quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Ano novo? A gente é quem faz


O que há de novo no ano novo
se não o mesmo e velho desejo
de se ser inteiro mesmo depois da queda
de se achar no vazio dos caminhos escuros
tocar a vida com as pontas dos dedos
e dizer,
mais que dizer,
apossar-se do encanto infatigável
de que:
"Esta vida é a tua vida"

O que há de novo no ano novo
se não este sentimento indefinido e indefinível
que faz do instante o encontro imperceptível
ave sustentando ventos
vertigem
vestígios de passados
palavra se aproximando
e repousando entre os lábios
a dizer:
"Esta vida é a tua vida"

O que há de novo no ano novo
se não as águas em fuga do rio ausente
o gesto a afagar a solidão das faces
a luta de se procurar e de se inventar dia após dia
o amor desenhado em fogo
as noites esperando pelo silêncio dos grilos
a lágrima dizendo:
"Esta vida é a tua vida"

O que há de novo no ano novo
se não a vida nos dizendo:
"Esta vida é a tua vida"

*Como se as sílabas te queimassem os lábios. *(Mia Couto)


Que do ano que se inicia saibamos fazê-lo realmente novo!

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

O natal devia ser todos os dias


O natal devia ser todos os dias


No ano temos 365 dias

Todos os dias pedem carinho, afeto, amor, atenção, respeito a si e aos outros

Todos os dias a vida pulsa e a vida se move

Todos os dias a vida ri e a vida chora

Todos os dias há a fome e há a sede

Todos os dias há a incerteza lancinante da existência por cumprir

Todos os dias há um imenso necessitar do outro

Todos os dias os dias nascem trazendo consigo a luz e a possibilidade de se fazer diferente de como se fez ontem

Todos os dias os dias morrem desfazendo-se na canção lírica dos grilos emudecendo o silêncio

Todo dia a vida nos dá uma nova oportunidade de sermos HUMANOS


BOAS FESTAS A TODOS!!!

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Poesia, o amor posto entre aspas


na palavra que perdura
ou em outras se desfaz
desdizendo o silêncio
e esgueirando-se,
ardendo,
ou em cinzas já desfeitas
mimetizam-se sonhos imarcescíveis e voláteis
apartando a saudade do tempo que passa oscilante
na barra onde os barcos são velas que amanhecem
numa bêbada solidão
consumindo-se em incoercíveis lembranças e desvarios

nuvens,
mansas nuvens,
banidas e tangíveis,
contornam os montes vadios,
vazios,
conspurcando a realidade
os sonhos gritam ruínas
para a paisagem sem eco da eternidade
flanando como folhas ao vento do fim da tarde
ondeando em círculo nas águas
que se abrem nas cintilações translúcidas do lago
volteando o tempo que passa sem alarido nem medos
das madrugadas caminhando
para os arvoredos falando as mágoas dos ventos
cerrando os olhos inquisidores das janelas insones

despertar e sublevar dominados sentimentos
deslindar enigmas na compreensão lúdica do ser
esperar para ser flores
ou o passo esperando a ponte
ou a ausência do caminho
como esperam algumas palavras para serem poesia
opalescentes como serafins
ou uma justaposição de nefelibatos fonemas
sendo a poesia o amor posto entre aspas
o fator em evidência
sendo o leitor
a condição de dois seres
o silêncio
e o espelho desperto refletindo madrigais

no meio da noite insonte
poeta e leitor, então, se encontrarão?

domingo, 20 de dezembro de 2015

Fio e desfio


fio e desfio
e desconfio de tudo
procuro a ponta da meada
desmancho nós
atiro tramas ao vento
ruídos
que o vento derruba
contenho a fúria
calo-me
morro a morte mais silente
morro a  morte ressurgida
nos fios que fio
para a crisálida da minha vida

inquirem-me:
noites de chuva
dolentes
os girassóis
girando em meu peito
buscando um sol igual a ti
lembranças
a tua língua
o teu corpo nu
o sonho tátil
as noites longas e agônicas
os dias abrasados de sombras
confrangendo o peito
e a alma
a solidão irrompendo das imagens na janela
trazendo o marulho de um mar repetido e complacente

o barulho das figuras nas águas
cantarolando no telhado de telhas de barro
hoje parece somente um instante
que se desmanchou no opaco arquivo da memória
comoção
unção
mergulho
fluído
medos e segredos
a brisa lenta e fugaz
a mão estendida
dissolvida
esquecida no sentimento
num arder sem nome
oculto
no gesto que adormeceu
frágil e humano dentro de nós

escrevo, nesta tarde, por que é chuvas
e chuvas fazem sentir
e prescindem do pensamento
e assopram
e ateiam fogo a tanta palavra esquecida e ainda acesa
sob as cinzas de tudo que não te disse
e despencam águas de melancolia sobre mim

fio e desfio
e desconfio de tudo
procuro a ponta da meada
desmancho nós
embebedo-me de ceticismo

o que em mim pode ser de alguma serventia?
o que em mim é peleja e agonia
memória e solidão?
o que em mim ainda é possível
se tudo em mim é esta opalescente ilusão?

sábado, 19 de dezembro de 2015

O peregrino


o vento passa entre as eternidades abertas
tocando os adros de um tempo ecoante
rio dissipando a semovente bruma da aurora
no ar o perfume verde da relva molhada pelo orvalho
e trançado pela ausência calada e infinita dos pássaros
nos caminhos o silêncio insolente e infrangível
apascenta o dia macio

as horas nada sabem do firmamento
o giro incessante inventa o engano do tempo
segredos das palavras encantadas e esquecidas nos lábios
o assombro e o desassombro da vida
e a humildade atenta às verdades

um pássaro recorta a aurora
caminha no céu a última estrela
no rumor solene da metafísica dos astros

árduos e longos podem ser os caminhos
para se voltar ao lar
onde a inocência busca na elisão das flores
na metamorfose das crisálidas
na sapiência eloqüente das pedras
tantas outras possibilidades
sem um tempo inventado
a oprimir e massacrar o ser humano

o peregrino lê nas estrelas exílios e possíveis caminhos
para encandear a vida pela escuridão indefectível
até o inefável lar
não vê horas
vê sois brilhando
mares calcinados
tardes cansadas
reminiscências
figuras percorrendo o céu escuro
astros singrando o firmamento
figuras que a espera e a nódoa silenciam
sem que se diga dos caminhos percorridos
sem que se diga das trilhas pervagantes
que o farfalhar das folhas secas
dizem gravemente e devagar

Imagem: Fernando Figueiredo

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Estrelas de tule e organdi


aqui,
onde repousa a impermanência
nada é minimamente cognoscível
rugem vultos pressagos
uma alucinação inteligível
para se orientar
enquanto a dor semeia o tempo
dos rumores nas águas convulsas dos destinos

palavras ditas ou ouvidas ao acaso
acostando-se ao poema
para se recitar quando se estiver tomado
de metafóricas fantasias
incendiando o vento no ocaso de algum dia
e o mundo a tremer ao ser inquirido
a mente mentindo
tornando o mundo fuga e medos
falaciosos navios navegando
em mares de poeira, cinza e segredos
esfacelando os oceanos suspensos
criando ilhas purpúreas,
rochedos encantados
e melodias embriagadas que soarão
como o mergulhar de uma pedra atirada nas águas
fazendo das marolas concêntricas
a Idéia que pressinta a chegada e a partida dos ventos
tonteando os redemoinhos de tanto girar
em espirais navegando nas águas até se acabar
retorcendo o instante empíreo e absoluto
até que tudo que fica em pé
e tudo que se arrasta
e tudo que voa
e tudo que nada
prescindam do aqui e agora
antes de serem friáveis ao toque
pois tudo que É
é Uno
e fora do pensamento nada há

o final da tarde girando os girassóis
entre os vermelhos e os amarelos
nos quais se desfazem os dias
soa esta canção desmedida do vento que reverbera memórias
e traz a noite lentamente
girando o mundo mais uma vez

