segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Sonhos de Mara

 
o céu de um domingo claro de junho
derrama os seus azuis derradeiros
nas águas regressivas do mar
o dia trouxe memórias e canções de infância
segredos e lembranças adjetivando momentos
momentos recitando os poemas que um dia fiz para você
declamando teu corpo
misturado ao meu mundo insondável
profundas águas de um mar
penumbra sombra escura
da solidão bipolar

olho, através da janela,
o inverno passando no perfume de uma flor temporã

pelas frestas das janelas entra a brisa úmida de ilusões,
fria e muito triste,
e, no entanto, olorosa
rumorosa
o vento ondula suas vestes de cetim e infinitude
o silêncio esconde de si o que de si dizia
e não responde o que tinha para dizer ao dia
o silêncio era um poema garatujado pelas folhas
que caíram e secaram no chão pisado pelo outono sem flores
que virão na primavera?
quem dera!!!
se tudo embaixo do céu é só este aguardar,
esta espera
se tudo embaixo do céu é somente este sonho vígil
estes sonhos vetustos de Mara
se tudo embaixo do céu é tudo ilusão e quimera

olho, através da janela,
o enigma do fim do dia que já vem engastado na manhã

o dia esbate-se nos arabescos bruxuleantes da tarde
a tarde sacoleja no ar as primeiras sombras
e demora-se
e esmera-se esboçando a noite ascensional
ascendendo da vertigem dos morros
ao longe, ao longe...
ou derramando-se no quintal
longa e solitária
levantando-se sobre os sonhos que trará
negaceando as vidas com os escuros estilhaços
de um crepúsculo fundindo-se à terra
derrubando com ternura o mesmo sol sob o qual eu te amava

folhas amarelas e ocres ainda caem nos lentos caminhos efêmeros
caminhos sem voz
calando palavras que não são mais
enquanto a noite incognoscível volteia acesa
lentamente
negra mão
fazendo acalanto aos quintais

domingo, 11 de dezembro de 2016

Pedaço de solidão


padeço de tanta solidão
sofro da vida
pedaço de tanta solidão
desconheço jardins
aguardo as cores
das flores levadas
em pervagantes nevoeiros
caminhando em silêncio
e embargando a vida,
tolhendo a vida,
entalhando a vida,
quimérica
ilusória
morrente
e irremissivelmente
incognoscível

Imagem: Fernando Figueiredo

sábado, 10 de dezembro de 2016

Murmúrio lento

 
murmúrio lento
a noite é a impenetrabilidade do muro
a noite é o gemer infatigável do vento
a noite é uma fogueira de ébano e prata
me chamando
nesta noite posso ouvir o mar
e me embalar no mar
                                   precário mar
e me embebedar de mar
                                       anacrônico mar
e sentir a candura gélida das espumas das ondas
e morrer-me o pouquinho que se morre a cada dia
ouvindo o mar que murmura em infrangíveis rochedos
a água e o sal escorrendo pela pedra,
escorrendo pela noite silenciosa e plena
escorrendo dentro de mim
o som das ondas clareiam
a noite fulminada pelo escuro
e o imenso cansaço irremissível dos meus olhos

no silêncio sem fuga da tua ausência as palavras inventam perguntas
quem é esta que ficou subsistente no retrato inútil?
                                                                                 fútil?
quem é esta cujo nome ondula como miragem no calor do deserto?
de quem são estes olhos que vejo quando fecho os meus olhos?
quem é esta que ficou como uma anotação,
esboço para poemas impossíveis?
já não sei
já não sei de quem são os passos tristes que andam em mim
já não sei da inquietação dos meus caminhos invioláveis
já não sei
se tudo foi ilusão
já não sei se eram mentiras
ou jardins famélicos e delirantes do coração
e suas flores fictícias
recendendo no ar este perfume dos gestos
deserdados
                   tocando de leve
                                             o passado lambendo a  minha mão

agora ficam as entrelinhas
fica esta saudade mendiga
ficam, latentes, os poemas a escrever
e esta tristeza que regressa
                                            tão quieta
pressentindo o momento de te esquecer

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Como você


o outono veio outra vez...
agora sem você
trazendo as frágeis horas aguilhoadas
articulando as longas noites e os acres dias

o perfume do vento palpita
o desamparo do tempo passando
soa lembranças na folhagem
esbatida sob um inconsútil sol de abril
no silêncio que perpassa a fulva manhã
os dentes-de-leão, levados pela aragem,
emprestam ao ar uma leveza tátil e friável
as folhas secas se debruçam
sob os níveos véus do nevoeiro ofegante
ante a beleza da manhã
e caem

ressumam os versos que a manhã decanta
nos jardins onde pululam os pardais
nos quintais onde o vento cantarola
tocantes cantigas de infância

correm descalças as lembranças
pela praia melancólica da tua ausência,
dos nossos mares,
agora exaustos,
das nossas ilhas,
agora tão doridas
dos fragmentos absolutos do nada
agora tão permanentes

a agonia das espumas
tecendo rendas nas ondas
querendo ser elegia
no prelúdio do verso
no momento infinito e rumoroso dos oceanos
acorda, suavemente, o silêncio
das praias entreabertas sob um sol latente
esculpido pela lassidão da solidão

minha dor ainda espera
o vento passar
e trazer as palavras que eu não te disse
palavras encobertas pelo silêncio envolto em ausência
palavras tão ternas como o cansaço dos corpos
depois do amor
tão leves
como a brisa que derruba a flor dócil sobre o teu nome
inesgotável como as madrugadas sem você

a poesia que arrulha em minha alma,
em minha vida,
não acontece
a palavra se esconde
entre o outono branco da página
as veredas inacessíveis da melodia insonora
e dos ideogramas de um haicai
escrito como a chuva que cai
e bebe a sede dos versos molhados pelas cores das flores

um vento absorto e distraído
se equilibra sobre a página
               [ainda em branco
minhas mãos, timoratas,
flutuam sobre sofismas
no fim das premissas
há algo vago
como uma saudade vígil
como uma noite incriada
como a tua presença
dentro da minha solidão consistente
como a angústia de estrelas sem céu
ou algo assim,
enigmático e intrigante,
tão imperecível em mim
como você

Imagem: Edgar Degas

sábado, 3 de dezembro de 2016

Outono em maio


manhã de outono
a névoa,
como um lençol de renda,
cobria os ares frios da manhã de maio
fazendo tremer o dia lá fora
a manhã sem vento,
clausura das horas,
deitou-se com a lua
e o sol,
nascendo como "en el sueño",
esqueceu-se a habitar os lilases
que, despertando, desenhavam o ar
fina adaga
que atravessava as nuvens
demoradas e cegas
e que perpassavam
uma a uma
como soluços de uma dor
como o tempo incerto
habitando dentro dos séculos
como o dia de outono
que a minha solidão vislumbrava
do outro lado do espelho
de onde alguém que eu não conheço,
ensimesmado,
me olhava para além de mim
os olhos carregados de passado
e de destino

tristes olhos
são agora neblinas

um dia sonhei que eu era
todos os sonhos de um menino
que ainda insistiam em sonhar-me
nesta manhã de maio
como os pássaros que olho
pelos vidros da janela
e são tão reais quanto o instante inominável
que passa
desfazendo o meu olhar
como a praia, singular, desfaz a onda
e o pássaro desfaz o ar na tessitura do vôo
repleto de silêncio e tempo
e de ilhas subindo da tarde rumo à noite
oscilante de tanta estrela,
constelações,
desertos onde a lua é de impenetrável  beleza
e tudo aquilo que escapa da textura da noite
é encanto durante o dia nácar
de um maio róseo e marfim

as gotas de orvalho esplendem ao sol
e rolam pelas folhas
flutuam
e caem
arrepiando a terra no imerso do toque
transparente
fica em mim este áspero aroma da terra úmida
da terra que o orvalho molhou

