domingo, 2 de agosto de 2015
O silêncio não existe
O silêncio não existe!
Posto que haverá sempre
o sibilar poroso do vento se insinuando
pelas frestas do dia
infatigável, doce e claro
Rumores de passos andando
no cimento das calçadas
na madeira carcomida da ponte
nas ruas de terra
nos paralelepípedos escorregadios
depois da chuva da noite
nas ruínas de antigos tempos
nas distraídas saudades
nas vielas baldias da loucura
em direção aos botequins
no caminho indeciso do bêbado voltando pra casa
chorando sem pudor
tanta dor
tanta dor
regressando para os braços do seu amor
na madrugada caiada de abandono
onde um cão ladra
e sombras descem das luzes dos postes
Asas ruflando
num céu escapando
se espremendo e se misturando ao horizonte
pássaros migrando
voando vôos sobre os campos ofegantes e impregnados
destas solidões que levam os pássaros
daqui para ali
dali para acolá
e de volta para cá
numa insustentável leveza de quem esquece o peso e o ar
e entrega-se à liberdade evanescente
a flutuar, flutuar...
Sempre haverá o gorjeio dos pássaros poetizando as manhãs
encobrindo a impiedade dos dias
Pombos arrulhando nas cumeeiras das casas
nos beirais dos edifícios
debicando restos nas praças encarceradas no solilóquio das cidades
Haverá dias em que a chuva cairá
tamborilando nos telhados
repenicando no chão
esfarelando-se, estrídula,
na terra seca dos quintais que ainda restam
Ocasionalmente uma gota de orvalho
ou uma lágrima se desprenderão
de uma flor
dos olhos dos anjos
leves e translúcidas
e cairão
revolvendo a terra do canteiro com inefável ternura
Quando menos se espera pode soar
o monótono tic-tac escorrendo das engrenagens infrangíveis
de um relógio antigo
evidenciando passados
ritmando lembranças
matraqueando entediantes horas de um tempo arcaico
e desprovido de sentido
Sempre haverá uma porta rangendo nos gonzos
assombrada
na casa escutando o silêncio se arrastando vagaroso
pelas estruturas vazias
pelas paredes caiadas pelas puídas cores do nada
Em algum momento
dentro de um inverno debruçado sobre à mesa
alguém sorverá uma colherada de sopa
na noite manchada pelo som do deslizar do talher no prato
levando sonhos à boca
O silêncio não existe
e mesmo que o mundo inteiro se cale
que a morte taciturna me fale
indizivelmente triste
inescrutavelmente antiga
sempre haverá um poema cingido a alguma voz
flutuando em memórias antiquíssimas
no burburinho dos dias enchendo o ar de rumores
no que diz as noites e madrugadas que não dormem
no tempo soerguido no ar
na hora íntima
olhos cerrados
em noites cheias de solidão
e de luas passeando na janela atravessada por um mar
passeando nos telhados e quintais
dissolvendo palavras
sílaba a sílaba
Sempre haverá um poema semeado no branco nostálgico de um livro
absorto como as ilhas demorando-se a fitar o mar
paciente como as hastes do trigo esperando os ventos de agosto
latejando versos
de inefável encanto
ou de quieto desespero
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