segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Passa e fica


Passam as fugas
acobertadas por neblinas quase cegas

Passa o nada
intenso e desigual
por sinal
tão ao natural

Passa o canto dos pássaros
cantando a carícia furta-cor da manhã
em meio aos sonhos ainda dormindo nos olhos
em meio a buzinas e motores

Passa o rio
amassado
trazendo torrões de terra
fantasmas de alguma guerra
retalhos de galhos e nuvens
imprestáveis passados
que também passarão
como a ternura passa
e fica só o tesão

Passa a lua
sem parar, sem parar
a lua tem medo de se quebrar
quando quebra o mar
quando o mar põe-se a quebrar

A palavra que te digo
doída ou alegre
também passará diluída
em pequenas doses
de mentiras possíveis
dentro do próximo segundo
esquecendo-se em esquecimentos
desimportantes
diante do silêncio do mundo
que se põe a escutar
pedaços da eternidade de um só dia
distante das poças sangrando poesia
outra forma cambaleante de agonia

Passa
a minha vida, enfim
em cada texto que escrevo
e vai escorrendo em cada pedaço de muro
onde brotam as primeiras hastes de capim
passa, envolta em azul escuro,
esconjuro
a minha vida
assim, assim

Passam as abelhas
brincalhonas
em busca do mel jorrando da boca do sol
trespassado pela sozinhes da manhã
transitória e fugaz
como a ilha infrangível que se desfaz

Passam os pássaros
se embolando às cores maduras do vento
passam empurrando o momento
antes da nuvem recomeçar a se refazer
passam e se espojam na terra

Assim como passam os poemas
insontes
se embolando na estesia das palavras
antes de começarem a se desfazer

Momentos tristes ou felizes
passam
num caminhar de chuva caindo
manchada de transparências e sedes
levada pelo vento
soprando de dentro da quietude
e da metáfora sempre incipiente da vida

Passa a massa
deambulante
esperando que lhe digam com o que e como deve sonhar
com o que e como deve sorrir
com o que e como deve chorar
quando ficar, quando partir
como e quando morrer sem incomodar

Passam os rumores indissolúveis dos átomos
fusionados na bomba que se despenhará do ar
quando o homem novamente tropeçar
e entender que é chegada a hora de matar
e matar, e matar...
com requintes de crueldade e sarcasmo difíceis de acreditar

Passarão, então,
os corpos dessentidos e exangues
sombras deambulantes de uma guerra que nunca acaba
nunca acaba de acabar

(Você pode se distanciar daquele que o persegue,
             mas não daquele dentro de você)
                         Provérbio Ruandês

O homem é o que é:
Capaz do gesto mais nobre
ou da vileza mais pobre

Fica a constatação de que beleza só não chega
para conter o animal que temos dentro de nós
e do qual não podemos nos distanciar

Passam, esgueirando-se rente aos muros,
meus inimigos com seus punhais de fogo
acordando as labaredas e os meus medos

Fica esta procura de um "Eu"
dentro dos poemas
e dos vendavais
que dizem-me
e que esquecem-me
em letras garrafais
lembranças distraída e banais

Fica na palavra um bocejo dormitando em nossa voz

Na noite fica a janela contente e aberta
vertida para a brisa e o silêncio entrelaçado
à abstração dos sentidos

Fica o alarido de vozes inquietas
fica esta multidão de saudades
esta ausência intocada
fica cada vez mais nada do nada
dentro do nada das idades

Fica,
de tudo que digo,
no poema que reluta em se acabar
esta vontade de fugir
somente sobrepujada
por esta necessidade de lutar

Imagem: Christian Schloe

domingo, 30 de agosto de 2015

Cidadão não é uma cidade grande


Cidadão,
como pode parecer aos mais afoitos e/ou mais aflitos,
não é aumentativo de cidade
não é o homem atrás da grade
da tela da TV
esperando o amanhã cair-lhe no colo em 3 D
engolindo passivamente as "verdades"
que eles têm para lhe dizer

Cidadão não é a fome
sem nome
brotando do chão rachado
morada do desatino
não é o pai
não é o menino
cujos os passos ouço no drama
na lama
não é o vento calado
não é o rio seco e estatelado
secando com raiva o gado

Cidadão não se faz
bebendo o fel na ponta da lança
cidadão não se faz
com crianças esperança
enquanto a multidão dança
entontecida e falaz
com os artistas em cartaz

Cidadão não é pronome
indefinido
relativo
possessivo
sem posses
sem nada ter
demonstrativo
sem nada para mostrar
interrogativo
sem perguntas a fazer

Cidadão não é agente da passiva
passivo
esperando que o inominado aconteça
e que o mundo renda-se a seus pés
como nos programas que vê
hipnotizado e a mercê
da propaganda sorvida
como parâmetro de vida

Cidadão não é o sujeito da oração
que de oração estamos fartos
cidadão é predicativo
ligando o pensar aos atos

Cidadão não é sujeito oculto
atrás dos medos
que vai ao culto
e carrega o terço entre os dedos
a bíblia embaixo do braço
e desanda em ladainhas
de frustração e cansaço
a escamotear divinos segredos
e mistérios da criação

Cidadão não é sujeito indeterminado
ao ostracismo fadado
sem saber se é ou não
escravo alforriado
criando o próprio mundo

Cidadão é sujeito simples
como a pedra e o poema
que vai a luta
e faz acontecer
entre as premissas do dilema

Cidadão é sujeito composto
de fibra e de valentia
de incurável utopia
luta, peleja, porfia

Cidadão é verbo
em todos os seus tempos
em todas as suas conjugações
com todas as injunções
é o ser que se flexiona e se expressa
em pessoa, número, tempo, modo e voz
para além da letargia dormindo dentro das noites
e o ofuscamento dos mil sóis das ilusões

Cidadão é quem faz os caminhos por onde a vida andará
levando as promessas e sonhos que ardiam
nos olhos da sua infância
inunda rios
faz cessar os calafrios
com assombros e estrelas
e luas que passam mudas
porém sempre lindas
sempre nuas
sempre dele
sempre tuas
faz o cego enxergar
e o obtuso questionar
para além do último pedaço duro de pão
para além do punhado de farinha
amordaçado ao feijão

