sexta-feira, 25 de setembro de 2015
Zome
De batismo chamo-me José
na infância e na adolescência
chamavam-me de Zome
porque Zome?
o que vem a ser Zome?
de onde vem isto?
o que vem a ser isto ao certo?
perguntará alguém mais curioso
visto que tem sempre algum por perto
Eu vou contar,
eu explico,
enquanto o passado respira e pervaga quintais e saudades
e o pensamento olha para os dias que ficaram sob o sol
causticante
e a neblina empoeirada das manhãs
envelhecendo com a memória
silencia e se desprende deste sabor
de terra desatenta
Como quase tudo nesta vida "Zome" tem uma explicação
Quando nasci, meu irmão mais velho que eu três anos,
por não saber dizer homenzinho
chamava-me de Zominho
Zominho, Zominho, virou Zome
e assim ficou
atravessei a infância e a adolescência
com Zome sendo meu nome
A vida fez e desfez dias e noites
o circo de lona rasgada foi embora, partiu
foram embora os parques de diversões
foi-se a música oferecida de fulano para fulana,
como prova de amor e admiração
ficaram no ar sons e nomes atravessados de amores...
que de amores ainda serão?
foram-se as meninas que amei em silêncio
no prenúncio das mulheres
foi-se a rua de terra, de folguedos
os dias criando brinquedos
as noites inventando medos
a mão chamando
pra muleque entrar
pai vai chegar
entra pra casa quem não quiser apanhar
o mundo chorou e riu
cresci
crescemos eu e a saudade e os corpos mirrados
dos amigos e das amigas de então
todos cresceram
ninguém falou em saudades ou solidão
os retratos amarelados escondendo-se do tempo
Quando cresci
quem não me conhecia/conheceu
como o Zome lá da infância chama-me de José
(Bem poucos chamam-me de José
parece-me que há nisto uma certa dificuldade
que até agora não entendi: como este nome sui generis
pode ser tão difícil de ser lembrado,
chamam-me de tudo, Pedro, Paulo, João...
mas de José não chamam não)
Sendo José,
por consequência óbvia e corriqueira, virei Zé
(Mas assim como José, poucos, bem poucos, me chamam de Zé
aqui não por dificuldade própria da língua, mas, talvez, por comiseração
ou aversão aos simplórios de nomes simplórios... não sei
cada um que tire a sua conclusão
A maioria chama-me Leite,
sem perderem a oportunidade de fazerem
a famigerada, infame e gasta piadinha
quando nos encontramos no cafezinho:
vou tomar café com o Leite
ria quem puder
Chamam-me ainda de
José Leite
José Milk
Zé Leite
nos anos 80, no auge da desolação, chamavam-me de Zezão
miúdo que sou o apelido era uma aberração semântica
e uma grande piada, fisicamente falando
Hoje só o passado e a família ainda me chamam de Zome
minha irmã, por um carinho desmedido que acaricia todos os meus dias
quando nos falamos, chama-me de "Me"
Sendo José,
como todo bom José
gastei pedra
pé ante pé
andei
me arrastei
virei
mexi
remexi
fiz xixi no céu
me isolei
me degluti
regurgitei-me
vassalo que sou
um dia senti-me rei
perdi a fé
em mim, nos santos e nos homens
vi-me incréu
"E agora José?"
chorei
cravos vermelhos
pus-me de joelhos
nos desertos da mania
quando, quando e como a alma ardia
entreguei-me à poesia
estraguei a poesia
ao meter-me a escrevê-la
Ainda ouço,
em momentos de alegria, de catarse,
da velha dor incestuosa
ou nas noites de cismas ardendo em mim
ainda ouço
vindo dos quintais pungentes de liberdade
como um sussurro tardando a passar pelas tardes
sem tempo e sem idade
andando, tropeçando
caindo e levantando como um sol dilacerado
o antigo apelido:
Zome, Zome, Zome...
que me chama pelos lábios ressequidos de meu irmão
naquelas grotas, lonjuras, barro, fome
e o vento tangendo a poeira e o grito magro do sertão
ainda diz
vem pra casa Zome...
não come barro Zome...
Zome, Zome, Zome...
mas, Zome no dia a dia
nunca fui mais
nunca fui mais não
O que em mim era Zome por pura alegria
por vivacidade e vadiação do meu irmão
agora é Zome quando a saudade acaricia e alicia e cicia
os redemoinhos girando memórias nos terreiros
de instantes zunindo nos galhos secos dos pés de pau
encobrindo com a poeira os dias que não vingam
e morrem dentro de mim,
infatigáveis,
pela derradeira vez
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