terça-feira, 1 de setembro de 2015

Andar sozinho é o caminho que me deram


"Dizem que Cézanne
quando certa vez pintou um quadro
deixando inacabada parte de uma maçã
pintou apenas a parte da maçã
que compreendia"





A madrugada passando...
negro arco distendido
setas mirando agosto
lua cheia
roda d'água que ninguém vê
só eu e você
a madrugada não é rasa nem funda
a madrugada é tímida, rotunda
pé na poça da infância
fogueiras de estrelas
friozinho disfarçando o que sinto

Ao longe um relógio mentiroso,
ofegante,
sufocado pela neblina,
mente as horas
telhados antigos sabem os tempos,
mas nada dizem nem impõem,
a não ser a palavra escura que os recobre

Final de agosto ao redor da casa
sem que, no entanto, a ordem da vida se altere
o sol, insonte, nascerá todos os dias
trazendo os dias
soprando ventos
flores ao acaso
à tarde a noite se levantará do horizonte
dizendo metáforas vermelhas, laranjas,
cinzas ou lilases
engolindo o dia inelutavelmente
seja agosto ou seja abril
ou o nome que se dê ao transcorrer dos momentos
como sempre aconteceu
como sempre acontecerá
diante dos nossos olhos amestrados e desfeitos para enxergar
ou até que alguém,
entediado e boçal,
exploda a bomba em nome da paz mundial
ou até o sol convulsamente se apagar
daqui a bilhões de anos
para que serve o tempo, então,
se não para fazer redemoinhos no olhar
e nos cegar para a vida inefável e indefesa
que nos deram para sonhar?

Cachorros latem e lançam alvoroços no ar
que desaparecem
na capenga solidão dos morros
e das marras
nas vielas funiculares
em tantos outro lugares
onde a vida passa vazia e efêmera
a vida passa por passar

Pássaros trinam risonhos
ainda cochilam a noite
cochicham
indagam
ensaiam a melodia
que cantarão durante o dia
oculto nas folhas e nos galhos
das árvores do passeio em frente
filhotes no ninho
mamãe pulsando o inefável afeto
o mundo é um carinho quente

Os jardins dormem molhados
pela aspersão do sereno
liquefazendo a madrugada
despindo perfumes e o tempo
e seu segredo moreno

Um carro passa
levando consigo o instante
outros carros passam
intermitentes
buscam a manhã ainda longe e distante
deixando arruaças e fingidas negaças

No ar músicas cantam e cantam e cantam carências
sons afogadiços
onde ouvir o silêncio?
onde o silêncio andará de pantufas
onde andará o silêncio sem nem ao menos respirar?
(se houvesse o silêncio, mas o silêncio não há)
onde quer que se esteja crepitam sons
a cidade é um ser sangrando sons
antecipando-se à palpitação do coração
reverberando em mim
estranho refúgio sem memória
rebotalho de fantasias
um pote para as tristezas
mil ânforas para as alegrias
a cidade cochila preguiças
parolagens
futricas
enchendo o ar de sombras sonantes

As luzes dos postes amarelam a vida
olanzapínica e carbolítica
como os amarelos que amarelavam
meus pés descalços e o mormaço do sertão

A madrugada
a gaiola
aonde aprisiono e se debatem os meus poemas
que não são nada, não são nada, não são nada...
sentimentos fazendo burburinhos,
imagens flutuam na madrugada
metáfora e arremedo dos medos de um mundo antigo e vário
onde um segundo tem todo o tempo do mundo
onde o mundo pode estar por um segundo
por segundas intenções
por um apertar lento e digressivo de um botão

De vagar não se chega a lugar nenhum
onde as palavras fogem e retinem
esquecidas nas pontas dos dedos
nas teclas do computador
com puta dor
esquecidas simplesmente na dor lancinante
do verso que não se completa
transpassando o gesto e a ausência

Estou só
aqui nesta madrugada que me tirou da cama
e me chama
docemente
para falar de solidões e dos caminhos

Sou só
aqui nesta vida que me tirou de algum lugar
para onde ainda mandam cartas

Há tempos me desgarrei de tantos braços emudecidos
dos falsos sorrisos
das vozes meladas
da insídia e seus enredos
e ando sozinho
por que andar sozinho é o caminho
que me deram
quando atravessei a ponte
e o chão amalgamou-se aos meus pés
e me levou pelas estradas inamovíveis
e incognoscíveis do destino
solitárias e crepusculares
e o nome das coisas eu vou vendo devagar
a divagar distraído
acho quase tudo tão sem sentido
quanta coisa que eu não entendo
quanta coisa me dizendo o que sou
ou o que eu deveria ser
às vezes em sussurros
às vezes aos murros
às vezes em marulhos aflitos
às vezes em culpas
muitas das vezes aos gritos

Imagem: Christian Schloe 

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