CIDADÃO

cavaleiro da triste figura
a sonhar com Dulcinéias
enquanto os sonhos que sonham
os barcos ancorados nos poemas
enfunam as velas do mundo
e põe o mundo e os ausentes
no barco que parte silente
e sofregamente no mar
costumeiro
e por derradeiro
tira da opressão
coragens e forças para lutar
a luta mais árida e premente
a luta de se achar

Imagem: Christian Schloe

sábado, 29 de agosto de 2015

Tudo o que escrevo é poesia


Há cinco anos
quando comecei a escrever
eu procurava classificar meus textos
segundo categorias pré estabelecidas
(soneto, acróstico, crônica, haikai, poesia disto ou daquilo, ...)
numa tentativa aflita de segurar as gotas que caiam
devagarinho no avesso da terna e esvoaçante mariposa da memória
de separar o poema do não poema
a planta do seu floema
a contradição do dilema
os barcos calados do silêncio do mar
o grito aceso da chama que o faz gritar

De uns tempos para cá eu decretei
unilateralmente
pretensiosamente
e por me ver inteiro neste debruçar-se
sobre este rio impressentido me chamando
neste silêncio descuidado que não cala e dói
nas águas nas quais eu escrevo
e depois que dói
a dor derradeira se esboroa e não dói mais

Em segredo
encharcado de arrogante infância
onde eu era o rei
e todos deviam fazer o que eu mandasse
silente
ensimesmado
e cismando
decretei:
Artigo 1º - Tudo que escrevo é poesia
§ Único - Revoguem-se as disposições em contrário

Mesmo quando o instante dentro do texto
não via o poema que eu via
mesmo quando agora escrevo
o que me dita a avivada madrugada
como se fosse uma litania:

Agonia
  Agonia
    Agonia...

Imagem: Anatoly Timoshkin

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Vendem-se crises


Vendem-se crises
                      
Crise financeira (cujo pico de oferta se dá, para os humanoides,
                           entre o final do ano e o carnaval, se estendo ao
                           longo do ano.
                           Já para o país a oferta de crises financeiras
                           depende de escusos interesses políticos e,
                           em menor escala, de escusos interesses
                           econômicos)
Crise sem eira nem beira
Crise política
Crise plantada
Crise monolítica
Crise requentada
Crise déjà vu
Crise amorosa
Crise raivosa
Crise de ansiedade
Crise de identidade
Crise do parto
Crise dos 10
Crise dos 20
Crise dos 30
Crise dos 40
Crise dos 50, 60, 70, 80...
Crise de estar vivo
Viver é uma crise
a mais profunda
e ao mesmo tempo a mais banal
Crise de forma
Crise de conteúdo
Crise de coito interrompido
Crise de abstinência
Crise de ansiedade
Crise de choro
Crise de riso
Crise do bem
Crise do mal
Crise de valores
Crise sandia
Crise da crise
Crise sem crise
Crise emocional
Crise pré nupcial
Crise matrimonial
Crise moral
Crise de casal
Crise do pau
Crise anal
Crise venal
Crise renal
Crise fatal
Crise fecal
Crise banal
Crise atual
Crise mundial
Crise factoide
Crise factual
Crise existencial
Crise de nervos, afinal

Crise, crise, crise...
o que não falta são crises
diante dos nossos narizes

Vendem-se crises

Escolha a(s) sua(s) crise(s)
para ser um neurótico legal
um aloprado sem igual
um fortíssimo candidato
a embarcar antecipadamente
não se sabe muito bem pra onde
e lá, sim, aguardar tranquilamente?
pelo juízo final...
sem crise, espera-se

In(com)formado ou não
sabendo de tudo um pouco
para ver se entende este mundo louco
ou um alienado total
com a cabeça já na ratoeira
sem perder de vista o queijo
e o ouro na algibeira
sem perder o discurso formal
"manga com leite faz mal"
é o que diz o povo
e a voz do povo é a voz de Deus
deve ser por isso que Deus fala e faz tanta besteira

Escolha a sua crise
é só ligar o rádio e/ou a TV,
folhear a revista, se entocar no celular,
passar os olhos pelo jornal, acessar a internet,
conversar com a Claudinete, a Maria, o Zé, a Margarete
ouvir a Dilma, o Aécio,
o ministro, os políticos em geral,
a sociedade dita organizada,
a sociedade desorganizada, avacalhada, bagunçada
todo mundo tem seus "achos", sua versão para você adquirir
a crise que mais se adeque a você
a oferta de crise boca a boca não tem final
entra crise sai crise "nóis" é um povo batuta
"nóis" é um povo legal

cansei!!!
de tanto digitar e falar sobre crise entrei em crise digitativa
vegetativa, et cetera e tal

A crise que você quer está por ai,
te esperando
borbulhando mais que Sonrisal
mais faminta que calcinha de passista
mais veemente que um encontro sexual
naquele motel de quinta
ou numa suíte presidencial

Como concluiu o pensador enfezado e fezeano*,
mudo, cego, e surdo Baba Naglande,
depois de escarafunchar o mundo
em busca do Santo Graal:

"Os dias não são igual,
tem dia que é escuro puro
tem noite em que a luz
é um esplendor colossal"

PS.: *O pensador fezeano é o adepto da corrente de pensamento que proclama que tudo é uma grande merda.
E o que ainda não parece ser uma grande merda é por que não foi observado suficientemente de perto e/ou ainda não foi remexido com o ímpeto necessário a promover a pressão, atmosfera e temperatura ideais à sua percepção integrar do monturo

Imagem: Charles Louis La Salle

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O sofá não é lugar para os fracos


Aposentou-se há mais ou menos 10 anos

Desde então os seus dias 
são dardos lançados ao ar
cujos paradeiro e destino,
invariavelmente,
é o pacato e mudo sofá