é maio
e me embebedo impunimente
desta manhã
das fartas cores da aurora
e do vozerio dos pássaros
às seis horas da manhã
subtexto dos meus olhos
e da tua voz tardando a se exaurir dos meus sentidos

domingo, 27 de novembro de 2016

Não há lágrimas nas flores


não há lágrimas nas flores
nem na manhã erguida em mistérios
manhã que não me pertence
há somente o orvalho
estremecido pela canção que a brisa entoa
entre os soluços dos sóis
há a insônia do silêncio
que já faz parte de mim
e da face da minha pergunta
pejada de sombras e bronze
de séculos e eternidade
lá fora o vento, em fuga,
apaga a bruma que o sol
dispersa desnudando o dia
enternecendo o momento,
secando o orvalho
na face das flores,
tecendo ausências
no longo percurso que a noite urdiu
até se dissolver na manhã lilás,
calada,
ternamente abandonada
por entre o perfume e as cores das flores
que trouxeram o dia
talhado em vapores azuis
como a neblina erguendo-se do mar
infiltrando-se parcimoniosamente pelas janelas
e pela distância que esquece a meiguice
e traz nos braços estendido
o tempo pretérito
e as gotas do sonho intenso que perpassa a minha solidão
fecho os olhos
e o sol é apenas um borrão flamejante e quente
arde o fogo do sol
na minha face de nácar
como o primeiro dia revelando o Universo
como o perfume do teu corpo ainda ardendo em mim
enquanto as folhas, caindo, roçam em mim
como as tuas carícias debruçavam-se sobre mim
como se a vida fosse apenas uma pausa
entre dois sonhos
e o nascer um despertar
dentro de um instante finito,
etéreo,
hierático,
ilusório labirinto
onde os ventos passeiam nos desertos da minha alma
e onde a minha alma é essência
a vida...?
a vida é esta eterna ausência
ausência de caminhos engolidos pelos ecos,
assim calados,
assim desmemoriados,
sem falar de ti
ausência e vertigem roubada de mim

domingo, 4 de setembro de 2016

Cintilações da tarde


as lembranças afloram dos sonhos solitários
da chuva caindo sobre a primavera mansa e terna
sobre o silêncio dos versos que só falavam de ti
sobre um rio imperecível que só me levava a ti
sobre esta névoa que encanta os meus sentidos
embriagando-me antes que eu possa ver a luz
e o vôo soberbo dos pássaros rumo ao dia aberto
pelo aroma das rosas e pelo fogo estóico do sol

nada havia nas sombras densas e escusas que preparavam a manhã
nada havia no vento onde se escondia o ermo silêncio
não havia nada senão o teu nome no meu sonho
embaraçado na ilusão ignara
teu nome que vivia no murmúrio dos meus lábios 
na minha saliva e na minha sede perene de ti
teu nome que nominava os entardeceres do meu mundo

virão inúmeras primaveras e verões antes
do impressentido crepúsculo
e da tristeza e do pranto das palavras não ditas
dos gestos guardados
do carinho escondido entre as mãos que já não te tocam
antes que a memória de setembro
traga novamente a chuva fina e inconstante
molhando as folhas e as terras que não dormem
molhando a argila,
prisão e desespero das almas,
molhando o vento vacilante

nada havia no grito por vezes muito longe,
por vezes muito furtivo
como o orvalho que começa a manhã
e comovido promete quimeras ao dia
nada havia na música das flores
quando a bruma encobria o leito avesso do rio
e suas águas confundiam-se com o ar
e na vida talvez já fosse tarde e cansaço
e no mar talvez já fosse hora de se afogar

no amanhecer,
trazendo o dia lasso e nu,
enquanto ardia o nada no frio do quarto,
vindas de ti seis sílabas cuspiram o cuspe
do descaso e do desprezo
punhais atravessando o ar
lancinantes
o frio fio das palavras ferindo,
pungentes
a dor que em mim causavas não te comovia
nem te apercebias
eras contente em tua acritude

a tristeza consumia este final de primavera
que ainda sendo flores, já era tanta solidão
frágil sépala inclinada a se esboroar
quando será dia novamente se neste momento
a noite tocou-me a pele e os sentidos tornando-me escuridão?

os segundos riscaram as horas
com cacos de vítrea solidão
as sombras arrostaram a primavera
colheram o gorjeio dos últimos pássaros nas árvores
emudeceram ninhos onde faminto de ti eu clamava pelo teu amor

uma a uma em uma outra manhã será primavera
e o estrídulo silêncio falará das cintilações das tardes
e de girassóis tão antigos quanto os versos que te fiz
todos tão inquietos e faiscantes de sussurros e carinhos
pousando,
refletidos na flor fugaz dos nossos quiméricos instantes
e nos olhos teus olhos de papel couche

escuta
a tarde que ardeu entre nós
e as nossas solidões infrangíveis e mitigadas pela luz cinza
e calcinada que entrava pela janela
deixando o gosto fechado e amargo de um novembro
que caminhou irresoluto
para o precário e tangível adeus
deixando versos escritos na insônia de cada poema
deixando os fragmentos da vida
tão lenta por terminar

sábado, 3 de setembro de 2016

Final de outono

 
final de outono
final de tarde de outono
as tardes são estes afetos irredutíveis de poesia
que podes ver por entre a pétala e o orvalho
mudos
silenciosos
insofismáveis
são o inefável momento onde os rios e os mares se encontram lentamente
e o azul do céu tinge a saudade
e a chuva cai dos meus olhos

ao longe o pássaro canta em algum jardim
à fogueira do sol
às folhas amareladas
e ao inextinguível outono impregnado de transparências
dorme nos mares o vento
e teu nome
úmida ausência
esquecimento
sombra de um passado
e de uma canção insinuada pela memória
pela noite falaz
pelas tardes de intermináveis vermelhos e violetas
de aromas de jasmins levados pela brisa
e pelos suaves passos dos teus pés em meu corpo,
em minha alma
e no nume que a alimenta

os ventos derrubam as folhas que balançam no ar dourado
esbatido pelas sombras dos galhos vergados pela espera dos séculos
e pelas palavras que agonizam escondidas nos gestos
e na fragrância fugaz da lembrança do teu corpo

o ar se enche de cegos sussurros
tépidos segredos
nada aconteceu
o amor foi tão frágil
tão frágil como pode ser frágil o carinho desolado
como uma efêmera tarde
onde rosas brancas florescem por te recordar

quando tu te fostes andei caminhos incertos
vi teus olhos negros em cada céu que emoldurou as noites
ouvi teu riso
tão diferente das minhas emoções
que nestes dias de outono esperam
as cores plasmarem flores nos jardins
o vôo do pássaro despertando a praia
e a solidão sem destino
e tudo não foi mais que um amor sem nome
escrito todos os dias
pela ternura dos meus dedos afagando os teus cabelos
pela essência dos sentidos
pelo soluço que ficou
sem explicação na poesia

e tudo vivi como o menino sozinho
que ama o outono e seus sortilégios
e seus soluços evolados nos sonhos
ama
ama a noite e o bálsamo destas noites
silenciosas e frias
onde a minha alma ainda acaricia a liberdade dos versos
que ouço
sem princípio e sem fim
nas antigas vozes
que por entre as brumas
falam de amores
e cantam
como cantam os rios
como cantam as folhas que o vento derruba nos rios
e levam consigo cores de um dia resvalante
suave
amo a noite
em cujas margens em sonho me deito
e me imolo com o punhal azul do teu nome
e recito a dor do punhal azul do teu nome
como quem diz para o mar
das terras perdidas
e dos antigos poemas riscados
letra após letra no abandono das noites passadas
e nas estrelas imaginárias
onde a dor tinha morrido
enquanto na madrugada já se ouvia
o amanhecer por trás da neblina de outono
e o som das folhas secas que suavemente
enchiam o ar de nostalgia
e de manhãs com cheiro de terra recém molhada
pelo orvalho que os anjos espargiam
no mistério
nas palavras
e nas pétalas entreabertas
dos poemas

