após anos de terra e sombra as cigarras regressam
aos troncos sem tempo das árvores
entre nuvens baixas explicando as chuvas e seus perfumes
num solilóquio escuso
no céu é janeiro
o dia trouxe o cantochão inesperado
e estridente das cigarras
as crianças soluçando alegrias
seguem o rumor das cigarras
esperam
lata na mão
pés descalços
rindo-se da festa nesta terra vazia de tudo
aguardam que dona cigarra embeveça-se com a sua própria cantilena
lembrando finas tristezas,
açodando cantos repletos de amor e de amar
chamado ao entrelaço do namoro
fechando os olhos para o tempo e para a morte
aguardam sem nome o balbucio imóvel
esperam o momento maduro
o cheiro das cores lampejantes no vento
acoitam-se para pega-las
com as latas vazias de momentos inocentes
e cheias de claridade
encharcadas de sol
rodopiando ao vento
giros de inutilidade
assimétricos
geômetras solenes embalados pelo alvoroço
da imagem vermelha e trêmula das cigarras
indiferentes à vida de quem canta
esta sonata de paixão e de enleio
que a natureza sussurrante pôs a amadurecer
num verão que veio com o giro do mundo
como frutas maduras,
como vagalumes acendendo as noites de verde
a vida começando onde começa o mar
as vozes começando nos quintais coloridos esperando os ventos
que descem pelos telhados
tocam o chão, e divertem-se fazendo rodamoinhos
trazendo uma brisa que não se escuta devido ao som das cigarras
mimetizadas contra o tronco das árvores
desmanchadas em sons para o acasalamento
quem luta contra a sede da procriação
quem desconhece a sede só saciada com o ato da procriação
mesmo que a próxima palavra a ser dita é "morte"?
o mundo é pequeniníssimo para o vocativo dos instintos
nas tardes quentes de janeiro
o vento, ouvindo o uivo clamante
e a narrativa estridente das cigarras,
reverbera o chamado e a voz vermelha e inviolável
em redor da inelutável natureza
nas horas brancas e brandas do dia
o vento sopra poeira nos olhos ingênuos das crianças
que voltam-se para trás numa falsa despedida
desvelam, serenamente, uma ponta de choro
um desinquieto abandono
e a algaravia do alarido das vozes
já esquecidas da poeira e do choro
voltam ao canto ininterrupto das cigarras
que vai na longa barca do dia
navega na garganta inteira das sombras
e na cadência das cores andantes do som orvalhadas
estremece no que ainda há pouco era só solidão
paisagem sem caminhos
palavras mareadas e sem ilusão
as cigarras cantam... cantam... cantam...
cantam... até procriar e morrer
a tarde passa leve e distraída da azáfama
que a tinge de cores tão desconhecidas
quanto os versos que o poeta semeia
e não sabe se germinará no campo verde
dos teus olhos
no campo semeado do teu colo
de versos não lidos
versos doridos
no campo trêmulo do teu ventre estiolado
onde as letras semeadas brotam como antigamente
amor e gesto e ternura
e, muita vez, esquecimento
a tarde apreende-se da morte do dia
no mar os ventos caminham irisados pelo sol
as cigarras saem do seu ciclo de cria
do seu designío de imiscuir-se
cantam seu canto estrepitoso
buscando na cantiga antiga
a cigarra mimética da memória copular
as cigarras tornam maiores o canto
tornam maiores a solidão e o sortilégio das horas
o dia embaraça-se às lentas paredes de inaudíveis silêncios
as crianças compensam o ciciar das cigarras
prisioneira abstrata do próprio canto
com o silêncio repleto e oculto nas latas vazias nas mãos
por entre as folhas de flandres das árvores de barro
insinua-se o hálito quente do verão
o canto penetrante e ruidoso que supera o desatino
de um canto mais que fino
sustentado pela atração, cópula e morte
no ano seguinte a mansuetude mirando as árvores
girando nos antigos e longuíssimos braços do mundo
o dia sustentados,
suspenso por cordéis de marionete
trará de volta as cigarras
por ora tão esquecidas
para acasalarem e morrerem
por que este é o Pensamento de Deus