Dias que nascem exóticos
narcóticos
há mais de uma década cumpre o mesmo ritual
café tomado
ainda mal informado das excrescências do dia
sentindo falta do inferno
sentido falta do capeta a proclamar o fim do mundo
sentindo falta do ópio televisivo
aloprado de tanta calmaria
para precaver-se de ser enganado
e manter-se um homem atualizado
refestela-se no sofá
anestesiado
os olho secos
jamais chora
ou demostra qualquer tipo de emoção
hipnotizado
indolente
crente
não só crente, como crédulo
cheio de certezas insofismáveis
liga a televisão
e para começar bem o dia
já tendo perdido o arrebol
rende-se às amenidades
da litania das notícias do futebol

Depois notícias e "fatos"
misturados com boatos
dos programas de variedades
fofocas
futilidades
mexericos de toda sorte
entrega-se ao estrume da morte
subliminar e subjacente
numa leseira demente e contente
de quem ouviu dizer que leite quente dói o dente
de quem ouviu o galo cantar, mas não sabe onde
sandices ditas como verdades
muito "acho"
muito "pitaco"
em transe, engole tudo que a tv lhe dá já mastigado
como se ele fosse um filhote de passarinho
e que ele posteriormente regurgitará
como se fosse a insofismável Verdade
recendendo sabedorias como um Sócrates midiático
e seu oráculo eletrônico

No almoço, arroz com feijão
em frente à televisão
prato na mão
a mente embotada
sem tirar as nádegas do sofá
assiste ao jornal local
para não perder nenhuma informação
entre uma garfada e outra
um pouco mais dos dejetos da vida
fétida e pustulenta
e da mental opilação

O dia, lá fora, caminha
sob o sol de um final de inverno
num agosto petulante e terno
brincando de ser verão
onde floreiam corpos, pernas e passos
andando no calçadão

O nosso aposentado sesteia
cochilando no sofá
ao fundo o blá, blá, blá, blá...
adstringente da televisão
ninando-lhe com seu ramerrão
obstinado, incessante
e fatal
a mente, é um peixe de aquário,
atávico e inerte
embrulhado em jornal


Na tarde o silêncio da casa se compraz
em se entregar aos programas policiais
No dia banal e infindo
a mão sonolenta e peregrina zapeia os canais
buscando o circo
seja ele de cavalinhos, de antas, ou de outros animais
ou embrulhado no jornal dos horrores
com tanta gente oferecendo
a tirana mixórdia para o rebanho displicente
indolente
que a engole convindo
zapeia buscando a estupidez da vida
na telinha que alucina
que mata e aleija sorrindo
nos programas sensacionalistas
chauvinistas
onde a matéria prima é a ruína social
os criminosos mais bárbaros
os crimes mais execráveis
a degradação humana perorando na sala
a miséria exposta feito bosta nas valetas
como uma fratura
que não calcifica
que não tem cura
o bordel político
o Estado sifilítico
o desvalido faminto e raquítico
com um cérebro paralítico
aberrações usufruídas e festejadas
 índices de audiência


À noite os sonhos estão no ar
melosos ou desesperados
novelas e jornais
convertem-se em pré-canção de ninar

NOTICIÁRIO NACIONAL

Chacina do Carandiru
dos meninos da Candelária
do Vigário Geral
chacina na porta do bar
chacina em rede nacional
assiste a todas
cada vez mais animado
deslumbrado
e digressivo com o faroeste nacional
assiste
com a alma ausente
o deprimente deambular
dos meninos
e meninas
que se drogam pelas ruas
tentando se enganar
e chamam caixas de papelão de lar doce lar
"escândalos"
corrupção
todo dia a mesma história chinfrim
que não tem começo nem fim
desde 1500 é assim
nesta terra onde se plantando tudo dá
e dependendo de quem pede ela dá sem nem plantar
a apodrecida grei
mandava suas singelas cartinhas
pedindo favores ao rei

Intervalo entre uma miséria e outra
entre a tragédia nacional
e a tragédia internacional

O homo sapiens se remexe e resmunga no sofá
os estertores da extinta? cauda a incomodar
se remexe e resmunga no sofá
sem no entanto tirar a bunda de lá:
"Assim não dá, assim não dá..."

NOTICIÁRIO INTERNACIONAL

Avião cai em Toka Gadu
morreram todos
sangue misturado à gasolina
fezes, suor e urina
e ele nem se azucrina
os olhos fixos na telinha
a desgraça como rotina

Furacão em Ku Dojudas
extravagantemente devasta a população
os olhos sequer se movem
em completa encantação

Trem descarrila no Caguistão
mata 236 e deixa 408 feridos
e ele fica esperando passar as imagens
do primeiro ao último vagão
para ver se não lhe escapa
algum cadáver fujão

Onde é Toka Gadu
Ku Dojudas
Caguistão?
Qual a relevância destas notícias
para um pacato brasileiro
desnutrido e desdentado
um Macunaíma, talvez?
Isto não importa
se houver sangue e desgraça
a mídia nos mostrará
fazem da nossa cabeça banheiro

Sangue e miséria jorram na tela
labaredas gritam na televisiva janela para o mundo
(ou seria melhor dizer: para o fim do mundo?)
convulsas as labaredas gritam
a ânsia sanguinolenta
a pulsar-lhe na retina
a tragédia estagnada na sala
defecando
numa mente que usam como latrina


Ele é um homem bem informado
ele sabe tudo o que é relevante
do Ribeirão da Ilha ao Ondeéquistão
sabe diferenciar com precisão
quem é bom
quem é ruim
onde é que está o bem
onde mora a danação

Nas eleições
bem informado
e ciente de que as coisas não são bem assim
como diz em seu discurso original
que todo político é ou será ladrão
vota no que ele chama de "o menos ruim"

Passada a eleição
sem qualquer responsabilidade pelo que o cerca
sentadaço no indefectível sofá
assistindo aos indefectíveis noticiários
ele resmunga de si para si
para não ter o trabalho de abrir a boca e se cansar
"assim não dá, assim não dá..."