a lua sustentando a noite com sonhos e estórias
o dia desvanecendo por detrás das montanhas
acossando o abismo do tempo
e o plangente urdir das horas
engano dos homens
antepostas aos seus passos e ao que ele é
infinito e irrequieto segundo
sortilégio de sopro, suor e sêmen

estrelas de tule e organdi
acendem o céu
imenso e fugitivo dos pássaros
distendendo-se pela tarde opalescente
fazem a noite rediviva
para que eu durma acalentado em teu ombro
pelo marulho das ondas
roçagando um pequeno barco à deriva

domingo, 6 de dezembro de 2015

A vida é


A vida é este tolo lutar sem fim
Esta alegoria estóica
O mar à espera dos gregos
A poesia de Homero
Este fogo aceso e indômito queimando os barcos da volta
A pedra e a montanha de Sísifo
Ou a metáfora das sagradas escrituras
O crepúsculo sobre o mar
A tarde submergindo nas águas
Ou, simplesmente, a espera de um rio
tomando em seu leito a distância das manhãs
levado pelo Éon dos sentimentos
que viesse a molhar
as claras sombras das auroras
e envolvesse em névoas as pessoas
e a chama despida dos sonhos
e os fizesse vicejar
ondulando entre estrelas
da noite que ainda não se foi
e sóis exaustos e abrasadores
da manhã que ainda não é

A vida é o eterno amor inconsentido
centelha acesa dentro do agora
A carícia eterna e madura
dizendo silêncios
A ternura intocada da noite
Os lençóis
ao relento do cansaço no fim
O choro doce da água no deserto
A brisa amena e porosa
Uma janela entreaberta
entre os sonhos vagando no quarto
e as flores colorindo os quintais
Esta sensação doída e indistinta de finitude
A intuição da Liberdade
negada,
subjugada a cada instante
A vida é agora e avante
Os espaços vazios da Verdade
As covas vazias onde se semeia a morte
que nos vai levar um dia

Enquanto o homem semeia guerras
e vocifera aos quatro cantos
a sua indômita arrogância

terça-feira, 24 de novembro de 2015

A palavra


a palavra
não a espera pela palavra
rito de barro e aflição
murmúrio e essência
finita em número
infinita nos sentidos
e no sentir
leve ou áspero
ranhuras a deglutir o inominável
que vem do homem só e canhestro
e paira sobre o dia etéreo
e intangível
e a noite infinita
e incomensurável

ah! se já não fosse tão insuficiente pensar
e tão indominável sentir
jamais sentiria a saudade que sinto
de um perfume em um aroma de um outro tempo
jamais amaria o amor que eu amo
neste canto silencioso
anteparo e aresta
do meu olhar
e desta comoção que por vezes me toma
diante da inquietação de ser homem
incerto e estranho

jamais me compadeceria da imagem acostada ao espelho
este outro e mesmo eu
desviando os olhos de mim
como quem toma o mundo pelas aparências
e as noites pelas vozes que me dizem os sonhos

jamais escreveria o desespero que escrevo
jamais choraria as lágrimas algozes
nem em tempo algum as secaria com as costas da mão
sem contestação

sábado, 21 de novembro de 2015

O instante redescoberto


o tempo
a demora
a ausência
o instante redescoberto
enquanto a flor brota e aflora
enquanto aguardamos os medos
enquanto a noite canta segredos
enquanto o coração incendeia os barcos da travessia
a lua acontece
os corpos se abraçam, amantes
a estrela pulsa, cai e queima
a pergunta permeia os ventos
o grito distende-se, cansado e alheio
repouso de velhas palavras, distraídas e indizíveis
e o murmúrio,
este punhal pontiagudo dentro de mim,
sem que ninguém ouça,
acorda o silêncio
e a inexorabilidade da vida
e da canção e do giro do mundo
ao redor da estrela

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Madrugada


as madrugadas modulam
lentas e plangentes
quando querem ser silêncios
o regaço passa breve e contente
sonhando a noite imprecisa
deixando o sussurro de sombras fragrantes
nos lilases da aurora
o vento passa e chora
e esconde-se nas folhas sonolentas e caladas
esconde-se no transmutável tempo
às vezes célere
às vezes vagaroso
sempre enganoso

sobre mim o céu escuro
sob o céu a madrugada
já não há quase ninguém nas ruas
nas ruas não há mais quase nada,
dormem,
à luz lenta e intermitente da vigília amarela que cai dos postes

sou o que sinto
minha alma não tem nome
nem imagem no espelho
minha alma tem todos os tempos
do que já fui
do que sou
do que serei
silêncio incendiado
urdido instante a instante

esqueço o sibilar coercitivo do vento
só o orvalho ressuma ternura nas flores
a aranha tece com sanha a sua teia
a noite arrasta a vida escuro a dentro
sustenta as cordas da rede
que geme inquieta

calo o livro
que já dormitava em minhas mãos
cesso a colheita
prescindo da escolha
a última palavra escorre da folha
e borra os meus dedos sempre inscientes

repousam a casa e o rio
só o desconhecer-me
devora a hora indescritível

fecho os olhos
a escuridão é uma canção
e, então,
danço a lonjura das palavras
tendo por dama a solidão

domingo, 15 de novembro de 2015

Paris, quem faz as guerras II?


"Pianista toca "Imagine", música de John Lennon, à entrada da sala de espetáculos Bataclan"

Emocionante!

Comovente!

Mas e daí?

Nós nos emocionamos

Nos comovemos

Mas, não entendemos nada do que a letra da música diz

Ou se entendemos esquecemos ali adiante

e a palavra não se faz ação


Imagine (letra traduzida)

Imagine não haver o paraíso
É fácil se você tentar
Nenhum inferno abaixo de nós
Acima de nós, só o céu

Imagine todas as pessoas
Vivendo o presente

Imagine que não houvesse nenhum país
Não é difícil de imaginar
Nenhum motivo para matar ou morrer
E nem religião, também

Imagine todas as pessoas
Vivendo a vida em paz

Você pode dizer que eu sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Espero que um dia você junte-se a nós
E o mundo será como um só

Imagine que não há posses
Eu me pergunto se você pode
Sem a necessidade de ganância ou fome
Uma irmandade dos homens

Imagine todas as pessoas
Partilhando o mundo

Você pode dizer que eu sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Espero que um dia você se junte a nós
E o mundo viverá como um só


Emocionante, né?

Comovente, né?

Mas, e daí?

Apesar da simplicidade e da clareza da letra há em nós um ser irracional e insensato que não nos permite vivenciar o lado claro da vida e a simplicidade de uma música.

Vinicius de Moraes disse, num trecho do seu poema "Elegia ao primeiro amigo": "...preciso ser delicado por que dentro de mim mora um ser feroz e fratricida..."

"Se você pede chuva tem que aguentar a lama também"

Enquanto isto os pianistas vão tocando em frente aos Bataclans sensibilizando superficialmente aos passantes e ouvintes.

sábado, 14 de novembro de 2015

Paris, quem faz as guerras?


o tempo instante início da bomba
é o mesmo tempo instante do seu fim
quem passou ensandecida foi a intransigência
quem se moveu foi a coação enganosa
de um ponto a outro
onde poderia caber vidas inteiras
cabe a morte
onde poderia caber
um poema
discorrendo a eternidade sem palavras
articulado no imponderável
do tempo e da sua inexistência
contumaz e genuína
cabem cicatrizes
e o gosto acre da loucura humana

a intolerância é medida do homem
escalavra o homem
com seus delírios de poder e superioridade
e suas bombas
e suas armas
e suas guerras
e seus deuses
e seus lucros
e sua empáfia
e seu descaso pela vida

pra quem não sabe
as armas existem
e matam
a bomba existe
e mata
a bomba é triste
a bomba é a amargura do homem
a bomba é a pedra na mão do homem que não cresceu
a bomba é o bullying dos senhores da guerra
a bomba é a fome e o lucro do ditador
a bomba aqui é terror
é o confinamento
é a incoerência
a bomba lá é honor
arquiteta da morte
sentada nos gabinetes
olhando o mundo pela cegueira dos países
onde a idéia de uma Babel impera
sobre a idéia de uma mesma e única Nação
semeia discórdia e ruínas
alimentam ódios e preconceitos
e continuam,
qual meninos arteiros,
atirando pedras (bombas) uns nos outros

a bomba de tanto cair lá
como um animal vicioso
fez-se verdade
na vaidosa e linda noite de Paris