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Desenhei a noite


desenhei a noite
com lápis gastos pela memória do tempo
dizendo despedidas e distâncias
pelas sílabas tartamudeando lembranças
pelas velhas palavras
pelos ecos dos versos de um antigo poema
arquétipos de um sempre e mesmo dilema
das mesmas vidas tantas vezes vividas

desenhei a noite
com dobres de sinos
dobres sonoros e desnudos
e o farfalhar das asas do vôo das andorinhas
carregando o instante e a tarde
molhados pela chuva impudente e insonte

com as (poucas) roupas da meretriz
eu desenhei a noite
toda cheia de cores,
sonhos,
perfume barato,
uma lua carmesim acendendo as esquinas
e com as lágrimas que se escondiam
nos olhos nus da seminua meretriz
fiz a poesia inviolável
e o silêncio vagaroso e ingênuo,
incessante e incontido,
esquecendo-se nos gestos intemporais
das mulheres sem nomes
das madrugadas insones

desenhei a noite
com um gosto travo de passado
de tempo perdido
com gosto de engano
e do sono das tempestades
dormindo no colo doce e rítmico da alma

desenhei a noite
com o sentimento desatando nostalgias
com teu nome sussurrado pelo invisível vazio
pela vastidão da ausência semeada nos ventos
e as lembranças de um sonho que já se pôs a dormir

com o pranto a me chamar
eu desenhei a noite
toda cheia de olhares,
desencanto,
quieta loucura
e com o desespero que se escondia
na hora de ir embora
na fuga dos passos andarilhos do amor
desenhei a noite
e os cenários simulacros da indiferença

desenhei a noite
com a lua inerte sobre a vastidão do deserto
e miragens trazidas pelo vento inefável
que morde o silêncio imprevisível
que antevê a manhã
e tomba
e se cala
no corpo de um céu sem perfume

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Instantes


no quintal onde as galinhas ciscavam a tarde,
que desenhada pelo grito impressivo da vida
rude e agreste,
tão igual aqueles arruados estremunhados,
apascentava o silêncio calado e mandrião
daquelas terras antigas, sulcadas e irrevogáveis
na tarde assim desenhada,
o vento dissolvia-se no borralho atávico do dia,
aflito,
sob um sol alaranjado e pastoso
desfiava os dias anacrônicos e afogueados

na janela o menino,
trepado num tamborete,
escorando o rosto com a mão,
cochilava embalado pelo mormaço,
e sonhava...
o sonho frágil e incerto
remanso quebrado da infância,
o sonho renitente que se esvai pelas frinchas da alma

o vento toma fôlego e espadaneja pelo quintal
em pequenos redemoinhos tenteadores

em algum lugar alheio ao sonho do menino
e ao borralho do dia
as meninas cantavam cantigas de roda
e embalavam,
nos bonecos de palha de milho,
os filhos que um dia terão
esquecendo nas cantigas
e no ninar dos bonecos
a fome áspera, ralheta e inelutável

o cachorro dormia pachorrentamente
nas sombras que se escondiam pelos cantos,
embaixo das árvores,
perto do poço seco,
embaixo da escada,
debaixo do tanque,
na varanda...
enrodilhado na poeira assentada
nos braços magros das tardes

no horizonte o sol adernou no céu
o suspiro da noite veio,
veio,
como uma estória antiga,
um pensamento esquecido na severidade da vida,
veio vindo,
veio vindo,
veio vindo
veio vindo de mansinho
e dormiu nos olhos famintos das crianças

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Praias anoitecidas


acordo,
penso em você
e sinto a solidão das palavras que para ti guardei
e com as quais espero pelas tímidas noites sem cores
penso aonde eu estaria
neste dia e nesta hora
se meus braços não tivessem
enlaçado a tua cintura e os teus gestos?
aonde eu estaria se meus olhos ainda soluçassem
a tua ausência e o teu silêncio
e a minha boca passasse as estações
sorvendo o mel que era a tua primavera?

ainda é abril na clausura das rosas
nos regatos consumidos pela mudez das tardes
pela solitude dos ventos
ainda é segredos na inexorabilidade do outono
que dorme sob a bruma da paisagem
aonde cantarão os pássaros afogueados que entram em mim
e a vida se aquece cheia de encanto
ainda é demora a palavra que te conhece
e que ainda vibra em minha pele
e diz teu nome junto ao instante imperceptível
que entra pela minha janela
vagarosamente
acendendo sombras irreveladas

penso...
aonde eu estaria
neste dia e nesta hora
se o amor é vasto e louco
e basta apenas um pouco
destas águas afogadas em palpitações
e entrega
e esquecimento
para transbordar como um rio que cansado acha o mar
levando o choro das faces
e trazendo o afago na volta
do marulho do tempo a passar

aonde eu estaria
neste dia e nesta hora
barco sem vela
mares demorados
areias ancoradas ao destino
olhos cansados
as mão presas ao passado inexato
que envelhece interminavelmente

não me procures
esquece-me dentro dos espelhos
dentro dos porta-retratos
lança-me ao exílio dentro de garrafas
nas praias anoitecidas
nos silêncios
fugidios das perguntas
ocultando sílabas dolorosas
cortando o ar
não diga adeus
não faça loucuras
esquece-me
que escolhi para morrer com os versos condolentes
recitados por uma imprecisa madrugada
eivada de ternura

sábado, 30 de julho de 2016

Teus olhos


sei que teus olhos
não me vêem
mesmo  quando me olham
assim
como a noite
olha o tempo balouçando nos trigais
e as estrelas que chegavam
para banharem e abrirem os mares
ávidos do teu olhar
que não nos vê

o silêncio aberto e longínquo
cai sobre o momento
teus olhos desenham arabescos
contornos de nostalgia
palavras intransponíveis
manhãs doces entretecendo
as rendas farfalhantes dos dias

sei que teus olhos
não me vêem
mesmo quando me olham
assim
com a crueldade do tempo
e da distância contida
nos fragmentos dos ventos
perpassando lentamente teus cabelos
e o perfume de flores tatuado em tua pele

teus olhos,
redondas noites negras,
tenazes a amordaçar-me o medo
são este cântico
consecutivo e indissolúvel
de espera presa ao gesto
preso a um nome
que não é o meu
teus olhos quando me olham
teu olhar já me esqueceu

sábado, 16 de julho de 2016

Eu tenho medo


eu não gosto de bicho
eu tenho medo de bicho
eu tenho medo da forma do bicho
eu tenho medo dos olhos do bicho
eu tenho medo dos passos do bicho
eu tenho medo das garras do bicho
eu tenho medo da sombra negra do bicho
eu tenho medo
eu tenho medo do ganido e dos urros do bicho
eu tenho medo da irascibilidade do bicho
eu tenho medo do bicho...