Graças à televisão
ele é um homem de vasta visão
com um discurso despossuído
desmilinguido

Entre um jornal e uma novela
entre um programa de futilidades,
digo de "variedades"
e os do esporte do povão
ainda achou um tempinho
para um infarto despótico do coração

Guerras
tragédias humanas e sociais
lamentos da vida besta e tola
assaltos
corrupção
a canalha
ladrão saindo pelo ladrão
jogos de poder
loucos de toda sorte
a escória social
os militantes da morte
vísceras expostas
o circo de horrores dando função na sala
são-lhe coisas indiferentes
banais

Ele é muito racional
nada lhe comove ou lhe faz mal
além do que
o mundo foi feito para se acabar mesmo
ele só está se antecipando ao fato
se adiantando ao fim
assistindo-o de camarote
com volúpia
em tempo real
só mudando de canal
com o controle remo(r)to nas mãos
sem precisar tirar a buzanfa do sofá

Acha a vida moderninha bacaninha
com este "guru" em plena sala
trazendo-lhe tanta informação indispensável
e impensável
e muita orientação
da saúde à unha quebrada
da política à religião
de como educar os filhos
(cada vez mais mal educados)
e aumentar a erudição
até que o humor negro da sina
numa disputa intestina
obscureça-lhe o entendimento e a arguta visão
e o ponha a repousar
até o juízo final
ou a próxima encarnação
isto quem decide são os dogmas que acumulou
assistindo televisão

Lamuria-se por que na época da segunda guerra
os lares não tinham televisão
para a gente poder assistir
sem tirar o bundão do sofá
a um reality show num campo de concentração
onde os povos da babilônica aldeia global
votariam em quem deveria viver ou não
quem que iria pro gás
ou pro reles paredão (no caso aqui de fuzilamento)
ou o espetáculo espetaculoso da "Little Boy" e da "Fat Boy"
dissolvendo milhares de pessoas na exuberante explosão
que fez o dia do Japão parecer noite de São João
condenando outros milhares a dias de provação
ia ser tão educativo, informativo, lenitivo,
humanitário e relevante para a alma e o coração

Ia ser tanta diversão que uma vida seria pouca para tanta pândega

Por tudo que já viveu
por tudo que já viviu
só uma coisa ele lamenta, inconsolável,
na sua vida (que morreu sem ele saber)

o tempo que falta no dia para ver mais televisão
e aprimorar seus conceitos à luz do Iluminismo
caboclo que vigora aqui então

Imagem: Caroline Westerhout

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Campos de miosótis


Eu sumi
Você sumiu
Ficaram dias maduros
As noites também ficaram
Ainda surgindo do horizonte
Quando a tarde treme
No mais completo silêncio
E as estrelas transbordam
E passam,
Pequenas agulhas azuis
Perfurando a escuridão

Escrevi cartas em pétalas de flores
Uns versos
Com a mesma sede de barro
Que eu tinha na infância
Versos que se perderam
Talvez
Nos caminhos cansados de espera
No tempo adormecido
Dos teus olhos feitos de água
O tempo acendeu rosas brancas
Já não diz nada
Rosas brancas...
Quem quer rosas brancas?
Cultivadas na poeira entornada pelos dias
Acho que tu não quererias, por certo
As palavras podem atrapalhar,
dileta amiga
Por muito andar distraídos nos perdemos
O tempo acendeu saudades
As luzes da tarde caem como palhas e o vento,
Entrando pela janela desolada,
Rouba os barcos ao mar,
Mordendo a paisagem
Como hei de te reencontrar se barcos já não há?
O mar ficou inabitável
O tempo põe-se a dormir
Nas varandas caiadas de distância e solidão
Nos versos que faço ficam os
Rumores do cheiro inocente do voo do pássaro
O inverno escuta as chuvas
Entre o mar e o mar
Entre a manhã e a pedra
E a vastidão do silêncio
dos bosques a te procurar

Sinto sua falta,
Amiga minha
A música cessou
Imperfeita
Inaudível
Apartada de ti
Não
Eu sumi
Você sumiu
Há uma lua no céu entre os portões
Dos campos de miosótis
É noite nas águas e no olhar das lágrimas
Do silêncio a te procurar no exílio da tela branca
do computador

Eu sumi
Você sumiu
Fechamos os olhos dos sonhos
O primeiro sonho já dormiu
Mal o poema se abriu

domingo, 23 de agosto de 2015

Faça tudo que o Rei mandar, se não, ai, ai, ai...

 
a gente pode
dançar
sapatear
nadar nu no chafariz
tirar meleca do nariz

Desde que não perturbe o Rei

a gente pode
se arrastar de joelho no calor do asfalto
tramar e fazer o assalto
botar fogo no mato
caçar e espancar o rato

Desde que não estorve o Rei

a gente pode
agora que Inês é morta
virar cambalhota
por vassoura atrás da porta
maldizer as pragas da horta

Desde que não atrapalhe o Rei

a gente pode
se esgoelar de cantar o hino
torcer o rabo ao suíno
falar grosso ou falar fino
pode escorchar o menino

Desde que não abale o Rei

a gente pode
fornicar em plena rua
grunhir e uivar para a lua
sambar faminta e nua
viver da carniça crua

Desde que não acorde o Rei

pode a galinha gemer ao botar o ovo
torcer os grilhões ao pescoço do povo
fazer o discurso velho e roto parecer novo
eliminar nas chacinas os que nos são um estorvo

Desde que não atarante o Rei

Desde que não perturbe o Rei
Desde que não estorve o Rei
Desde que não atrapalhe o Rei
Desde que não abale o Rei
Desde que não acorde o Rei
Desde que não atarante o Rei
a gente pode fazer tudo

A gente pode fazer tudo
Fazer tudo o que o seu Rei mandar

O Rei,
em sua dulcíssima magnificência,
permite que inspiremos e expiremos
calma, pausada e passivamente,
sem fazer barulhos
sem sentir engulhos
por que o Rei não gosta de gentes
que inspira estrepolias
que expira sublevações
de qualquer jeito
em qualquer lugar
muito cheias de razões

O Rei não gosta de gentes que,
além de respirar,
também se põe atrevidamente a pensar
que respira e desanda a sonhar
e dana-se a bufar
querendo sacudir seu trono
querendo lhe derrubar

O Rei frita o peixe
com um olho no peixe
e o outro no gato
e mantém-nos timoratos
discutindo futebol e novela
sob a sola dos seus sapatos