é triste
tudo é tão triste
nesta sandice supra-animal
onde o humano queima-se nas fogueiras
dos sempre velhos e mesmos atos

a bomba não morreu em Paris
por que foi assim que o homem quis
por que o homem matou um dia
e não pode mais parar de matar

é triste
ver esta noite de novembro dissolver-se
e tornar-se vermelha
é tudo tão triste
como o lamento de quem
chora sobre o ódio
que ativará outra bomba
em Paris, Síria, Nova York,
ou em outro lugar
onde a covardia e/ou a bestialidade mandar

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Os sonhos brotam


os sonhos brotam nascem e florescem
os sonhos derramam-se
ou caem
e rescendem
os sonhos minguam
ou crescem
imagens tardias e leves
germinam,
anoitecem,
tateiam lembranças
convulsos ou brandos

o homem embosca e colhe sonhos
e os depositam no chão
palmilha medos
enganos
presentes nas névoas soluçantes de ilusão

os sonhos instigantes,
maduros de eternidade e devir,
debicados pelo pássaro
que nunca canta,
que nunca alça vôo
e cuja plumagem
esmaece enquanto o tempo
frágil e inconstante é solidão
são frutos da mais delicada tessitura

os sonhos instigantes
gotejam em cores abandonadas
e em fuga
memórias da vida atemporal
que se desfazem em desmesuradas noites
molhando o oceano envelhecido e hesitante

mas o mar,
há tanto tempo,
foi-se embora daqui
na penumbra acordada nos olhos sem memória
onde o menino que fui
sacode redemoinhos
e olha-os a caminhar rodopiando pelas ruas de terra
varridas pelo vento e a imaginação
permanentes barcos de fogo em fuga
sob a sombra de tantos tempos pousados
nos galhos secos das árvores
e nas sombras secas debruçadas sobre as águas
imerecidas do meu verso incipiente

a vida gorgoleja poeira
os passos, rumorejantes, já foram embora
depois de cavar as covas
guardando a semente para quando vier a chuva
e trouxer as noites cheias de sonhos
que a minha alma disser

sábado, 31 de outubro de 2015

Noite sem nome


calo,
o grito entreaberto
o gesto apartado
o amor esparramado nas águas,
escorrendo nas pedras,
pisando a madrugada,
está sublimado em tudo,
em ti,
que os meus dedos possam tocar,
minha boca possa beijar,
que os meus olhos possam pensar
e desesperar pois é noite
e ainda és sonho

os dias condenados ao exílio

a noite asilada,
esbatida,
sonha
e não demora a chamar-me,
mas chama-me excluindo o amor

em algum canto de mim nossas mãos,
repousam entrelaçadas,
também dormem
o instante e o tempo ardem
o instante e o tempo tem o teu sabor
e o ardor
de antes de haver o tempo
antes da incerteza do instante
perpassando os momentos trêmulos
e silenciosamente indeléveis
na mansidão dos dias breves
e absortos

as canções feitas de enganos
vadiam em mim
ilhas desgarradas,
ausentes,
vésperas de mares,
ventos inacessíveis

alguns versos
são azuis
e não se calam
e é preciso que não se calem
para dizerem a ternura
e a delicadeza negra dos teus olhos
dentro da nossa noite sem nome

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

A solidão dos meus medos


a solidão dos meus medos
e das palavras que digo
onde me escondo
na madrugada antiquíssima
abrem-se  ao canto dos pássaros,
seguem os barcos
despertos pela luz da aurora

a manhã perfuma os fogos
acesos nas tuas noites
e ainda queimando a te procurar,
as tílias balouçando no tempo
são alento,
a luz diluída debruando a aurora,
emoldurada no vento,
sussurra e cicia
enredando um novo dia
e os dias inventam luzes
e claridades
inventam ilusão e alegria

os pássaros,
indiferentes aos relógios,
sem horas com as quais lutar,
cantam simplesmente por que nasce o dia
por que algo dentro de si os faz  cantar
e os faz cantar irrompida e desatada cantoria
e os pássaros inventam  cantos
eternos de melodia

a aurora
alta,
infinita
e primitiva
descerra escarlates
jardins sem nomes
aninham-se as lembranças que a noite trouxe
na manhã ainda embriagada de sono
as cores todas da melodia das luzes
pousadas na ponte
ainda escorregadia de sereno,
abstraída sobre o lago inerte
sarapintado pelas folhas que caem
antes que os olhos as sustentem
nos galhos que pendem
carecendo do silêncio
que não há,
nunca houve,
nunca haverá,
e a aurora inventa lagos
e a brisa sobre os lagos
e nos lagos águas trementes

a manhã sente e entende os ruídos
da claridade,
da terra afogueada
sente as centelhas do milagre
e não precisa sentir mais nada
para que o dia separe-se do escuro
encobrindo os passos rumorejados da madrugada
e a manhã invente os dias
e a inocência do azul no céu
como um milagre
que se espera
e se alcança
algo ou alguém
chorando inventa
a intrincada esperança

sábado, 10 de outubro de 2015

O homem que eu nunca consegui ser


vai caminhando,
cada vez mais para longe de mim,
o homem que eu nunca consegui ser,
os sonhos que adormeceram
no mundo das idéias
nas noites de vigília e sofreguidão,
incontáveis sonhos inanimados,
perpassando a imanência da alma
deixando na minudência dos dias
a desconfortável sensação
de olhar para mim,
olhar em volta,
e não me ver
e nunca ser
e ser o outro
e ser o mesmo sempre ser
em tanto tempo consumido
deixando a lágrima como forma
inominada e infinita das quimeras que grassam
sendo os dias claros e sem segredos
sendo as noites dos escuros mais profundos
dentro dos mais sustidos medos
dentro dos mais longínquos  mundos
que afloram em mim
pássaros voando ausências
e memórias do não ter sido
reminiscências de vidas que não vivi
partes de mim,
cisma e mistério
atravessando os segundos
sendo que os olhos que tenho
divergem e devoram as imagens que contemplam
são estes olhos que por vezes olham inertes
para o que ainda não tem nome
ou cujo o nome se perdeu
quando a primavera debandou os pássaros
ou os gestos intangíveis lhes consumiram
e, no entanto, ainda inunda a alma de comoção
e de estesia

o homem que nunca consegui ser
era muitos
o tempo passando era vário,
a solidão invisível,
indizível
e as lágrimas do homem que eu nunca consegui ser
eram muitas e prolongadas
e com o tempo vão secando no rosto
do menino medroso que sempre fui
maduras, convulsas, desesperadas


Imagem: Ramiro Ramirez Ramirez

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Miséria e fome


Senhor,
viestes nos procurar
a mim e a este cão que atende pelo nome de Fome
trouxestes alento para as nossas lágrimas
trouxestes o cântaro cheio da Tua Verdade
e da Tua comiseração

da latência das Tuas palavras
inventa-se a paciência e/ou o desespero
escorrem os momentos para o fim
e o fim é a catedral onde a neblina apagará os círios
que consomem os dias e as noites
inelutavelmente

o homem deglutindo a fome
o cão salivando a fome
a criança aprendendo a fome
subsistem por imposição da vida

crianças famintas arrostando a fome
crianças no lixão mimetizando-se com os urubus
crianças carcomidas pela estultice dos discursos vãos
crianças apedrejadas pelo egoísmo inaudito
crianças pedindo nos semáforos
crianças na prostituição

dizei, Oh! Senhores chefes das nações que sendo várias
deveriam ser uma
que almoçam e jantam e arrotam e jogam o sobejo fora
os campos semeados e as colheitas são insuficientes?
a semente, se mente e não vinga e se vinga e se morre?
a miséria é algo tão distante, insólito e obscuro
sem direito sequer a um osso para o cão, a um pão duro?