...que mora dentro de mim

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Fiz os meus dias


fiz os meus dias
como quem bebe
ainda e sempre
o beijo
daqueles primeiros anos
daqueles primeiros sonhos
daquele primeiro amor

fiz os meus dias
de amores partindo
deixando o som dos passos nas calçadas
e o meu coração
em tantas vozes caladas
em tantas caladas vozes chorava

fiz os meus dias
como quem arde
imponderavelmente
nas infinitas imagens
que as memórias trazem
na forja inelutável dos dias

fiz os meus dias
o tempo passando
misterioso e mudo
enigma de tantas dores
o solene grito agudo
entre sussurros
de insondáveis amores

fiz os meus dias
o tempo passando...
passando...
passa
imerso e invisível
em sentimentos
enganos

fiz os meus dias
o tempo passando...
passa
aos poucos
ou passa em bando
passando de quando em quando
como pássaro invencível

fiz os meus dias
de um sonho que assoma
qual alvissareira fantasia
o sonho que me toma
a flor do tempo e o silêncio
farfalhando no dia a dia
sussurrando a canção
e a brisa bebe afogueada a poesia

domingo, 5 de junho de 2016

Escrevo


há palavras que não posso te dizer
há gestos que são só silêncios
e te olham
como as memórias olham o passado
e as noites, então, demoram-se
percorrendo as sombras sobre as flores
fazendo escuros os mundos
nos quais vivo sem ti
por que a poesia que tenho
é feita das palavras que não posso te dizer
escondidas em mim
desmedidas
te desejando
e sonhando nos amores todos
como seria te amar
em tanto amor pousado na tua chegada
em segredos
em ausências
na espera
respirando o teu perfume

escrevo
escrevo
escrevo
como se escrevendo cada vez mais
pudesse, enfim,
dizer-te coisas de amar
e, então,
a tua boca pousasse na minha
e todos os verbos diriam versos
e todos os versos diriam amor

nas noites insones fecho meus olhos
dou nome a ti
e canto e escuto o nome que te dei
e tremo dentro da solidão
sedenta da tua doçura
tudo é recordação
que os teus olhos põem no meu coração

às vezes me pego pensando
o que para ti eu diria
se eu pudesse
às vezes me pego pensando
o que para ti eu faria
se eu soubesse
e entrego à noite que habita em teus olhos
o nome que para ti eu sonhei
e que enche os silêncios do meu mundo
com uma canção de uma antiga voz branca e quieta
e um sol mirando o outono
a rosa entreaberta no vermelho dos teus lábios
lembrança do beijo
que não te dei
e que é o inominável das palavras
pra sempre nesta poesia
para sempre inacabada

domingo, 29 de maio de 2016

Quem é você que me encanta?


quem é você
que me encanta?
quando entra
a porta aberta em gesto leve
a tarde te trazendo
como os rios trazem os barcos
repletos de ausências
e de distâncias até o mar
te vejo
infinitamente bela
indizivelmente meiga
meus olhos querendo te dizer poesias
dizer castas ilusões aos teus cabelos
assim como quem fala de amor
com os lábios ressumados de tantos sonhos profundos
não sei seu nome
nem sei se anjos têm nomes
não sei se vens
quando vens
e um instante é tão pouco
dentro dos dias tão sem sentido
que, sem você, fazem-se milênios
cada vez mais sem sentido
cada vez mais este mesmo devanear
não me canso de te olhar
mas, sei que não devo olhar pra você
é o que o silêncio me diz
então escrevo
ausências
e palavras que deveria te dar
palavras que são só tuas
por que meu coração só as diz quando me pego a te olhar
e as palavras não ditas sabem onde moram as saudades
saudades do que não vivi
saudade de não ter te dito
o quanto você me encanta
mas, sei que não devo dizer
o quanto me encanto por você
nada direi, então
apenas olho para a porta
por onde você entrará
como um sol inconsentido
há muito tempo a me aguardar
em tantas tardes
que poderiam ser versos tão antigos
como o sonho e o carinho ciciado da tua voz
em tantas tardes enternecidas de poemas e solidão
tecendo o tempo de te ver
e do querer na minha mão
dizer guardados carinhos à tua mão
nas tardes nas quais não perguntei o seu nome
apenas antevendo a porta que você abrirá
e por onde você sairá
levando o silêncio e o seu nome
deixando na nossa quietude, que é tanta
a pergunta que não te esquece
quem é você
que me encanta?

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Caminhos


meus passos caminham sobre as promessas,
insolúveis
sobre os desejos indizíveis
as flores, secas, em meu coração
morrem intocadas
seculares
tombam, frágeis, despetaladas pela brisa
incomensuráveis
impiedosamente
esperando que a tarde chegue
confessando a tua meiguice
pensando o amor
e o perfume da tua presença

a tua presença
canta a canção de alento
canta a canção sem palavras do vento
passando como carícia pelo jardim
tu que és, agora, a absoluta meiguice
onde busco a flor dos teus olhos
tão longes
nesta distância tão perto de mim

meus lábios falam de ti mudamente
minhas mãos sonham as tuas sofregamente
meus sentidos te desejam em meio aos nossos silêncios
cada vez que te vejo
neste agora repleto de antigamente

meus passos caminham por entre as rosas
que são tuas
meus passos caminham as tuas ruas
tuas ruas que não têm fim
por onde as tardes sem dizer nada
ensimesmadas
caladas,
levam o teu nome de mim

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Talvez hoje,,, talvez amanhã

 
o tempo cisma e medita a manhã
que apagará a madrugada inconclusa,
as palavras interditas,
cheias de areia e de mar...
o ventre túrgido da noite ainda por se acabar
eu sinto a ausência doendo como uma seta em meu peito,
o coração pulsando antigas memórias
procurando na ânsia das distâncias
momentos do indeciso choro deste medo de ser só
nesta sempre imanente solidão humana e nestes ignaros destinos
que eram névoa flanando no vagaroso horizonte
que eram o canto dolente do vento
soprando silêncios na folhagem dos bosques
que eram tantas dúvidas
tantas vozes cativas
memórias sem rostos
tantos gestos a dizerem adeus
tantos abraços a dizerem saudades
todavia, ainda era amor
ainda a mesma insonte cantiga reverberando o passado
só esta mesma lembrança que dói ao me olhar em vão no espelho insolúvel
um só exilio me arrastando escondido,
envolto em si

há nesta vida a dor inerme dos desencontros
talvez a mão coerciva e inelutável do destino
trançada ao torvelinho do incomensurável lago do tempo
há na ausência e no desencontro esta nostalgia murmurante
enquanto o reencontro e as mãos enlaçadas mitigam saudades
há palavras e promessas e gestos esperando as mãos cheias de vertigens
mãos que embalam os sonhos e trazem folguedos, segredos e meiguices
trazem o momento no qual alguém dentro de mim depõe as armas
despe-se da sombra, e, desnudo,
sem nome,
chama-me qual um silêncio inocente
num tom murmurante e suave
e calado, soluço, mas não respondo
o longo suspiro indagando o denso medo
indagando o tempo agonizando na cicuta das horas
que apascenta o volátil aroma das madrugadas
o tempo ignoto das horas solitárias espera o reencontro
ressumando irremissíveis amores
nostálgicas amizades

talvez hoje...
talvez amanhã...
talvez nunca,
o amigo venha
e venha o amor
que a solidão burilou nesta morte inerte que é a ausência
e venham os olhos adornados pela lágrima
que teima em não se derramar nos brandos braços da melancolia
da eternidade impotente do exausto adeus
da imponderável volta
e na insofismável percepção de se estar vivo
engastado em tantas outras vidas
na vida do outro
e no sorriso de quem chega,
passos cansados,
molhados pelas chuvas cheias de sombras
colorindo as tardes com mentiras cinzentas
onde incriados poemas
fazem-se de inelutáveis esperas
e do oposto nu e dos cacos impiedosos da solidão
o mistério do encontro e a meiga alegria dos dialetos
esquecem-se em rondéis,
nos dias e nas noites em que se esteve só
e tudo se recria na inefável alegria,
na inaudita alegria
que soluça apaniguando a solidão e o sonho humano
e espera-me
entre/tantos des/encontros

sábado, 21 de maio de 2016

Teus olhos dormem


teus olhos dormem
não vêem a flor que te trago
enquanto a noite passeia nos jardins
e a lua molha de prata o mistério terno e sensual
do vento passando por entre as folhas das árvores

as sombras são só silêncios
acalentando o teu sono
que, agora, é todo o meu existir
semeando a noite de memórias
que não me deixam dormir

o céu é um ramalhete de amorosas estrelas
semelhante ao teu olhar
quando do sonho em que dormes
você por fim acordar
e apenas duas estrelas
fiquem no dia a brilhar

teus olhos dormem, amada
não vêem a agonia do poeta
e o amor que o poeta
soluça
em meio ao grito e à escuridão
das noites soltas e atônitas
procurando um sentido
na areia roçando o chão

teus olhos dormem, amor
não vêem as palavras que trago
são cânticos de solidão
insolúveis
indizíveis
palavras inefavelmente cantadas em vão
palavras...
palavras não dizem nada
amor, me dá tua mão
e deixa eu sentir todos os carinhos que já foram ditos
e todos os momentos em que, sozinho, te amei

teus olhos dormem
dormem
enquanto os pássaros
saindo da noite presa à espera
trazem a aurora e o canto idílico
de uma irreversível primavera
e as rosas, surgindo em meio à neblina,
pressupõem a manhã
nascendo por entre os teus seios
por entre colina e colina