O Rei exarou decreto
para dizer o que é certo
nesta vida meretriz
o certo é que devemos todos os dias nos banhar
pois nunca se sabe quando o Rei
em sua sanha de sexo
com o bigulim a bimbalhar
carecendo se aliviar
vai querer nos enrabar
e gozar, e gozaaaaar,
majestosamente gozaaaaarrrr

Senhor, eu sofro, só de pensar em incomodar o Rei

Senhor,
em sua infinita e "imparcial?" misericórdia,
abençoe e dê vida longa ao Rei

Viva Vossa Majestade!!!        Ipi ipi urra!!!

sábado, 22 de agosto de 2015

O tempo não existe


as horas
enlaçam tempos inamovíveis
de cores ausentes
de pássaros aliciantes
de um infrangível escuro
levantam-se fatigadas pelo vício
erguem-se de enganos infinitos
roazmente
e vão envelhecendo
até morrerem na ruína do ontem imediato
principiam e oprimem noites e dias
o ínfimo instante
entre a propositura e a diluição de um ato
de fato
não há passado
nem presente
nem futuro

O TEMPO NÃO EXISTE!!!

o tempo é discriminação mental
onde chora, aflito, o homem
é segregação racional e mendicante
fazendo da vida um ritual agônico
acidental e mortal
que em nós coabita
na mente que mente para a mente
e ela própria acredita
assim como a erva daninha no jardim se habilita
antes do advento da agonia das horas
havia somente o momento da agonia
imanente à existência
dormia-se quando se tinha sono
quando se tinha fome comia-se
sem o cacareco enfadonho
de um tempo a nos matar
de ansiedade
ou de um suicídio a vagar
os instantes
não escorrem das âmbulas das ampulhetas
nem vertem inclementes das engrenagens dos relógios
os instantes petrificados no tempo
emanam da insanidade
e do delírio humano
de tudo querer controlar

um milésimo de segundo
o transcorrer de um dia
tanto faz para a poesia
para a árvore
para a idéia primordial da rosa
para o rio que segue um curso
sem motivo qualquer
sem pressa, nem vagar
sem tempo
segue só por causa da topografia
que o arrasta até o mar
sem hora para chegar
tanto faz para a borboleta
se estamos em 2015
ou se faltam tantas prosaicas horas para o jantar
o cachorro sarnento
ou dentro de um apartamento
abanando suas pulgas
sonhando com osso
não faz a menor noção de que dia é hoje

é preciso despir-se da violência das horas
trescalada nos milênios de medo e de solidão
é preciso viver palavras e gestos
mergulhar no rio oracular de si mesmo
e deixar-se levar
até o mar
molhando-se na morte necessária
é preciso comer a fome ensandecida
por mais um punhado de vida
que traz em si o aceno da despedida
é preciso jogar fora os números insanos
e exauridos dos relógios
a ambiguidade das datas
e a perversidade dos calendários
é preciso distender-se sob o relento enovelado
estar presente quando a sina chegar esquecida
e nos chamar
e chegar a Verdade, talvez, canhestramente
talvez ingente, insonte e enxerida
enquanto uma criança
sem tempos a lhe consumir
com seu regadorzinho de plástico
dá de beber à sede vetusta das pedras
e depois as põe para dormir

Imagem:Слава Коробейников

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Já não me dói


as madrugadas imarcescíveis
nem sempre são perfeitas
quando querem ser pressagas noites
e se embebem de vestígios
de tantos tempos puídos
ocultos no sótão da memória

finjo dormir iludido
que o medo que tenho dos meus medos
já não me dói

quando atiram-me a pedra
e os pássaros,
assustados,
voam pressupondo o perigo
a pedra exaure-se em aflição
tudo, então, já é mais que antigo

o vento passa,
indiscernível,
sustenta no ar os dentes-de-leão
a vida sustenta,
nas coxias do teatro das manhãs
a pergunta insciente:
por que é que a vida já traz
o tanto da morte da gente?

Imagem: Charles Louis La Salle

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Eu digo a ela


Eu digo a ela
que tenho transtorno bipolar
ela olha para mim,
sem me olhar
seus olhos vão para um outro tempo
e choram em um outro lugar
e fala de uma prima que também teve
e que revirou-se dentro do mistério
cavucou todos os escuros possíveis
desamparada, teve vertigens
caiu dentro de todos os abismos
perdeu o pulso diante do pânico
lanhou-se com os insultos
e os tormentos que lhe cingiam a alma
sorriu demente para as humilhações
vagueou pelas alucinações
chorou todas as lágrimas doloridas
e indecifráveis
até seu coração cansar
e soluçar ausente
viu-se no meio da guerra obscura
caiu prisioneira da dúvida
e dos pensamentos tiranos
a alma prisioneira do escárnio
sentiu no despojo do chicote os seus crimes
temeu as noites
e tudo o que as noites escondiam
temeu os dias
e tudo o que os dias lhe diziam
esqueceu quem era
algo dela se desprendeu
e ela desapareceu em si tantas vezes
molhada de sombras
tremeu envolta na solidão
derradeira dos pesadelos
que a mutilaram com os cacos do espelho
insondável
e os destroços do seu ego frangível
andou nua
embriagada com o nada
afogada na frouxidão do grito
e na saliva amara dos lábios das madrugadas
enrodilhada na tempestade
retirou-se para lugares secretos
esqueceu o nome em lugares incertos
lugares cegos e desertos
sapateou nos dejetos
engoliu a beleza na face
junto com as lembranças sem sentido
mergulhou com as carências no chão fendido
calada
sempre calada
a voz, quando falava,
imperceptível e infatigável
já não lhe dizia nada
eram ontens
intrusos e estranhos
---
delirou
definhou
cuspiu a escuridão
que ela ouvia na neblina espessa
da mente tirana e carrasca
revirou os últimos baús
deu surdos baques à caixa de pandora
e correu para dentro de si
quando o primeiro demônio surgiu
desarvorou-se
acorrentada às madrugadas
buscando em uma das muitas vidas que lhe tinham
uma que lhe fosse grata
nada encontrou
pegou-se exilada e náufraga
partiu sem ela a fragata nefelibata
arrancou o mundo de si
sem ter a quem dizer adeus
se imola
se mata
(obedecendo ao que ou a quem?)
enforcada com uma gravata