sentados diante da emoção incomensurável
da mansidão de uma aurora
molhada pelo sereno que o vento traz
e acordado pelo sussurro dos deuses,
olhando para o que acumulamos,
um dia pressentiremos (será?)
que morrer de fome, na lassidão da miséria
é a quinta-essência da indiferença
açodando os círios acesos para que se apaguem
mais celeremente todos os dias
sem atentar que tudo que É É eternidade

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Jardim de folhas secas


deito-me embaixo da árvore
e deixo-me ficar,
insonte,
criança,
olhos cerrados
entre as folhas e o tempo
entre os sonhos levitando lembranças
e os pensamentos que a luz e o calor do sol sugerem,
ilusões,
divagações,
o nada movendo-se,
esperando que os sonhos amadureçam
simples e comuns
doces como só acontece ao sonhos serem
sem palavras que os digam
percebendo o mundo pelos sons sutis
e pelas sensações que fazem da vida o Mistério
sem as certezas que os olhos impõem à alma
sem o tempo a mover-se na distância
entre os momentos

deixo-me ficar
criança
cego das muralhas do mundo
atento a mim
e ao que em minha alma arde do sol
ouvindo o sussurro
inundado do remanso do lago
e das águas amorosas fugindo das margens
molhando o azul
do céu que separa a vida verdadeira
do cárcere do tempo obsoleto
levando nuvens sossegadas,
lembrando a modulação de tantas vozes
do vento nadando nas folhas
marulhando o silêncio
de coisas encantadas
onde pássaros,
no final do dia,
vêm cantar e beber
o sumo dos sonhos escorrendo pelo meu peito
e espojarem-se na demora da poeira acesa
de tantas coisas intricadamente caladas
e breves
que caem e secam
nas sombras das árvores
no jardim de folhas secas

terça-feira, 6 de outubro de 2015

O passado todo está aqui


o passado todo está aqui,
neste momento,
o antigo desejo desperto
a flor que se abre
e que esteve sempre aberta
nas coisas visíveis e invisíveis
nos cheiros resvalando à melancolia
na desordem das estações
na neblina adormecida sobre os campos
adormecidos
na solidão eternizada
dos anacoretas
e as descobertas
e os segredos
dos seus solitários mundos
naquela dor olvidada
e que renasce e nos consome
na face tranquila das lágrimas

o passado está todo aqui
em cada escolha que faço
desmanchando o homem que sou
e seus ideais
e dos retalhos finais
refaço-me
percorro novos caminhos
tão antigos
pressentidos e antigos caminhos

ainda habita em mim o menino que fui
(que sou e sempre serei)
que sonha no passado
e fala no presente
dentro do futuro do homem que sou
e nos sonhos vislumbra o porquê
que me anulam
e lanham-me
e, lanhado, entro no mar
e banho-me longamente de água e sal
enquanto a vida vai dissipando-se ante o engano
dos percursos nos quais me enredo
e me dissolvo como a pedra se dissolve
lenta e inexoravelmente
deixando na vida esta poeira
onde os pássaros vêm banhar-se
nos finais de tarde
espojando-se na mansidão da escuridão
que se desce tépida e lentamente sobre a vida
que vai trespassando e escondendo o mundo
a mostrar-nos a meiguice da noite cálida
tão antiga
e tão presente nos pulsares e nos quasares
nos astros que não dormem jamais
e que vão dizendo a vida
aqui e agora
de todos os anos pra trás

Imagem: Claude Theberge

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Vem de onde?


Vem de onde
esta escuridão amara que sufoca
e pára as horas?
Este medo
dos medos que não tremem
e que não fogem?
Esta fera que me espreita
e assoma entre as imagens do espelho?
Este golpe seco, intermitente
que me atinge e que me acorda
em meio às purpúreas madrugadas?
Esta angústia
fatigante do passado que não se cala,
                                               e geme
                                         e desespera
nesta noite estendendo-se sobre os telhados
pisando as tristezas das ruas
apreendendo-se nas minhas mãos prisioneiras
destes gestos tão antigos,
esperando
os pássaros retornarem aos ninhos
e aos galhos sonolentos
desprendendo
sombras amarelas
sobre os olhos ondulantes dos lagos

Vem de onde
este canto
que se existiu,
já não existe?
Esta lua
oblíqua e negra derramada nestes ventos?
E a ausência inconcebível deste mar?
Vem da onde esta voz de sons tão cálidos
esta melodia de ilusão
que canta nesta noite
aprendendo a ser noite em teu olhar?

Vem de onde
esta ilusão em que vivo
neste inacabado
de mundos dentro de mundos?
Estes passos inseguros
caminhando as distâncias das quais falam os ventos
que me levam pelos céus manchados de travessia
onde o ar
encrespa as águas,
tilinta,
esquece e asfixia
onde a palavra primordial estremece
e se expande
como poente e moradia
da luz do sol depositada
na paisagem ao redor do fim do dia?

Imagem: Christian Schloe

sábado, 3 de outubro de 2015

O sonho irrompe


o sonho irrompe
nas madrugadas
trêmulas
de imagens tardias e leves
germina, anoitece
tateia lembranças,
esquece
o sonho derrama-se ou cai
e rescende
como fruto maduro e doce
o sonho
convulso ou brando
se desnuda
em outra clara realidade
e se move
trazendo
das ilhas
que se desprendem dos mares
calmas ou aflitas
a sombra do humano espelho
imagens que nunca vi
aonde o tempo ainda não chegou
e os caminhos circundando o mar
não guardam os passos das pedras
nem o amanhecer dos gritos
pendoados no ar

mas o mar,
há tanto tempo,
vai-se embora daqui
na penumbra infrangível
e encantada das tardes
levando o dia,
levando o dia,
até que a noite cresça
aprisionando a luz
até que a noite desça
pondo no céu
outra alegria,
outra alegria...

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Aonde?


aonde as flores
ainda olham,
lentíssimas,
quando caminhas
como a estrela da tarde
antes de chegar o luar
esquecida da noite
e pela noite esquecida?

aonde os frutos
desatam-se e caem
na memória da sombra das árvores
e deixam a primavera imóvel
e as tardes nas minhas mãos?

aonde as chuvas
partem sozinhas rumo aos rios
molhados pela solidão do sol poente?

aonde o dia
mistura-se ao esquecimento
e retorna à ausência onde
andam os caminhos sem memória
e os abandonos falam de saudades?

aonde tuas mãos
desarrumam as chuvas
e afagam as sombras
das palavras que ainda não te disse?

aonde teus pés
caminham sob o firmamento
e a mansuetude do dia demorando a nos dizer?

aonde teus olhos
encontram a noite,
passando lenta e sonora,
passando meiga e serena
semeando o mundo
com o sopro denso e escuro?

aonde os teus lábios
(e só os teus lábios podem)
dizer o que ainda sou?

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Teu nome faz os pássaros dizerem versos


o silêncio coleante e forte do inverno
enlaça as mãos vazias do dia
saindo delicadamente da noite evanescente
acordando o destino da rua cativa, deserta
adormecida entre recordações
e volteios do passado
pousa nas árvores derramando
folhas alaranjadas dentro dos lagos vermelhos
o sereno caminha pelos galhos secos
o vento suspirando a noite em seu fim
recorta cores e põe retalhos coloridos na aurora
se elevando no horizonte entre delicadezas e acalantos

um sol,
incipiente e inconcluso,
toca o ar ainda frio,
tremelicante
e sonolento
espreguiçando
esfregando os olhos
diante da irrealidade inapreensível de um novo dia
as cores escorrem do ocaso para dentro da sombra
coligindo vidas tardias,
rasgando tempos e dores
semeando mares
e portos desmesurados de amores
ensinando o caminho aos rios
que te esperam
onde a ausência mais fala de ti

a aurora
clareia a manhã e suspira
ateia fogo ao céu
e no telhado das casas  mudas.,
miúdas
e impávidas
os ares,
translúcidos,
ressoam as primeiras palavras
que roubam ao silêncio do dia
e de sacadas que apenas espiam
as últimas estrelas balançando na noite indo embora
esboçando aqui e ali um rosto posto em alguma janela
admirando os pedaços de dia que a luz vai desnudando
e sobrepondo sobre os outros dias de lento esquecimento
por onde se insinuam os pássaros
invisíveis entre a folhagem
só o canto é grito e instante
entalhando a manhã do infinito dos dias

