quarta-feira, 6 de maio de 2015

Antes que a sombra nos leve


nós vimos uns aos outros envelhecermos
enquanto o medo usurpava nossos sonhos
a servil submissão nos manteve cativos
e envelhecemos enquanto a vida esplendia
compraram por trinta moedas os nossos melhores dias
e, a partir de então, já não tinha mais pôr do sol
as tardes longas e graves
doíam ante a noite repentina
a luz esbatendo-se
sorvida por um antigo céu alheio
às formas, às cores e às águas
trazendo-nos à noite para a casa fechada
em frente à televisão
falcatruas, polícia, ladrão
todo dia um fanfarrão
alude à corrupção
como se isso fosse alguma novidade
como se o homem não fosse o que é
desde a sua aparição
mas, em que pese os otimistas, envelhecemos
ouvindo sempre o mesmo ramerrão
nada de original na (d)existência humana
será que ninguém se apercebe
que para comer o pão nosso de cada dia
penhora-se a alma ao cão

todavia, envelhecemos
e da semente primordial
restou um minuto pra vida
que é o que temos pra hoje
antes que a sombra nos abata
e nos leve o que nos resta
dos lábios a palavra,
da boca o gosto vermelho das tardes,
das mãos o gesto inquieto,
do olhar a ternura,
dos ouvidos a brisa ao entardecer,
da alma a poesia
e a estesia inefável
quando a lua vaza o céu
e abre as portas para as estrelas
antes que a sombra nos leve
da pele a "de(r)mocracia"
da essência a solidão,
buril das minhas perguntas
e nos resta tão pouca coisa
que a sombra um dia nos leve
nos leve a imagem do espelho
e sua inenarrável fadiga
nos leve a memória da flor
nos leve este jeito de amar
e o sossego do amor
ternuras de pássaros rente ao chão
nos leve o sussurro do vento passando
nas velas do barco que (a)morosamente
vai pela tarde quando o sol fecunda a ilha
que a sombra me leve
a antiquíssima necessidade de ser útil
estou cansado de ser útil
cansei de ser útil
Eu quero a prerrogativa
e a sabedoria de ser infatigavelmente inútil!

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