E tudo,
depois dela,
numa indisfarçável indiferença,
continua a contemplar o mesmo distraído vagar
delirando outros delírios
que a sociedade decrépita
doente e maniqueísta
costuma aceitar
e estimular
nas alcovas alcoviteiras
onde a noite enlouquece a gargalhar
dos medos da multidão

Lá fora,
na noite engolindo o asco
um cão gane e uiva mentiras
para outros cães distantes
que respondem
ganindo e uivando imposturas
ensandecendo o instante
das noites dicotômicas e escuras

Imagem: Pooneh Jafari Nejad

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Não amo por que não amo, não amo por que não sei


Não amo por que não amo,
não amo por que não sei

Da vida sei poucas coisas
sei muito menos do amor
(não entendo nada do amar)

AMAR!...

Ah! Se eu soubesse amar
Um saber inventado a cada beijo
Um saber amar segredos de inocência
Um saber dizer te amo
Um saber sentir que amo
Um saber que as noites virão
e perguntarão por alguém
Colocarão flores nas janelas
Na janela, flutuando, motivos para sorrir
Saudades para chorar as lágrimas salgadas do mar
Colocar a chuva no telhado
embalando o meu corpo a um corpo colado
Cantar a alegria dos sonhos que amadurecem nos lábios
Ver a gaivota arrastando a tarde e o suspiro dos barcos
Ver adormecer o horizonte ardendo indomável
no fogo intenso das águas dos rios, entornadas nas margens
Sentir deitar em meus braços o corpo lasso das madrugadas
Urdir o mundo e a vida no silêncio dos giros dos cata-ventos

Não entendo nada do amar
Tão sutil e trêmulo o (a)mar
que os meus olhos ao vê-lo
meu coração ao pressenti-lo
já começam a me afogar

Um dia o amor veio e me procurou
sacudindo a brisa
tirando a minha camisa
brincando com os meus medos
rindo alto
pegando na minha mão
dormindo comigo no chão

Chegou!!!
Um passo antes do verão
Um céu sem nuvens no final da primavera
Um sonho casto pronto para desabrochar
Ela era o amor que a vida me guardou? Quem dera
Talvez o amor que da vida eu guardei? Quem sabe?
Veio nua dos seus medos
Linda e singela
Quem era a moça debruçada na janela
que ainda não sabia que era a meiga namorada
do amor que se exilou em algum momento meu
encenando o papel de solidão
diante da flor que lhe servia de plateia?
A moça da janela era ela

Mesmo não sabendo o que era o amor
o que era amar
eu senti, na liberdade cativa da poesia, que a amava
Eu não sabia (eu não sei)
Eu não sabia (eu não sei) amar
Mas quando ela veio eu a amei

Ainda sangra o desalinho nos lençóis e na vida
nos sonhos
no mundo
nos amores
das janelas cheias de flores
o coração nu e insonte
trazendo no regaço dias inteiros de palavras inocentes

Ela veio
E eu a amei
quando as manhãs acordavam tímidas
tecendo flores com  retalhos de solidão

Ah! Como eu a amei!!!
em meio aos anjos
em meio aos pomares de estrelas
amei-a com os olhos ardidos de medo
e os sonhos derramados molhando o mar
diluído em seus olhos
as velas dos barcos partindo
se desprendendo da bruma branca do porto
do deserto tombado e morto
amei-a com os gestos que eu não tinha
pus meu coração na janela
junto com as flores que teci com retalhos de solidão
ornadas de quatro ou cinco palavras inacabadas
tirei da porta a tramela
abrindo o dia em segredo
amei-a nos caminhos ressumados pela chuva
prementes de suspiros
enchendo as horas de demoras

Sem saber amar
estremeci
quando o vento passou
quebrando a sombra das palavras que lhe dizia

Sujei o amor com  a poeira dos meus medos
onde nas noites mais escuras o sentimento
era um cansado sofrer sem rosto
por mais que eu me procurasse
eu não encontrava ninguém

Ainda assim fiz outros versos
Versos estremes...
era o que eu tinha para lhe dar
Aves vadiaram como rios
Mares abandonaram-se fatigados de emoção
Manhãs cantaram saudades
apaixonadamente
Pássaros fizeram ninhos no vento
Bosques colheram primaveras
Andorinhas voaram nas noites brancas de abril
Anjos andaram distraídos
seguindo a poeira em suspensão nas frinchas dos raios de sol
Beijos inventaram urgentes manhãs

Tudo palavras
Somente palavras
escritas nas águas inabitáveis
de um sentimento que não lhe tocava mais
Palavras...
que o tempo e  repetição transformou em aflição

Agora eu sei
as palavras
mesmo que enternecidas
úmidas das verdades mais antigas
das novidades colhidas na seiva das flores alucinadas de amor
são pouca coisa
nada são
para um amor onde o verbo se ausentou
Eu não era o homem com o qual ela sonhava
com o qual ela dançava
para o qual ela entregava
o toque, o beijo, o corpo
todas as suas fantasias
o amor que partia
na estrada cada vez mais longe a cada dia

Sonhava com(o) quem dançava
Dançava com(o) quem sonhava

Eu só tinha a lhe dar a ausência da solidão das poesias
velando as noites dentro de mim
O verso perdeu o ardor
E quando chegou setembro
esquecemos as flores e as janelas
os espinhos na paisagem
eu já não era mais seu amor

Também há cansaço e estorvo
nas palavras sem memória da poesia
que faz-se enxame de abelhas
mordendo os lábios do dia
Também há cansaço na chuva que já não apetece
mesmo começando o verão em algum lugar

A poesia tremia embriagada
Sílabas e sílabas que só sabiam o nome dela
sozinhas nos dias imensos, alheios e distantes
Entre/mentes ela ronronava
como uma gata no cio
querendo bailar
o corpo exausto de desejo
do corpo de alguém
cativo de uma sensualidade e de uma luxúria
que não era eu
posto que, para ela, eu era ninguém

As palavras sem gestos
as palavras sozinhas não têm nada a dizer
As palavras, por si, não se guardam
Uma biblioteca inteira esquece-se
Nada mais é que o vazio quando o coração sai de casa
a flanar em busca do gesto e do ato
que as palavras não podem dar
não sabem ter

*"Queime depois de ler"!!!

