o mundo e os ausentes
no barco que parte silente
e sofregamente no mar
costumeiro
e por derradeiro
tira da opressão
coragens e forças para lutar
a luta mais árida e premente
a luta de se achar
Imagem: Christian Schloe
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