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Impossível


impossível
não abrir a noite
com os barcos tocando as areias das praias
e interrogando a tessitura das águas enlaçadas
aos ventos embriagados e inconsentidos
repetindo nas velas o escuro dos sons que incendeiam a noite

impossível
não abrir a noite
com o silêncio branco dos copos dos lírios
desabrochados para o momento
do luar perfumando os caminhos
e o sono das estrelas

impossível
não abrir a noite
com o balançar do céu refletido nas águas do mar
brandamente encanecido pela espuma das ondas
desenhadas lentamente do sal das lágrimas
de quem se pôs a chorar

impossível
não abrir a noite
com a inquietação da solidão do tempo
transido de trêmulas lembranças gesticulando
e caindo docemente sobre as horas azuladas
pela penumbra da lua que dança no quarto

impossível
não abrir a noite
com as folhas sem nome
que o outono derrubou mansamente
em inescrutáveis quintais
encobertos pela pervagante neblina

impossível
não abrir a noite
sem a imponderável serenidade dos teus olhos
sem o pássaro da noite que canta com a tua voz
e adormece em meu corpo
a saudade intrínseca dos teu abraços

impossível
não abrir a noite
sem o cansaço do fogo nu
do depois
e do suor faminto e perene
dos nossos corpos
e da canção compassada da tua ausência

terça-feira, 17 de maio de 2016

Passado


sopram os ventos
a aurora acorda sobre as flores
                         [sobre as cores
a canção encontra lembranças
a alma suspira e recorda
tantos momentos da infância
todas aquelas crianças
que fui
em meio ao perfume doce de terra molhada
que sou
em meio ao inverno silencioso andando na madrugada

o amor...
quem sabe um dia
se derramará no deserto
                         [decerto
do meu coração
e ouvirá o silêncio
se desmanchando em perdão
e os sonhos abandonados
por tanto tempo guardados
em tantos lugares incertos
em meio à solidão
virão de lugares tão longe
e se deixarão ficar
níveas flores de algodão

a noite compassadamente fecha os olhos
                                                   [e dança
seus passos ritmados de escuro
a madrugada é a derreada lembrança
de um tempo infrangível e maduro

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Quano a palavra chegar


a janela começa ali
onde o horizonte junta-se ao mar
trazendo lágrimas salgadas
pra dentro do meu olhar
trazendo tanta promessa
e noites todas sem pressa
abrindo-se bem devagar

o sonho começa ali
onde o eterno ilumina os mundos
e o sonho tem os saberes
dos meus desejos profundos

a vida começa ali
onde o amor junta-se ao amar
e o sentimento parece
água que vai me afogar
trazendo a flor partilhada
entre o espinho e o nada
entre o escuro e o luar

a poesia começa ali
onde o tempo junta-se aos mundos
onde o eterno junta-se ao mar
onde os barcos deixam as velas
como inefáveis telas
abertas e soltas pra navegar
quando a palavra chegar

domingo, 15 de maio de 2016

A tolice dos medos


desnudo
caminho estradas de cinzas
com passos de ilusão
em noites de ausência e de solidão
o vento incerto traz o passado
põe nossos instantes ao meu lado
estremeço
espero a noite percorrer-me
dizendo teu nome
recordando teus gestos
dizendo do teu toque na minha pele
onde ainda habita os teus dedos
entre lembranças
segredos
sob insones sentidos
sob a tolice dos medos

sábado, 14 de maio de 2016

Nada detêm a fera


nada detêm a fera
nem o grito estrondoso
nem o soco vigoroso
nem a tocaia  da espera

nem o latejar da veia
nem o rosnar dos cães
nem a litania das mães
nem a nossa cara feia

nem a luta cotidiana
nem os muros que erguemos
nem toda a força que temos
nem o fio da durindana

nada detêm a fera
nem mesmo o asco do povo
nem mesmo a Verdade e o Novo
nem mesmo o fogo e a Quimera

nada detêm a fera
nada detêm a trapaça
do golpe no sonho da massa
ignorando o sol nas flores da praça

nada desata a mordaça
da estória e seu patrão
oprimindo os que não tem pão
com a verborragia e a farsa

nada detêm a fera
e a sua malta vadia
apagando a luz do dia
enquanto a manada espera

nada,
nada como esta lei do cão
que anda de traição em traição
neste mambembe país
onde tudo está por um triz

terça-feira, 10 de maio de 2016

Falo do tempo


falo do tempo
e do engodo do tempo
e da posse do tempo
e dos gestos do tempo
como se soubesse do momento do abandono
do minuto sedento
bebendo os dias vazios de canções
espiando as horas nas noites inúteis
devolutas

falo do tempo
como os homens falam de si
como os sussurros falam dos ventos nas madrugadas
como o cicio pensa músicas em minha boca
e a noite fala de tudo

falo do engodo do tempo
e do desespero incessante do tempo
agoniando a incontornável existência
enchendo de ânsia e mistério
os fragmentos esparsos da vida

falo da posse do tempo
e da distância esquecida nos caminhos
sinuosamente cansados
estertorantes e tristes caminhos
longos como os longos dias perpassados de solidão
e o lamento da vida passando incontida como os pensamentos

falo dos gestos do tempo
e aqui as flores nascem
a estrela cintila
a lua dança nos ventos
o amor semeia mundos
a ausência faz suspirar
o outono quer germinar
e o sentimento balança
como as ondas do mar

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Nascentes


vesti de ausências as noites
o avesso da lua
a lágrima derradeira

adormeci
sem nome que me acalentasse
sem palavra que me embalasse

apenas o escuro infatigável
é urgente
apenas o engano do tempo
mata-me
apenas o segredo e o silêncio dos nascentes
reverberam a ternura do orvalho nos lagos de águas magoadas
apenas o teu nome pergunta por mim
no meu poema
enquanto na folha de papel
misturo letras indecifráveis
garatujas doloridas
ajuntadas com as mãos trêmulas da madrugada
enquanto as velas dos barcos
esperando do vento o grito
dentro da névoa das manhãs
são sombras brancas
gravando de saudades o infinito