*(Título do filme dirigido por
  Ethan Coen e Joel Coen)


Imagem: Steven DaLuz

domingo, 16 de agosto de 2015

Geraldino também quer brincar


Dia 16
mais uma vez
a turma do
comer
trepar
dormir
vai às ruas

Não sei por que este tipo de "movimento?",
que só anda no açoite,
me lembra algumas revoluções
especialmente a francesa
o povo, massa de manobra desde que o mundo é mundo,
instigado por interesses que fogem ao seu conhecimento
e à sua compreensão, como antigamente vai para as ruas,
sem direito nem ao brioche,
vai para as ruas
dizer palavras de ordem
convencido de que está participando ativamente de um grande momento,
que tem voz e que tem vez
que o "REI" vai olha-lo e lhe cumprimentar
depois que o mar for para Minas e a luz do sol apagar

Geraldino também quer brincar
Sonha Geraldino!!!

Sacodem a massa amorfa
tiram-na solenemente
sonolenta e preguiçosa
do berço esplêndido onde costuma ficar
e põe-na a marchar
tendo como estandartes as cortinas duras e cheirando a esperma
de antigos e perenes lupanares

O povo, avesso a qualquer tipo de luta e de incômodo
naturalmente aparvalhado e entediado politicamente,
refratário, por índole moral e cristã, (leia-se comodidade) a estardalhaços
vai pras ruas
insonte, tadinho
MEU DEUS!!!
o povo está na rua
alguém vá lá e pergunte ao povo, antes que ele se machuque,
ou antes que ele se recolha ao berço esplêndido
com um riso bobo no rosto e a sensação de dever cumprido:
"Povo, estás nas ruas fazendo o quê? Logo tu que és tão pacato?"
"Sabes para quem fazias o que fazias?
"Para ti?" É o que me dizes?
Povo, algo ou alguém te engana
se acreditas que "Do povo e para o povo todo poder emana"
visto que isto que fazes não é da tua natureza reconhecidamente inerte
de viés pacato e ordeiro
que anda pé ante pé
devagar e mansinho
para não fazer barulho
para não levantar poeira
e não incomodar o "REI"

Tanta parvoíce se diz e se faz
pela incontida vontade, quando induzida, de falar
depois de uma vida inteira pacata e calada
tanta idiotice se diz e se faz
para se defender um reino de um rei que nem se sabe quem é
pela arrogância e a intolerância
pela estultícia
refletidas em parcas e cansadas memórias
pelo simples medo do medo enraizado

Tão boa a vida inconsequente
a vida de histrião descontente
a vida espargindo seu cômodo silêncio
meditando o cricrilar dos grilos
e o gutural coaxar dos sapos
e pouco ou nada importando as lágrimas
quando, seco os olhos,
a dor torna-se inacessível
e a última bofetada
e o último soluço engolem sufocados
o fragmento triste e doloroso
da morte moral

Dia 16 de agosto
mês de cachorro louco e desgosto
a classe média sem rosto
subindo nas tamancas
sob os holofotes de verdes e amarelos instantes
vai vadiar pelas ruas o "seu?" descontentamento
vai adiar
o almoço
a trepadinha rapidinha e sibilina
e a sonequinha de praxe

Hoje disseram pra ela ir pra rua pra protestar
ela vai
como o menino de recado vai o recado entregar
Mas, diante da sua incoerência indefectível e,
diga-se de passagem, incorruptível
ela, de si para si, não tá nem aí pra bandalheira
sonha, no íntimo, com um deputado, quiçá, um senador
um deputado para chamar de seu
se for um senador então..., ai Jesus
que arranje uns tijolinhos pro puxadinho
que arranje um emprego bacaninha pros seus filhinhos
se possível que dispense concurso
por que concurso tem que estudar
e os meninos saem muito à noite pra socializar (pra vadiar)
e durante o dia os pimpolhos, tadinhos, têm que descansar
se não tiver um carguinho
uma carta de apresentação, que seja
um deputado que lhes arranje um sorriso novo
um sorriso que seja a cara do povo
alguém que, pela graça de Deus,
arrume um par de belas tetas para ela também mamar
E, sonhando, eleição após eleição,
vota nos mesmos a que chama tão intimamente de ladrão

Enquanto a passeata passeia
no domingo ensolarado
chiando como um velho disco
pela Beira Mar afora
onde as águas são fezes pura
cai dos canos do petrolão
duas ou três gotas de gasolina
que incendeiam a lava jato
e a histeria do povão


Passado o momento cívico (cínico?)
tudo vira uma grande e descomunal piada
e ri-se, parvamente, até a boca ficar exausta
ri-se o riso gratuito, fácil e insano dos tolos
para os quais uma vida não chega para tanta pândega

E a vida, então, entra no prumo
onde tudo é sempre a lesma lerda

"Bem informado?", o povão
há algum tempo fez isto:
crucificou Jesus Cristo
entre o ladrão e o ladrão

Vá os cidadãos, espontaneamente, para as ruas reivindicar seus direitos...
Provavelmente a mão pesada do REI descerá sobre as suas espinhas de cão sarnento.

Debocha o Art. 7º, inciso IV, da Constituição Federal: salário mínimo capaz de atender as necessidades vitais básicas do trabalhador e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social...

Valor do salário mínimo em 2015: R$ 788,00 
                                   Valor diário: R$ 26,27
                                     Valor hora: R$ 3,58
1 hora da vida de um trabalhador pode valer R$ 3,58
Quanto custa 1 ovo colorido de boteco?

Alguém aí já viu/ouviu conclamações à população para protestar contra este que é, sem dúvida, um dos maiores escândalos que o país já viu?

Viva-se com um salário destes!!!

