segunda-feira, 31 de agosto de 2015
Passa e fica
Passam as fugas
acobertadas por neblinas quase cegas
Passa o nada
intenso e desigual
por sinal
tão ao natural
Passa o canto dos pássaros
cantando a carícia furta-cor da manhã
em meio aos sonhos ainda dormindo nos olhos
em meio a buzinas e motores
Passa o rio
amassado
trazendo torrões de terra
fantasmas de alguma guerra
retalhos de galhos e nuvens
imprestáveis passados
que também passarão
como a ternura passa
e fica só o tesão
Passa a lua
sem parar, sem parar
a lua tem medo de se quebrar
quando quebra o mar
quando o mar põe-se a quebrar
A palavra que te digo
doída ou alegre
também passará diluída
em pequenas doses
de mentiras possíveis
dentro do próximo segundo
esquecendo-se em esquecimentos
desimportantes
diante do silêncio do mundo
que se põe a escutar
pedaços da eternidade de um só dia
distante das poças sangrando poesia
outra forma cambaleante de agonia
Passa
a minha vida, enfim
em cada texto que escrevo
e vai escorrendo em cada pedaço de muro
onde brotam as primeiras hastes de capim
passa, envolta em azul escuro,
esconjuro
a minha vida
assim, assim
Passam as abelhas
brincalhonas
em busca do mel jorrando da boca do sol
trespassado pela sozinhes da manhã
transitória e fugaz
como a ilha infrangível que se desfaz
Passam os pássaros
se embolando às cores maduras do vento
passam empurrando o momento
antes da nuvem recomeçar a se refazer
passam e se espojam na terra
Assim como passam os poemas
insontes
se embolando na estesia das palavras
antes de começarem a se desfazer
Momentos tristes ou felizes
passam
num caminhar de chuva caindo
manchada de transparências e sedes
levada pelo vento
soprando de dentro da quietude
e da metáfora sempre incipiente da vida
Passa a massa
deambulante
esperando que lhe digam com o que e como deve sonhar
com o que e como deve sorrir
com o que e como deve chorar
quando ficar, quando partir
como e quando morrer sem incomodar
Passam os rumores indissolúveis dos átomos
fusionados na bomba que se despenhará do ar
quando o homem novamente tropeçar
e entender que é chegada a hora de matar
e matar, e matar...
com requintes de crueldade e sarcasmo difíceis de acreditar
Passarão, então,
os corpos dessentidos e exangues
sombras deambulantes de uma guerra que nunca acaba
nunca acaba de acabar
(Você pode se distanciar daquele que o persegue,
mas não daquele dentro de você)
Provérbio Ruandês
O homem é o que é:
Capaz do gesto mais nobre
ou da vileza mais pobre
Fica a constatação de que beleza só não chega
para conter o animal que temos dentro de nós
e do qual não podemos nos distanciar
Passam, esgueirando-se rente aos muros,
meus inimigos com seus punhais de fogo
acordando as labaredas e os meus medos
Fica esta procura de um "Eu"
dentro dos poemas
e dos vendavais
que dizem-me
e que esquecem-me
em letras garrafais
lembranças distraída e banais
Fica na palavra um bocejo dormitando em nossa voz
Na noite fica a janela contente e aberta
vertida para a brisa e o silêncio entrelaçado
à abstração dos sentidos
Fica o alarido de vozes inquietas
fica esta multidão de saudades
esta ausência intocada
fica cada vez mais nada do nada
dentro do nada das idades
Fica,
de tudo que digo,
no poema que reluta em se acabar
esta vontade de fugir
somente sobrepujada
por esta necessidade de lutar
Imagem: Christian Schloe
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