Imagem: Claude Monet

domingo, 8 de maio de 2016

Estrangeiro


e agora
que a vida lá fora
se compõe de palavras longas e vazias
e o tempo é só mais uma estória na estória falsa dos dias
guardo o nada que me diz respeito
estremeço com as manhãs nascendo em meu peito
penhoro o que me restou da vida
o poema fica
fica por inteiro
o poema
o papel
e esta sensação de eu ser em mim um estrangeiro

sábado, 30 de abril de 2016

Pássaros negros


agora que se vão
suavemente
os pássaros negros
levando na alma a essência da árvore
e a solidão de arcanos invernos
agora que os sonhos adormecidos
querem despertar
enchendo o ventre da noite de signos
sobem aos céus os perfumes
e a promessa de uma primavera
translúcida
em flores ressumando cores
com a brisa a soluçar pelos caminhos
a soluçar saudades inacessíveis
à espera de um sol
e de um poente entreaberto
vermelho e estilicidado
vertendo sobre a primavera
a ternura tranquila
e insonte de uma borboleta

ao longe sinos dobram no contorno
da noite que nos falseia a nos chamar pela alma
e retrocedendo nos mata de saudades e de ausências
entre o adormecer e os sonhos da derradeira loucura
e outras comiserações que a noite
subitamente
conta ao nos fazer chorar
a lágrima salgada dos anjos dolentes
a lágrima sagrada dos anjos silentes
terna e longa como o teu nome
e a lágrima dos rochedos quedos
e debruçados sobre o mar
de onde partem inumeráveis e exiladas velas
levando nos velames enfunados os rudimentos adocicados
de uma nova madrugada infrangível
por onde a luz se derrama
fazendo da noite a manhã macerada
onde a lua se desprende
afetuosa e branda
da essência do silencioso escuro se entreabrindo
e repousa
junto a última estrela
aninhada no céu
e imersa no momento das águas 
molhando o gesto e o contorno dos portos
fazendo mover-se o raio de sol e o instante
que faz pulsar o coração embriagado do dia
acordando os barcos antes da tempestade
e os girassóis encharcados
do orvalho desatento
e dos segredos magoados pelo desleixo do vento

sábado, 19 de março de 2016

"Ao vencedor, as batatas"*

 
No domingo, 13/03/2016, segundo informação divulgada pelas redes de televisão, tivemos na Av. Paulista, ocupando toda a sua extensão, 1.400.000 pessoas manifestando-se contra o governo que aí está, pelo afastamento da presidente da República e contrárias ao Lula.
 
Na sexta-feira, 18/03/2016, segundo números também divulgados pelas redes de televisão, foram à mesma Av. Paulista para manifestar apoio ao governo que aí esta, à Dilma e ao Lula, 80.000 pessoas que, segundo as redes de televisão noticiaram, ocuparam 11 quarteirões da especiosa Av. Paulista.
 
Nestas duas informações mora, no mínimo, a incoerência.
 
Se não, vejamos:
 
Como os números não se dobram e não se cooptam aos interesses deste ou daquele grupo, desta ou daquela facção, é de se constatar, numa regrinha de três básica e elementar, considerando os números divulgados pelos noticiários da televisão, que para acomodar os 1.400.000 manifestantes contrários ao governo, comparativamente aos 80.000 pró governo, seriam necessários 192,5 quarteirões da elástica, ou convenientemente contrátil, Av. Paulista. Desconheço se a Av. Paulista é composta deste número de quarteirões ou se a conveniência das tribos em disputa é que a faz mais ou menos extensa, mais túrgida ou menos túrgida.
 
Diante de tanta patacoada eu fico me perguntando ao que se sujeita e/ou a quem se sujeita, aonde dorme e/ou com que  dorme concubinamente, o interesse nacional no vale tudo da campanha eleitoral antecipada.
 
Nesta guerra revanchista pelo poder que se instalou no país e que, como toda boa guerra, ignora o ser humano, só me resta citar Machado de Assis: "Ao vencedor, as batatas".
 
 
*O título da postagem é uma frase extraída do livro "Quincas Borba", de Machado de Assis

quarta-feira, 16 de março de 2016

Quando o amor se vai


duas ou três palavras
e tudo foi dito
dentre tantas lembranças esquecidas
na voz que fica inaudível e nua
quando o amor se vai
e o desconsolo já não é suficiente
para carregar os dias pela ausência
pela fuga pausada e lenta
ou pelo medo
do tempo que acorda como um degredo
cada dia mais cedo
cada dia mais um nada
constante como um infinito e indizível segredo
que ficou nos olhos olhando a saudade
e a distância espessa e infrangível
repleta de cantigas extenuadas
e de abraços tatuados pelo corpo
até que a noite caia junto com a estrela cadente
e a escuridão diga nostalgias
que inquietam os silêncios
intrínsecos crepúsculos dentro da gente
cingidos do inelutável gosto do tempo sem amanhã
que fica um interminável eternamente

terça-feira, 15 de março de 2016

Vivemos e morremos

 
Vivemos e morremos
em apartamentos sofisticados
mansões
nas masmorras do descaso
nas três casinhas dos três porquinhos
em palafitas
em casas de alvenaria
em casas que "ave-maria!"
em barracos brotando dos morros
em barracos dentro do esgoto
em casas de barro
que, nos momentos da mais profunda penúria,
podem ser comidas
na casa nos fundos da casa da sogra
vivemos e/ou sobrevivemos
conforme os quinhões da vida

Em dias de chuva,
em algumas casas,
pode-se ouvir o barulhinho da chuva no telhado
desmanchando o silêncio
trazendo o sono pela mão
e, docemente, colocando-o em nossos olhos
em outras pode-se ouvir o barulho dos pingos da chuva
pingando dentro de latas e bacias
irritante
atormentador
um pote carreando a tortura
e quando a pobreza extrema se funde à chuva
pode-se ouvir a chuva entrando
pelas frestas todas de todos os espaços e cantos
escorrendo pelo corpo como se fosse um manto
puxado pela indiferença e o descaso
e, no entanto, chove
num interminável desencanto
como os olhos que esperam
chover nas noites o pranto

Do morro à mansão é só uma questão de "não"
não tem educação
não tem trabalho
não tem condição
não tem compreensão
não tem compromisso
não temos nada com isso
não tem caminho nem rota
não
não
não
não tem mundo que nos queira
não tem eira
não tem beira
não tem sonho que nos caiba
vivemos a vida de teimoso que somos
agarrados às sombras trôpegas
de uma vida em tudo morta

Vivemos e morremos
olhando pelas janelas
procurando a paisagem na solidão do firmamento
e o nome das cores no abandono das asas da última ave que passa
para nossos olhos sorrirem
e para que o pensamento seja a flor brotando de dentro dos mares
em desconhecidas madrugadas
em momentos onde as nuvens volitivas
são a suavidade nos ares

segunda-feira, 14 de março de 2016

Somos todos Mo(u)ro(s)


somos todos Mo(u)ro(s)
de alma tacanha
iludidos como patos da FIESP
aspirando a merda nacional
que jorra da televisão
desfilando como escola de samba amestrada
como uma impudente e amarga piada
como a derrisória manada
rindo o riso useiro e vezeiro
que em nós tem um bocado
rindo dos rumos da vida
praia, frango, farofeiro
num domingo ensolarado
crente que somos gente
e o que nos mandam dizer
e o que nos mandam pensar
tem algo de diferente
somos um povo indolente
sepultado sob toneladas de conveniente ingenuidade
carradas de maldade
somos um poço sem fundo de apatia
engolindo sem deglutir a realidade que nos
empurram goela abaixo
pela ditadura travestida de notícia
que não deixa o circo parar
e a engrenagem girar
devorando tantas vidas e sonhos

somos todos Mo(u)ro(s)
da justiça encomendada
sentenciando mesmo antes de julgar
que o que cidadão é nada
nesta terra abençoada
onde "se plantando" tudo dá

é tão triste ver um país se afogando
em venenos sintetizados por ambos os lados
e ministrados gota a gota
a corroer o cérebro
e a corromper a vontade
e a disseminar o medo e a desesperança

somos
arrivistas
néscios
crédulos
sacripantas
hipócritas
esquizofrênicos
santos do pau oco
Marias vai com as outras
massa de manobra
bucha de canhão
boi de piranha
"espertos"
gabolas
faroleiros
cínicos
heróis sem caráter
covardes
amestrados
somos um bando de escrotos escravos
do que a mídia nos diz
e pensar não é preciso
na manada se é feliz

somos da mesma estirpe do povo que um dia
em induzida histeria
salvou o ladrão pregado na cruz
e crucificou a Jesus

responda aí quem é Mo(u)ro:
se todo político é ladrão
(isto quem diz são os Mo(u)ro(s) de plantão
e a voz do Mo(u)ro é a voz de Deus)
por que uns devem ir para a prisão, outros não?