a lembrança dos teus lábios
ata-me aos barcos e aos mares inertes
sem sopro de vento que os mova
e sinto cair,
gota-a-gota,
a saliva do beijo que por não ter sido dado
é só memória
nos meus lábios entreabertos,
na minha boca irremissível
que pergunta pelo teu nome
e teu nome faz os pássaros dizerem os versos
que faço para ti
sem que tu saibas
e os dirão sobre os segredos e as ternuras do teu corpo
que de ti ainda não sei

ainda é meandros e sonho beijar as tuas mãos
tocar a inocência do teu nome e a tua beleza
deusa que és de toda a graça morena
flutuas sobre mim quando tu passas
e o meu mundo se refugia e abriga-se nos teus passos
e o ar em torno é um só soneto com cores e aroma de açucena

domingo, 27 de setembro de 2015

A flor


A flor é o devir da flor
a flor em si mesma
e a lembrança da flor

O momento tremente
em que a penso
e aprisiono a flor
já não é mais a flor
é idéia e posse
é o que os meus olhos antigos
e a minha mente viciada dizem que é flor
mas, não é a flor
é a imagem decalcada
pelas imagens de todas as flores passadas
é o sonho doendo dentro da vida

A flor é o que sinto no  momento
em que ela se entreabre só para mim
e cede-me as cores
e espargi-me aromas
e entrega-me o sol que também é a flor
e eu e ela somos uno
nas manhãs que regressam
pousadas em borboletas
e, lentas,
entram pelas janelas

A flor perfuma o instante
recendendo no sopro
das brumas e das saudades
que vêem das ilhas encharcadas
pelos ventos
derrubando pétalas
atravessando o rio e a minha alma
para perfumar os dias
de beleza
e da infinita mansidão
das garças esperando para
desaparecer
junto com as tardes
dentro do espelho oxidado
das águas da lagoa

sábado, 26 de setembro de 2015

Eu, quando?


Escrevo aqui:

Nada se movia sob o céu inacabado
ainda sem cor,
mas que será azul quanto estiver pronto

E afirmo:

São inexistentes as horas de onde pendem
o mistério e o azul do céu!

O rumor dos ponteiros escalavra a ilusão infinita
de um tempo escondendo-se, escoando
e ecoando dentro de mim
treme e me embosca
me arrosta
o tempo introjetado não me deixa sozinho
encurrala-me no matraquear incessante
do tartamudear delirante e mentiroso das horas
angústia inventada,
invertida
vértice de tanta loucura,
artífice de tanta paúra
já criada e aceita ao longo dos tempos
pelas mentes sombrias do homem
o tempo
caindo,
caindo,
indefinidamente,
caindo...
entrementes
tolhendo os dias tão claros onde eu canto para ti
pervagando as noites escuras onde eu te amo
relutando letárgicas lutas sustentadas
pela miscelânea que abriga passado, presente e futuro
na mesma cela, da mesma prisão
e, então, o tempo é tão inútil
quanto os olhos procurando-me no espelho
onde vejo uma imagem que suponho ser eu
Mas, eu quando?
Eu no passado?
Eu no presente?
Ou eu no futuro?
se o tempo é fluxo escoando ao longo dos momentos
e não movimento
sombra do infinito aprendendo gestos

Meus passos caminham o que fui
o que sou,
o que serei
meus passos caminham chãos e sonhos
trago palavras doces e maduras
e vinhos bêbados
e flores suspirando aromas que,
pela sede e pela fome de tanto te amar,
nunca,
jamais te entregarei

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Zome


De batismo chamo-me José
na infância e na adolescência
chamavam-me de Zome
porque Zome?
o que vem a ser Zome?
de onde vem isto?
o que vem a ser isto ao certo?
perguntará alguém mais curioso
visto que tem sempre algum por perto

Eu vou contar,
eu explico,
enquanto o passado respira e pervaga quintais e saudades
e o pensamento olha para os dias que ficaram sob o sol
causticante
e a neblina empoeirada das manhãs
envelhecendo com a memória
silencia e se desprende deste sabor
de terra desatenta

Como quase tudo nesta vida "Zome" tem uma explicação

Quando nasci, meu irmão mais velho que eu três anos,
por não saber dizer homenzinho
chamava-me de Zominho
Zominho, Zominho, virou Zome
e assim ficou
atravessei a infância e a adolescência
com Zome sendo meu nome


A vida fez e desfez dias e noites
o circo de lona rasgada foi embora, partiu
foram embora os parques de diversões
foi-se a música oferecida de fulano para fulana,
como prova de amor e admiração
ficaram no ar sons e nomes atravessados de amores...
que de amores ainda serão?
foram-se as meninas que amei em silêncio
no prenúncio das mulheres
foi-se a rua de terra, de folguedos
os dias criando brinquedos
as noites inventando medos
a mão chamando
pra muleque entrar
pai vai chegar
entra pra casa quem não quiser apanhar
o mundo chorou e riu
cresci
crescemos eu e a saudade e os corpos mirrados
dos amigos e das amigas de então
todos cresceram
ninguém falou em saudades ou solidão
os retratos amarelados escondendo-se do tempo

Quando cresci
quem não me conhecia/conheceu
como o Zome lá da infância chama-me de José
(Bem poucos chamam-me de José
parece-me que há nisto uma certa dificuldade
que até agora não entendi: como este nome sui generis
pode ser tão difícil de ser lembrado,
chamam-me de tudo, Pedro, Paulo, João...
mas de José não chamam não)

Sendo José,
por consequência óbvia e corriqueira, virei Zé
(Mas assim como José, poucos, bem poucos, me chamam de Zé
aqui não por dificuldade própria da língua, mas, talvez, por comiseração
ou aversão aos simplórios de nomes simplórios... não sei
cada um que tire a sua conclusão

A maioria chama-me Leite,
sem perderem a oportunidade de fazerem
a famigerada, infame e gasta piadinha
quando nos encontramos no cafezinho:
vou tomar café com o Leite
ria quem puder

Chamam-me ainda de
José Leite
José Milk
Zé Leite
nos anos 80, no auge da desolação, chamavam-me de Zezão
miúdo que sou o apelido era uma aberração semântica
e uma grande piada, fisicamente falando

Hoje só o passado e a família ainda me chamam de Zome
minha irmã, por um carinho desmedido que acaricia todos os meus dias
quando nos falamos, chama-me de "Me"

Sendo José,
como todo bom José
gastei pedra
pé ante pé
andei
me arrastei
virei
mexi
remexi
fiz xixi no céu
me isolei
me degluti
regurgitei-me
vassalo que sou
um dia senti-me rei
perdi a fé
em mim, nos santos e nos homens
vi-me incréu
"E agora José?"
chorei
cravos vermelhos
pus-me de joelhos
nos desertos da mania
quando, quando e como a alma ardia
entreguei-me à poesia
estraguei a poesia
ao meter-me a escrevê-la

Ainda ouço,
em momentos de alegria, de catarse,
da velha dor incestuosa
ou nas noites de cismas ardendo em mim
ainda ouço
vindo dos quintais pungentes de liberdade
como um sussurro tardando a passar pelas tardes
sem tempo e sem idade
andando, tropeçando
caindo e levantando como um sol dilacerado
o antigo apelido:
Zome, Zome, Zome...
que me chama pelos lábios ressequidos de meu irmão
naquelas grotas, lonjuras, barro, fome
e o vento tangendo a poeira e o grito magro do sertão
ainda diz
vem pra casa Zome...
não come barro Zome...
Zome, Zome, Zome...
mas, Zome no dia a dia
nunca fui mais
nunca fui mais não

