domingo, 29 de outubro de 2017

Vai


vai,
e pé ante pé,
deita-te como a manhã
sobre este tempo leve e quente
que tu és
tempo claro,
maduro,
brando como os pássaros
glauco como a grama do jardim

deita-te sobre este tempo assimétrico
gravado e recluso nas folhas das flores
que em folhas secas em tantos tempos se desfazem
e cobrem o chão
ancoradouro dos meus passos
que renascem minuciosos e breves
em rumores
pequenos atos ocultos
que assim se escrevem
na farsa dos caminhos que me levam

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Nada


nada
é tão negro quanto o negro inatingível  dos teus olhos
e esta sensação de encantamento que reverbera
pelo tempo efêmero e sincopado
do caminho todo escuro e contemplativo
quando olho no teu olhar
e, então, a densa noite nos teus olhos dança
e, coleante, põe-me a sonhar

domingo, 22 de outubro de 2017

Miséria e fome


 
 
Senhor,
viestes nos procurar
a mim e a este cão que atende pelo nome de Fome
trouxestes alento para as nossas lágrimas
trouxestes o cântaro cheio da Tua Verdade
e da Tua comiseração

da latência das Tuas palavras
inventa-se a paciência e/ou o desespero
escorrem os momentos para o fim
e o fim é a catedral onde a neblina apagará os círios
que consomem os dias e as noites
inelutavelmente

o homem deglutindo a fome
o cão salivando a fome
a criança aprendendo a fome
subsistem por imposição da vida

crianças faminta arrostando a vida
crianças no lixão mimetizando-se com os urubus
crianças carcomidas pela estultice dos discursos vãos
crianças apedrejadas pelo egoísmo inaudito
crianças pedindo nos semáforos
crianças na prostituição

Dizei, Oh! Senhores,
chefes das nações que sendo várias deveriam ser uma
que almoçam e que jantam e arrotam e jogam o sobejo fora
o campo semeado e a colheita são insuficientes?
a semente, se mente e não vinga e se vinga e se morre?
a miséria é algo tão distante, insólito e obscuro
sem direito sequer a um osso para o cão,
a um pão duro para o dono?

um dia, sentados diante da emoção incomensurável da mansidão de uma aurora
molhada pelo sereno que o vento traz e acordados pelo sussurro dos deuses,
olhando para o que acumulamos,
um dia pressentiremos (será)
que morrer de fome, na miséria é a quinta-essência da indiferença
açodando os círios acesos para que se apaguem mais celeremente todos os dias
sem atentar que tudo que é é eternidade

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Ideia

 
comove ouvir o rumor da brisa a soluçar nas flores
em tantos caminhos efêmeros,
em tantos amores pulsando,
a suspirar
inundando palavras que se compõem
em tantos traços
e com as quais se escrevem
e se denotam a vida e a morte
contrai-se o sonho na noite sem nome,
a opacidade do amor nos dias sem fim
dedilhados sílaba a sílaba
extasia o fim de tarde a beliscar as cores
que ressumam de um sol poente
vermelho cúprico
laranja
lilás
quilha e fronteira entre o dia e a noite
na surdez branda do vento
arrancando ao ventre túrgido da terra,
prenhe das noites,
a ideia,
onde se alarga o momento de ir embora
e nunca mais,
nunca mais voltar

sábado, 7 de outubro de 2017

Desalento


vem dos meus muitos eus o gosto esconso e devasso do abandono
o tempo tecido de instantes morosos
a dúvida levantando-se do medo das noites antigas
a agonia onividente
na clausura a tristeza cantando por entre os ferros da cela
o silêncio arrependido da culpa
o asco escorrendo pelas sombras embebidas do dia
a melancolia premente inventando vazios momentos
a esperança que espera e não chega
a distância que não começa e já cansa
a barca da solidão à deriva
barco a ser queimado
os ígneos passos dos meus caminhos sem volta
a lua cheia suspensa e estendida
prisioneira e esquecida na insolência dos astros
o desassossego dos cães latindo na madrugada
a madrugada acordada, emboscada, esperando pela manhã
a inércia observando e absorvendo a vida que morre em versos tímidos
a vida que dorme o sono inócuo
prostrada nos templos incandescentes
silogismos a me definir no nada que sou
e me assuntam na fluida lágrima
que liga a palavra à palavra
que me visitam embriagadas e trôpegas
num engano de eternidade
que me faz grito vago
noite outra vez