domingo, 6 de março de 2016

Haverá um mar


Haverá um mar
onde a água volteie
e suspenda os barcos
ocultos pela neblina
espadanando a manhã
onde escorra caudas de cometas
poeira etérea
e astros esquecidos espelhem-se
atravessando
e fecundando as madrugadas ofegantes
e prisioneiras do instante Primordial
que proclamem poemas e ilações

E sobre o mar
caiam estrelas
enchendo de luzes e mistérios a noite
voem tardios pássaros
em noites insidiosas
brancas asas
contrastando com o negro silêncio
marulhado pelas ondas
e pelas lágrimas que se alongam em meus olhos
ofuscadas pela vida que não entendo

E no mar
nadem os peixes ressonantes
arrastando os momentos intermináveis e liquefeitos
desmanchando a existência líquida e absoluta das águas

Um dia há de vir do horizonte este mar
e este céu contando saudades e poesias
e o vento cantará as doces palavras
que pedirão em imolação
o beijo que aguarda nas bocas
entre salivas e balbucios de indecisão

E na terra abandonada pelo mar e pelo sal
a flor nascerá e crescerá e morrerá
sem sequer atentar para que horas são
nascerá e crescerá e morrerá
por que é o Devir dos Seres nascer, crescer, morrer

E nas paredes as sombras se erguerão do solo
e nas matas assomarão procriando montes
numa escuridão crucial e infrangível
escondendo dos meus olhos os ventos
e o canto das folhas secas
caindo na solidão amarelada
pelo pólen que cobre a terra
e que afaga os meus passos
principiando a morrer

No ar um aroma fito neste silêncio enorme
pintalgado de verdes perfumes e memórias
abraçada ao vento a solidão alardeia a ausência
o trêmulo orvalho pendula
na solitude da pétala de uma flor da montanha
atravessa a tua ausência em meus versos
que se alinham na madrugada dos pensamentos
na insônia gritando as horas covardemente
deixando no corpo este esfalfante cansaço
dos erros impudentes
e a lembrança ofegante
do roçar dos teus seios em mim
como a brisa lânguida
acarinhando com frescores
o beijo de um sol em meu corpo

Imagem: Steven DaLuz

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Somente dentro de mim


Somente dentro de mim
eu sinto que a vida,
a vida queima como agora
sem dentro e sem fora
a poesia não tem hora
nem cabe dentro do tempo
e, então,
eu fico nuvem
eu fico sol
eu fico um tanto de um arrebol
eu fico renúncia
e solidão
eu fico estrela cadente
eu fico, assim, sem razão
eu fico menino trêmulo
eu fico com medo do medo
eu fico mar silente e incerto
eu fico deserto e degredo
eu fico garrafa e mensagem
vagando em mares de azuis puídos
à uma e meia da tarde´
ou às três da madrugada
a poesia é carta ao vento
que dispensa de ser datada

A poesia me respalda a viver o meu suicídio de cada dia
e a prenunciar o que diz o vento à folhagem dos sentidos
sinos tocando e entardecendo riachos que não sei conter

Ouço, encantado,
esta estroante confusão do som dos pingos da chuva
tamborilando no telhado
quando o verso erra em meu pensamento
e as palavras se despegam
apaixonadamente
escorrem pelo espaço
onde as sombras da tarde traduzem-se,
pouco a pouco,
nas pétalas escuras
flores de uma noite
que acorda dentro de mim

Ouço, dentre o som ritmado da chuva,
este vento vivo e viçoso que traz o mar
e o fogo inescrutável dos mistérios desta fugidia eternidade
aonde minhas mãos compassivas
delineiam pendoadas linhas nas quais professo meus delírios
que afagam este cansaço
de onda arrebentando e sendo engolida pela areia
e eu fico aguardando o sal
manietar-se à cálida nudez das areias
e sinto-me livre
a caminho do esboço e da inocência das noites
pássaro cruzando a escuridão
carregando estrelas
e o sonho de ser, insistentemente,
o silêncio eloquente da remissão e da liberdade
outra vez
em tantas vidas
leves e silentes
adocicadas como os sussurros dos corpos que se amam
longas como o soluço do rio tocando o fragmento do mar
num comovente rumor
como uma lágrima de amor

Imagem: Steven DaLuz

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Sou nada


Acordam o que de pior há em mim
furam
e perfuram
inscientes
a dor sem resposta
o segredo sem tramela
a luz bruxuleante da vela

mergulho na convicção de ser tudo
que não fui
e duvido que serei
eclipse ou vento
ser humano
nem que seja por um momento
nada tenho de meu
abraço com os braços da culpa

sou nada
nunca fui nada
além de um amontoado de ossos, pele, músculos e vísceras
o que me faz sentir ser algo ou alguém é este sentimento
que me faz chorar de repente
cansado de ser adulto
insolente
prepotente
intocável
pelas tantas certezas que se me arvoraram no caminho
cansado de ser este homem
com saudade de ser menino
o que me faz sentir ser algo ou alguém
é este sentimento que me põe para dormir
nos braços exaustos de tanta ausência

há uma artéria pulsando no impasse da vida
na certeza da morte
cilada
engano
embuste
revelia contida no inescrutável da sorte

nada morre
o "fim" é um assombro inacabado
aprisionado
um nascer em um outro lado?
do nada, nada vem
para o nada, nada vai
os mundos e os homens inclinam-se para a luz
momento a momento
navegam
desenhando e contemplando um céu na varanda
prisioneiros deste universo friável
de inescrutáveis sortilégios

sinto ser algo ou alguém
na mão estendida para um amor que não vem
calmo girassol buscando o sol em olhares
fitando olhos lilases
arco-íris furta-cor
caladas estrelas decifrando a noite
decifrando o intrigante instante
que canta canções de bilhões de anos atrás
esperando que digam algo em tom azul
e eu leve comigo o teu rosto
no bergantim das saudades
que passa
nuvem lenta
punhal cansado da dor
das doloridas verdades

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Finjo dormir

 
Finjo dormir iludido
de que já não me dói quando me atiram a pedra
mas as minhas dores só param de doer letra a letra
quando a palavra assoma torta ou reta
e os meus dedos estilhaçam-se
dentro das noites
nos generosos dias
nos quais a palavra desperta e se fia
e invade os espaços
quando os pássaros pousam nas árvores
e, então, posso ouvi-los sem pressa
recolocando no ar as manhãs e os ventos
sobrepondo-se à chuva no meu peito

Nada somos para além da alma
mas há os que pensam que são alguma coisa
sábios homens
pobre homens
néscios homens
nada são além de um rebanho de restolhos
seguindo inconscientes de si
fração proscrita da realidade onde vicejam os ególatras
e onde os arrivistas se enredam

Finjo dormir iludido
enquanto o vento traz os graciosos dentes-de-leão
e a vida, então, flutua
sobre a neblina solitária
escondendo a manhã
e sobre este Nada secular
pairando sobre infinitos
que faz dos momentos um sussurro
quando deveria ser o mais audível dos gritos

Imagem: Charles Louis La Salle  

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Mentiras


Só paro para ouvir mentiras
quando as mentiras encantam o meu coração
e quando a palavra é mais linda do que o silêncio
versos possíveis ardendo entre brumas e escuridão
que apanho por aí
pego um, que vem no vento
perco outro, que cai no mato
não encontro... esquecimento
outros por aí me catam
e já nem sei o que digo
e já nem sei por que choro
meus olhos acendem silentes mentiras
minhas mãos acariciam a ilusão
da vida que assim vai passando
traquina maquinação
contando tranquilas mentiras
em meio à solidão