O que em mim era Zome por pura alegria
por vivacidade e vadiação do meu irmão
agora é Zome quando a saudade acaricia e alicia e cicia
os redemoinhos girando memórias nos terreiros
de instantes zunindo nos galhos secos dos pés de pau
encobrindo com  a poeira os dias que não vingam
e morrem dentro de mim,
infatigáveis,
pela derradeira vez

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Quero o grito que ouço nos sonhos



quero o grito que ouço nos sonhos
e as respostas
dos sonhos que se perderam
na apatia
e na indolência descompostas


segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Quem não tem origem não sabe o seu destino


Vim...
a vida me chamou, eu vim
assustado
cismando
chorando
pelado
desdentado
os olhos ardidos pela poeira
a boca seca
o cuspe seco
me espojei no chão rachado
comi barro
lambi o sarro das gretas
botei lombriga
cativo de uma sina seca e faminta
sobrevivi
fugi
arrastando a alma pesada
e pejada de tanto barro que comi
o corpo tomado daquela terra imantada
pela maldade,
pelo mistério,
pelo esquecimento
pela mentira do rio ausente

Vim...
não gostei do que vi
o homem trazendo dores,
rancores
a fera em mim emboscada
o todo menor do que o nada
o nome escuro das guerras
os inescritos donos das terras
a peleja desenfreada
a espada desembainhada
alçada sobre as cabeças
os bergantins movendo-se para o confronto
pervagando nos desertos insensíveis
da sordidez dos homens calhordas
indolentes
homens ignaros conluiados com a morte
fascinados com o gume afilado
das armas com as quais atacam
e sufocam a vida e o pensamento

Não entendi os segredos
atraiçoei-me em meus medos
que ganem
o que eu não quero ouvir

Não gostei do que vivi
procurei nas auroras
azulando e azulando o mar
tão devagar
emergindo no horizonte
um seio a se mostrar
procurei nas tardes imóveis,
intocadas
e quentes
nas noites distendidas e úmidas
e suas horas imensas cicerônicas
procurei nos meus caminhos assustados,
vilipendiados
não encontrei em mim o gesto
não encontrei dia, noite, madrugada
que interpretasse os meus carinhos
aos carinhos da mulher tão singularmente amada

Eis-me aqui,
antigo e vário
diante da insubsistente poesia que,
sozinha,
diz muito pouco ou não diz nada

A noite indistinta não cessa
de bater à minha porta
o vento sussurra sortilégios inumeráveis
junto à minha janela marchetada pela mão da madrugada
o cansaço e o silêncio movendo-se em lenta fuga
o relógio proclamando melancolias
faz a noite mais escura e hesitante
a noite em mim já não dorme
já não acordam os dias
a vida já não é o bastante
tudo em mim é este momento entardecendo
com tanto empenho,
com tanto esmero
tudo em mim é este abismo inexato
ingente
e este inconho desespero

O descalabro
desolado e mudo da vida suicidou-me
enojou-me
enojei-me
enojei-me de mim mesmo
da minha falsa candura
da minha real covardia
do olhar baixo
procurando-me pelo chão
enojei-me da fuga clandestina
enojei-me da minha inconsumível pretensão
e da minha falsa simplicidade
que me faz condescender
com aquilo que eu não quero ser

O que serei pouco importa
não vejo nem a luz nem a porta
que me tire desta cava
onde inelutavelmente o tempo cai sobre mim
a poesia que eu sinto e que escrevo
e que me escreve
é a vida que achou uma forma terna e leve
de resgatar os sonhos todos que me deve

Sou antigo
como a luz do primeiro dia
como o balbucio do primeiro homem
como o brilho da primeira estrela
como a primeira noite onde a luz preclara dormiu
e o Universo, enclausurado, se abriu
sou antigo
como as margens desoladas deste rio de recordações
como o navegar sem rumo das embarcações
a desembocar no meu peito
indiscernível, irrefreável,
soturno, retinto
menino assustado,
não tenho fé que me sustente,
não tenho fim
como não tem fim tudo o que eu sinto
como não tem fim este fim eterno
fremindo a pulsar dentro de mim

domingo, 20 de setembro de 2015

Poemas, quem os enxergam?


Poemas,
quem os enxergam?

com tanta guerra começando
com tanta fera assomando
com tanta miséria grassando
com tanto amor se acabando
com tanto adeus acenando
com tanta vida blefando
com tanto sonho gorando
com tanta luz se apagando
com tantos céus desabando
com tanta virtude execrando
com tanta mediocridade pervagando
com tantas vozes calando
com tantas mãos se fechando
com tantos olhos chorando
com tanto medo assustando
com tanto desespero desesperando
com tantas saudades falando
com tanta tristeza no mundo
em cima
dos lados
embaixo
bem embaixo
no fundo

Imagem: Santiago Carbonell

sábado, 19 de setembro de 2015

Preciso ser delicado

 
"Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida"
 
Vinicius de Moraes
   In Nova Antologia Poética. Ed. Cia. das Letras. 2008. Página 31.  
 
 
 
 

Preciso ser delicado
todo o tempo, delicado
preciso ser poeta e água de choro
e o soluço ritmado depois do choro
e o ritmo dos anjos cantando em coro
esperanças
preciso ser o beijo nos olhos que choraram
e choram os dias sem um destino
que os viesse tocar
sós...
tão sós como as velas gemendo sem peso
aos ventos em alto mar

O que eu fui ficou enlaçado
nas estrelas azuis me espiando
ficou no choro e no riso
ficou no instante conciso
na saudade dentro do retrato
ficou no ruído do vento falando
às velas mudas dos barcos
ficou na ausência do ato
ficou no sal solidificado do mar
ficou no chão que pisei
ficou no chão a me pisar

Sombras seculares andam nos becos
atritando as pedras do calçamento
tirando do ventre frio das pedras
faíscas e indizível lamento
incendiando palavras
acendendo fogueiras na memória
arrostando a mansidão dos silêncios
delineando meus sonhos e o meu destino
fazendo dos dias campos semeados
de tanta ventura, de tanto desatino
por onde só se vai e se esvai
no sem caminho das nuvens
e nas distâncias que me perdem
onde cada pedaço meu
sou eu mesmo que despedaço
e me estorço
e me desfaço
e me refaço
entre os espaços e os medos
entre a compreensão e o perdão
entre poemas de uma tristeza longa e exausta
uma tristeza que dorme esquecida na minha mão
entre poemas enlaçados ao passado que nunca passa
condenados a mais de cem anos de solidão
deixando no ar este aroma de cravos e rosas
entre o sim expletivo do infinito
e a eternidade opressora do não
enchendo a vida com o grito infindável
crepitando na escuridão saindo da noite

Vê, amor, que há poemas onde o amor só nasce para sofrer
poemas que as minhas mãos teimam em escrever
inquietas em meio a erva daninha dos jardins abandonados
dos homens e das mulheres desamparados
o coração delicado decepado de forma irremissível
bateando nos lagos impuros
faiscando passados e culpas
no coração onde o amor é verso e dor
em tudo o que o momento deixou de ser ou não foi
nas lágrimas inertes que invento de repente,
sem poesia aparente,
invento simplesmente,
condescendentemente
para chorar tanta tristeza que se deita
e se aninha
e se enrosca aos meus pés
por tudo que fomos
por tudo que és
e arde em febres indizíveis
e sofre
bebendo lentamente o claro argênteo da lua
vagando e tropeçando na rua
e nas miragens que o vento volitivamente traz
de desertos mirabolantes

Invento lágrimas
para me sentir comovido e minimamente humano
em face da melancolia
adaga dessemelhante que se roça em mim
tocando e lanhando o meu corpo
e o mistério que me alucina
ao entardecer das paisagens sem sol
sem a corda vermelha no céu tesa e estendida
sem riachos ou rios seguindo
o caminho das margens inapreensíveis
no mar sem equilíbrio
nas nuvens desmesuradas que passam me/ditando
no meu olhar a olhar
o olhar confrangido do anjo,
triste e profundo
na felicidade que antes de ser
a minha felicidade,
a tua felicidade
a felicidade que se oculta bem fundo
é o sentimento levado pela cabotagem
das estrelas enamoradas e pequeninas
pervagando pela senciência do mundo