A palavra se eleva e aguarda
essência
semente
sentença
antes de ser dor ou prazer
antes de calar ou dizer
do amor tocando as margens
do rio correndo em teu corpo
do fogo na água a arder
antes de ser sussurro ou ser canto
antes de ser riso ou ser pranto
depois soluço
depois silêncio
depois sono cansado
das lágrimas
que ainda miram meus olhos
e não saram

Tanto faz
depois
tudo será depois
tudo uma balbuciante alucinação
miragens que vêm com a brisa
enganos do coração
tudo será mentiras
por ser irrealizado
tudo será o sonho
que por muito que façamos
apenas o roçamos
antes de retornar a ser imerso no Divino

sábado, 13 de fevereiro de 2016

O tempo e o guepardo


O tempo é ideia que se reparte
é pergunta feita ao espelho
equivocado escuro
insistente sombra
é pedra vagarosa
ou seta ligeira
atiradas
esperando a inescrutável morte
não se alteia
ecoa na cegueira serena e silenciosa que é não ser

O tempo envilece!

O tempo é do guepardo o movimento e o instante
que o leva daqui para diante
o tempo é as garras do guepardo fincadas na nossa garganta
desmanchando o frio gume do punhal entrelaçado ao destino
signo do movimento
mas não do tempo
que se aquieta na inércia e não se move
tal qual o silêncio que acontece sem mensuração
momentâneo e intermitente
a eternidade morrendo dentro da fuga e do medo
dos erros que mentem à vida
à impassível e torturante guerra das horas lentas
ao contumaz desespero das hora céleres
ou aos dilemáticos presságios
que enchem de sensações
e elucubrações
a vida
ou o que dela restou
dispersa diante dos vales íngremes e profundos
dos abismos esperando respostas

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Imagino


Senhor,
imagino campos de flores florescendo
colorindo e perfumando os caminhos
espraiados e sozinhos
apascentando a terra incriada
pela inescrutável iniquidade da chuva

Imagino, Senhor,
a pujança incendiada pelas águas
a roça quebrando milho
sob a dicotomia de um sol afogueado e noturno
fingindo passos perdidos num perdido caminhar
a colheita vagem a vagem do feijão
as galinhas e a serenidade ciscando
na inocência dos quintais
a vaquinha para dar a oferenda do leite

Senhor,
imagino crianças brincando
vendo o vento arrastar as nuvens
túrgidas de águas e imagens cognoscíveis
meninos de pés descalços pisando o barro
e a inflexão do silêncio acordado pelo sonho
crianças inventando mundos atemporais
e impalpáveis
e crianças comendo
e crianças estudando
os dentes todos, tolos... sorrindo
lembrando o antigo futuro
que se ergueu do chão sedento
angustiadamente crestado
e rachado pela soberba e a indiferença
esquecido pela sorte
onde pastavam agonicamente
a inanição e a morte

Lembro, Senhor,
das inocentes brincadeiras
(às vezes nem tão inocentes assim)
irremediavelmente irresistíveis
insuportavelmente inadiáveis
um pulo no abismo que mora em cada ser
em cada mão
que colhe estrelas
sonhos chuvosos
num sem querer
num sem razão
como o gesto da flor que pendula...
pendula...
e sem poder conter-se derruba a gota d'água
e transborda o mistério
a promessa suave e crível
da vida vicejando em sonhos
em tantos outros sonhos possíveis

Imagem: Christian Schloe

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Vaga a vida

 
Vaga a vida antiga e tardia
efêmera rosa vermelha
ramalhete de lembranças
âncora de ilusão dissimulada
sombra despedaçada
em vítreos cacos de neblina

Vaga a vida errante
com fome

Vaga o homem espantado
com fome

Vaga o cão espantalho
com fome

Vaga o grito sem origem
náufrago desolado em angústias
calado na mixórdia das dores
e na mentira dos espelhos estilhaçados

Perambulam pelo drama da vida saqueada
Crianças famintas esperando dentro da fome
crianças esfomeadas sentadas em cima da fome
crianças famélicas esmagadas embaixo da fome

Giram as engrenagens dos relógios sem memória
e da máquina com fome
mentindo para um mundo nostálgico
e suspenso
transido de medos
a nos devorar
com tantas certezas saqueadas
e um só destino
um mundo de arrivistas
um mundo de parasitas
olhando escarnecidamente para nossas lágrimas

Vaga a vida parva
mesquinha
fadada pelos instantes
sem alma, sem verve e sem nome

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

E um dia vamos embora


E um dia vamos embora
Quixote combatendo moinhos
da pretensa realidade
onde tudo não passou de um sonho fugaz
esperando pelo tempo maturar nos campos
para acontecer
tão imortal quanto a alma do homem
tão infrangível quanto este ruído eterno no ar
e a ausência do humano
pétreas sombras esperando em cada esquina
arrivistas do medo
esmagando os passos e os sonhos
fragmentos de palavras insinuadas
comovidamente silentes e doces
o gesto suspenso e dissolvido antes da forma
a esperança cega e estéril dos homens simples
o canto dos pássaros entre a neblina
pairando sobre tudo que deixamos pela vida
como quem deixa bugigangas pelo chão

E um dia vamos embora
fomos só a personagem que imaginávamos ser
personagens introjetadas
bonecos de ventríloquos
fantoches e mamulengos
não nos atrevemos
não levantamos a cabeça
para que os olhos pudessem ver a injúria
e a ânima pudesse fazer da injúria
a mitigação das dores, amparo para a luz do sol
e consolação para a alma sufocada pela razão
pelas máscaras
neste teatro onde atuamos
irrefletidamente
sofregamente
solitariamente
sem sequer vislumbrar a Pergunta
oculta na claridade
em meio a tanta ilusão

domingo, 24 de janeiro de 2016

Relógios


a eternidade não cabe
nas oligofrênicas engrenagens dos relógios
os dias amanhecem e anoitecem sem relógios
as noites seguem descendo pelas irrealidades
os dias arquitetam e arrumam as flores
e repetem com voz rouca os finais de tarde
há bilhões de anos
amanhece e anoitece
entre o claro e o escuro
entre tons de cinza
vermelhos rubros
enchendo o ar de estesia
azuis maduros
amanhece e anoitece como se respira
e se faz o mar
e a ave voa
e se faz o amar
e os barcos partem por que a maré está boa
para se partir
sem relógios
de horas e relógios nada dizem
por que nada sabem

o tempo, assim repartido, não existe
tudo falaz ficção
a que hora devemos amar?
fazer o verso?
cantar de pura emoção?
a que horas a rosa deve se abrir
úmida de orvalho e realeza?
a que horas a minha mão resvalará a tua mão...?
e então...
estarei ligado a ti para o agora e o sempre

Os relógios nada sabem do Devir de cada ser
o tempo rói os despojos das vidas
matraqueando incessante
de dentro do fosso falacioso das horas

segundos
minutos
horas
não fazem falta
dias
anos
séculos
milênios
sucumbindo nos calendários
não fazem falta
nada dizem
pura elucubração mental
só metem medo
e nos afogam em angústias
se tudo é imprevisível segredo
miragens, catarses
engodos que os dedos jamais tocarão
jamais contarão
por mais que imploremos
mas, todo dia e toda noite são uma esperança
de que o gesto seja feito
pelo simples fazer-se do gesto
guardado em nossas mãos
em nossos corpos
alheio ao tempo falacioso
antes de a paisagem se apagar calada
e partir devagar na canoa que nos levará
dentro do silêncio de casa trancada
posto que tudo antes de ser aqui fora
já é aqui dentro
aqui fora não há nada...
não há nada