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Metades da primavera


Eu e você...
abandonos e carinhos
gestos sem passado
as roupas nuas sem amanhãs
teus olhos negros erguendo o dia
teus lábios frescos e inocentes aspergindo as palavras
ninando o dia
a tangível fantasia
brincando
com a infância acordada em nossos corpos
brincando com o poema
que nós éramos (que nós somos e seremos)
e com a eternidade vivendo em nossos poucos anos
em toda as coisas
que nas flores da lembrança ainda eclodem ou se inventam
e nos botões que florindo ainda virão
no gesto que ficou e que ainda guarda o afeto
e no teu jeito sem jeito de olhar para o segredo
dos nossos corpos despidos
o teu jeito de se ajeitar sobre as letras e as palavras
e aconchegar-se em meu colo como
se no mundo não houvesse o medo e o desamor

ficamos, meu amor, tu e eu, cada um
com metade da primavera
e, então, a primavera só se completava e acontecia
quando nos encontrávamos e bebíamos o amor aos goles,
ávidos um da metade do outro
na minha mão a tua mão
e os nossos sonhos entreabertos
e a ingenuidade dos nossos brinquedos secretos
sem promessas presas às nossas bocas
mansamente chamando pelas aves que voavam
e levavam a dizer palavras
anunciando a ternura do gozo impressentido
e a poesia balbuciada
nas tardes amadurecidas
nas cinzas do calor dos nossos braços
entre abraços
envolvendo a gente e o dia
dentro da mais estonteante alegria

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Dona Maria

 
O vento erra arrastando este canto
de pássaro pressentido na noite
que vai e voa e ondula
por céus extenuados
inapreensíveis

A noite é as mil folhas
dos espelhos fatigados
é a sombra doída
barco solitário e silente
grito crescente
a noite é a vida
reconciliando-se com o primeiro dia
entre lembranças e sonhos

A noite interminavelmente me chama
entorna a lua no lago e arde em silêncio
caminho lugares e retratos de sombras
dentro das lembranças
caminho tardes indo embora
que me levam a mim e este doer sem pressa
quando a chuva cai
e os pingos escorrem chorosos pelas janelas

Ando pelas ruas da infância
e deito-me ao sol
sobre a relva acariciante e  nua
a porta entreaberta a este silêncio
e a este sentir que murmura em mim nostalgias
um passo sem rumor dentro das areias frias
o mar quebrando tão longe
lesto e sozinho
paisagens vazias

Na noite vagueando pela névoa dos jardins
canteiros de cravos
e de ternuras vermelhas, brancas
rosas, roxas, amarelas
rosas flutuando antigos dias
lembro de você, mãe
tenho a nítida sensação de que se eu gritar "mãe"
você responde
e os cravos eclodem densos entre os meus versos
que são todos teus
e desando na noite a aprender saudades
até a noite ir embora
ou esconder-se dos meus olhos
e as estrelas fecharem os braços e os olhos pro novo dia
que não demora e se inicia
recomeçando esta mesma e sempre eternidade
que dia a dia se fia
sem que os meus lábios tenham aprendido a dizer adeus

Saudades, mãe,
saudades, Dona Maria
que deu um sentido definitivo
irremissível
inelutável
imensurável
para as palavras saudade e solidão
quando o silêncio pousou e dormiu em seus lábios
pondo fim à agonia do verão

Minha alma
minha única Nação
minha inapreensível
minha incognoscível
e insofismável explicação
chorou
verdades e dores de um rio
que em meus olhos corria
para dentro dos teus olhos,
minha mãe,
minha e/terna poesia,
serás sempre a  flor obstinada
neste mundo que era teu
e que me destes
num mundo onde se via
o clarear das manhãs
lavrando as flores do dia

enquanto você morria
saudades,
Dona Maria

terça-feira, 15 de setembro de 2015

As quatro estações


PRIMAVERA

Entre a cor e a árvore
passa o pássaro
no ar o perfume imemorial
da grama aparada
onde os passarinhos debicam insetos
e o vento matinal lembra poemas
na certeza de uma estação bordando cores
e de canteiros floridos
pendoando as manhãs de eternidades
e aromas
e o som sibilino do orvalho
sendo o orvalho a lágrima da brisa
sob as pétalas dos tempos e dos poemas
sendo o poema o amor posto
fora dos parêntesis
o fator em evidência
sendo o leitor
a condição de dois seres
a palavra mirando-se no espelho
na primavera insonte e perquiridora
poeta e leitor, por ventura, se pensarão?
as flores abrem-se
e nos nossos olhos a tarde tateia pétalas
abrem-se murmúrios e enlevos
como no primeiro dia da Criação

VERÃO

O sol cintila e espera nos grãos de  areia
as águas e suas reentrâncias
molhando os quiméricos feudos e quintais
castelos de areia e senhores feudais
barcos de papel e os sonhos álacres e lestos das crianças
carrosséis de cavalinhos multicores giram nas praças
rodas gigantes amarelas e azuis rodam no ar
levando o encanto nos olhos do menino
levando a graça da menina, o sol, a paisagem
e o sonho que inventa os quatro
dentes de leão empurram o ar e o dia
a luz empurra o barco
as velas
azuis, brancas, amarelas
como um outro jardim
ligado à alma onde cavo
buscando a mim
enfunam-se de fantasia
estrelas saem das árvores
mal começa o fim do dia

OUTONO

As noites crescem,
soberanas e jacentes
e a paisagem veste-se de escuridão
tão de repente
morosa e ternamente
as folhas caem
morosa e ternamente
as folhas caem
onde antes eu pisava e escrevia chão
aprendo o refazer dos caminhos
a volta à foz do rio
aprendo na árvore desnuda
o silêncio de um deserto cheio de perguntas
esquecidas
escondidas
contidas pedaço a pedaço
mastigando palavras quebradiças
como os galhos secos
da estação
às vezes mastigo-as devagar
às vezes com ânsia e sofreguidão
a luz do outono me sustenta
levito sobre o instante e a estação

INVERNO

os dias dormem cada vez mais cedo
a luz entregando-se a ser ausente
dias curtos
inapreensíveis
o vento morde as casas
o nevoeiro esconde a rua de si mesma
e põe lassidão nas esquinas
o sol, hermético, engana que esquenta
posto num canto do céu
o céu mistura-se às nuvens bojudas
chora neblinas
os dedos frios do ar
tocando rostos e mãos
como nos toca o frio momento que acorda
e se põe a nos enlaçar incontinente e sozinho
o corpo, tolhido e álgido, pede calor
a alma pede carinho

domingo, 13 de setembro de 2015

"Nunca poucos fizeram tantos de pinico"*


Poucos
Bem poucos são
os que nos turvam a visão
nos embaralham a emoção
nos embotam a razão
deitam a última pá de terra ao caixão

O torno e a forja midiáticos
montados para dar sustentação
à transformação de um homem
num gordo, rotundo e esmaltado pinico
aparelhou o "making off" desde a criação

Povo...   Ah! O povo...
com esta imanente vocação
para pinicão, para pinicaço
tornando o rico, ricaço
sai pra rua
põe nariz de palhaço
como quem entendeu
quem lhe dobra o espinhaço
mas, basta bater um tambor
para esquecer toda a dor
e sair dançando (em todos os sentidos)
prosaicamente
talvez para encobrir o medo
e enrolar o lençol que vem junto com o fantasma
talvez sem se perceber
de que o nariz de palhaço lhe cai bem

A TV, o  rádio, o jornal, a revista
modela a matéria prima do pinico
na confeição que bem entende
sem deixar rastro ou pista
o que não falta é "doutor" e artista
desfilando à nossa vista
dizendo como, quando e onde fazer
a nossa festa arrivista

A TV te vê,
nos engole
nos tolhe
dessangra nossos miolos
e cospe
pinicos de toda sorte
semeia a estupidez
em nossas mentes tementes

A TV quer que a gente rebole
a gente rebola
como um bando de dementes
descendo até a boquinha da garrafa
baldes de mediocridade
ministrados homeoapaticamente
enquanto a gente nem pisca
ela nos pesca
peixe para a fria marmita
sardinhas enlatadas
aonde foram parar as cabeças?
espinhas entaladas
na goela de uma realidade escamoteada
rançosa
ela nos iça
e vai transformando em carniça
ou matéria para uma outra missa
este povo descartável
que o "establishment"
oprime
reprime
enquadra
pasteuriza
e vomita
num déjà vu "Orwelliano"

George Orwell era aprendiz
quando descreveu em "1984"
como tornar gente
em pinico o incauto desinfeliz

Ah! eu quero tanto ser feliz
mas a minha ignorância não deixa
o que eu tenho é só pergunta e queixa
e estes olhos estatelados
fitando os momentos atabalhoados

O gosto amargo da vida
a futilidade dizendo asneira
ditando moda e comportamento
falando a estudada besteira
a cultura catando xepa na feira
a propaganda ideológica
a visão ginecológica
a curetagem cerebral
a lavagem emocional
trazendo à tona o animal do animal
a luz e a sombra tratadas com esmero e lógica
para vender "Merry Christmas!" no período de natal
tudo absorvido subliminarmente
pelo vivente pinico e seu destino fatal

O jornal
A revista
Idem, idem...
Tudo tão igual...   Tão igual!
A parvoíce geral

Eles são poucos,
muito poucos
mas detêm o conhecimento
de fazer cantar o jumento
e cumprem exemplarmente
o papel que lhes foi designado:
transformar gente em pinico
que pode vir vazio ou lotado

Todos vendem o mundo
que lhes deram pra vender
e há até certos conceitos
bem fáceis de se entender:

"a propaganda é a alma do negócio"
e o ócio
é o momento do negócio
de se pegar o beócio

Espanto!!!  
Quase confirmação
Tenho a clara sensação de que
estamos nos bestializando cada vez mais
e mais cedo
Ou é apenas a constatação de se estar vivo
e seu inerente medo

*O título da postagem foi pego no livro "Poesia Completa - Manoel de Barros" - Página 150

sábado, 12 de setembro de 2015

Depois de ti o mar vagueou

 
depois de ti o mar vagueou
pelo passado sem memórias
pela canção dos próprios passos
embriagou-se
soçobrou
afogou-se
derramou-se nos rios
lanhou-se na noite
e nas pedras cobertas pela neblina
exausto de si
bebeu as pedras nas fontes
murmurou,
gemeu nos horizontes
disse palavras
chorou desencantos
e tantos
desmanchou-se em vãos pedaços
e o mar, então, foi só cansaços
respiração ofegante dos anjos cansados
madrigal
dizendo as cinco estações
primavera: derramando flores no ar
verão: espraiando sol nas vidas abertas
outono: derrubando flores, brincando de pega com a  luz
inverno: fria solidão doendo nas nossas mãos incompletas
a quinta estação não tem nome
é o silêncio andando com a lua
é a noite andando casualmente na rua
é o silêncio que eu pressinto,
mas não ouço
a quinta estação
é o calar de todo este alvoroço
é a estação do silêncio
dizendo o desassossego inteiro do teu corpo
e o marulho comovido,
envelhecido
e ritmado das estrelas

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

O mar veio depois do teu nome

 
O mar veio depois do teu nome
Pingo
escorrendo da tua
pra minha boca

A minha mão acariciando o teu corpo
por cima do teu vestido encantado
como o farfalhar de folhas antigas
e tu me contavas devagarinho
os teus segredos mais verdes
deixando na boca um travo

Eu te beijava
como se beija o primeiro amor
inseguro
desajeitado
ansioso
querendo dizer paixão
sem saber
um sem saber de criança
sem saber que a tua boca
guardava anjos e prostitutas

Eu perfumava meu rosto
nos teus gemidos
nos teus cabelos molhados
do banho no tanque
onde tu banhavas as tuas alegrias
e as águas todas eram rios fugindo

Nós éramos dois bobos
que o mundo não alcançava
nem corrompia
só o silêncio sabia dizer
o que a minha palavra não dizia

Aí veio o vento
era domingo
no ar havia cantigas
e o poema fazia
e desfazia versos
e com o vento
o mar veio vindo
veio vindo
o mar veio
depois das tuas mãos
do teu colo
dos teus seios
dos teus olhos
dos teus lábios
depois das tuas pernas
depois do teu suor
Pingo após Pingo
deixando o sal adormecido no teu corpo
e, então, tu já vagueavas e vadiavas em mim
entre o amanhecer sussurrante dos meus braços
e os soluços da tarde encostada comovidamente
na ilusão extrema da noite dissolvendo-se em carmesim

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Ecos da neblina


Por mais que tentem
não me escondem
não me furtam
não me assaltam
não me elidem
não me levam de mim

a neblina
o abacateiro
o cachorro
os cheiros escondidos pelo quintal
o galinheiro
o poço, onde Tita morreu (Tita era uma das galinhas
                                          e morreu afogada ao cair no poço)
o vão da escada e suas safadezas
flor nos canteiros
a rua de terra
bola de gude
pipa no céu
o vento chamado no assobio
show de calouros
o carrinho de rolimã
os pés de lata
a bola de plástico
o campinho e o campão
Dona Rosa que, pegando na minha
com aquela mão de enleio e delicadeza
e ao me dar o meu primeiro livro, O Patinho Feio,
enveredou-me pelo caminho
a juntar detritos e gritos
encantos e sustos                                                     
as meninas que tanto amei (sem que elas soubessem)
dentro dos arcos de noites de sonhos remendados

Tudo isso é meu
não...
não é isto que quero dizer
o que quero dizer é mais grave: tudo isso sou eu
bicho arrastado e embriagado pelas lembranças
e o tempo não me toma
jamais tomará
morra eu quantas vezes devam ser as minhas mortes
faça-se a noite mais precária
ou faça-se o mais precário dia
é eternamente meu
o que o meu sonho me fia

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Cenas do cotidiano

 
Chego ao prédio onde moro
na portaria
uma senhora de certa idade
discorre afetada
sobre as mazelas humanas
do homem e seus delírios de poder
a sua insaciável ânsia de ter
fala da necessidade de colaboração
da falta de união
o porteiro parece ouvir
ou seria os ossos da profissão?
o porteiro "ouve" a tudo e a todos

Ao passar cumprimento os dois
o porteiro responde
ela não
talvez que por estar tão encantada
com o próprio discurso
não ouça nem a si mesma
talvez por que o mundo, neste instante,
gire ao seu redor e o cumprimento que eu lhe fiz
tenha se perdido em algum buraco negro
da galáxia que ele representa neste momento
talvez por que estas coisas todas das quais ela fala
só sirvam para os outros
o que é mais comum
e o outro incomoda que é o diabo
é preciso exorcizá-lo com discursos veementes

Parece-me
com base na experiência que o prédio me dita,
que algumas pessoas,
como o passar da idade,
vão se deseducando
ou será que foram sempre assim
e a gente não as conheceu antes?
assim como vão encolhendo fisicamente,
outras física e intelectualmente
as orelhas crescendo
as rugas enrusgando a alma

Pego o caminho da roça
olho minha caixa de correio
nada de correspondência
bato em retirada
o "outro" não quer falar comigo
pelo menos por enquanto
pelo menos por via postal
o que hoje, diga-se de passagem,
não é normal com e-mail, celular,
whatsApp (que diabo vem a ser isto?)
e coisa e tal
o meu "outro" manifesta-se abundantemente
sempre no final do mês
travestido de contas para pagar

Talvez, quase certeza,
na cidade onde nasci,
perdida no sertão nordestino
ainda escrevam-se cartas
e lambam-se selos (aqueles que ainda têm
                               alguma gota de saliva para fazê-lo)
e esperem-se os Correios ansiosamente
antevendo as palavras que virão
no bom e velho e afetuoso papel

Subo pensando nestas coisa todas
tolas
tão corriqueiras e banais
quem não é capaz de responder um bom dia
um boa tarde, um boa noite
agradecer que lhe segurem a porta do elevador
que lhe segurem o portão de saída
tem o que para dizer sobre a soberba humana?