Enquanto a passeata passa o silêncio se despedaça impotente na tela do meu computador

sábado, 15 de agosto de 2015

O rebanho

 
(Poema baseado no poema
"Erguer a cabeça acima do rebanho"
de Affonso Romano de Sant'Anna)
 
 
O rebanho pasta mansamente
a grama velha e pisada
a grama tantas vezes mijada
tantas vezes cagada
como se fosse uma grama tenra e fresquinha
 
O rebanho só vê uma face do escuro
não faz idéia de quem põe os tijolos no muro
quem serve nas refeições o capim seco e duro
 
O rebanho não se recorda
de quem o amarra com uma corda
tão curta para ele pastar
 
O rebando anda a esmo
fazendo sempre do mesmo
vivendo por precisão
engolindo sem mastigar
o que lhe dão de ração
desnorteado e displicente
girando os giros do globo
entre a mão que solertemente lhe afaga
e a mão que lhe espreme a chaga
não sabe onde se esconde o lobo
 
Que o encanta como o osso encanta o cão
e lhe devora
sem dó ou comiseração
sem que o rebanho esboce
a mínima reação
 
O lobo embosca e caça a presa com o medo que dissemina nos ventos


sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Como entender os rumores das águas?

 
Como entender os rumores das águas
entornadas sob os barcos que trazem os ventos e as areias
trazem as tempestades e a sede dos desertos
águas procurando os prados em meio a bruma?

Como entender que apunhalam-me
em silêncio
com seus punhais enferrujados
comovidamente impiedosos
lanhando-me em nome de um mundo prosaico?

Tudo é tão volátil quando a gente chora
e as manhãs, escorrendo das madrugadas,
sobrepõem aurora após aurora

A vida é tão singular:
nascer, puxar a ponta do fio,
ir desembaraçando o fio,
desmanchando os nós,
sentindo, amando, sofrendo, perdendo-se
desesperada e incompetentemente
perdendo-se no giro da roca
pretensa e arrogantemente
achando que se achou
morrendo por que se vive
dentro do engodo do instante
sufocado pelas coisa mais ínfimas
pelas coisas mais íntimas
e quando se vê a hora já é distante
a vida adormeceu em meio ao burburinho
dos passos que subiam as escadas
tropeçando nos rumores das sombras
no murmurar da poeira

Como entender e desvelar esta alma sutil?
se a vida vagueia
ignara, amoral e estilhaçada
diletante e cega
por entre jardins que florescem
as tantas flores dos vícios
e manhãs que se fazem orvalho
com as lágrimas tangíveis dos desejos
fazem-se
torrão de terra
semente
colheita
premência
dissolução
mistério a pender do galho
onde a ferrugem corrói as horas
onde pousam pássaros
fugidos das arapucas
gaiolas
pousam na liberdade
das grades
da vida por divagar

Imagem: Christian Schloe

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

A vida quer respostas


A vida me inquiri,
e aguarda...
distraidamente dissimulada em mais um dia
dentre tantos dias inumeráveis
quer respostas

Das tantas questões com as quais a vida me interroga
a mais difícil de ver-lhe a face
é a da Liberdade transbordante dentro da Verdade

O dia toca o nome e o silêncio dos caminhos
os primeiros azuis tocam o céu
os tenros verdes regam campos antigos
nada sei das nuvens que passam estrumadas de melancolia
tiraram-me, sorrateiramente, os olhos com que ver
e o discernimento necessário para entender a inocência azul
deste céu separado dos homens e dos ventos

E a cada dia entendo menos
quanto mais me questiono
mais se escondem em mim
as respostas e seus segredos
afloram as eternidades dos medos
me inundo de um não saber dolorido e agônico
de um grito entornado,
porém sempre inacabado
e o tempo sangra imperceptível
e o grito pronuncia intermitente
o súbito e infinito silêncio eloquente
do vôo dos pássaros transmutados em pedras
um grito que vocifera a palavra que passa extensa e lenta
nas águas lacrimejantes e decepadas do rio
para findar e morrer
e ir embora
carregando consigo
o esboço incognoscível da poesia
caminho paciente entre as ilhas
que balançam nos mares maduros no fim da tarde
nos ares uma gaivota, sem bater asas, atravessa o gesto a luz e o céu
O que acontece, então, é Liberdade?

Imagem: Siddharth Shingade

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

A quem interessar possa


Em tempos de petrolão e lava jato
com as pessoas induzidas a um estado de transe histérico
inquietas como cães sarnentos com carrapato
é um bálsamo poder ouvir alguém sensato

E esta pessoa sensata que tive o prazer e a dádiva de poder ouvir foi o economista André Perfeito, economista chefe da Gradual Investimentos, Mestre em economia política , nomeado o Economista Chefe do ano pela Ordem dos Economistas do Brasil, que concedeu entrevista ao programa Ponto a Ponto da Band News TV. Extraí da entrevistas alguns pontos dentre os que achei mais relevantes do seu raciocínio embasado, crítico, claro e sensato. A entrevista é um alento nestas épocas em que a razão sumiu do mercado e pensar racionalmente é um ato de poucos. A massa, como sempre, entrega-se à emoção, ao rancor e rejeição, fundamentados num medo criado e estimulado (dois minutos de ódio do Grande Irmão?) Uma torturante torneira pingando diuturnamente na testa e nos ouvidos do maior responsável por isto tudo que tá aí: o dito "cidadão?", que, provavelmente, não faz a menor idéia do que venha a ser um CIDADÃO. Tempos de muita emoção negativamente aflorada e estimulada e de pouca ou nenhuma razão. Mas isto, estranhamente, é o ser humano. 
 
As frases em vermelho são os excertos da entrevista.
 
O texto em branco, logo abaixo de cada uma das frases, é o meu comentário acerca do que foi dito.
 
1) - "...estão achando que vão tirar um partido e tudo certo..."
 
A grande maioria das pessoas, deitadas eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo, acham que trocando A por B tá resolvida a questão. "Pensam?", se é que se pode chamar de pensar a um espasmo involuntário de um neurônio de pensar, "pensam?" que o capeta habita só o momento presente.
 
Estas mesmas pessoas talvez nem saibam que o "som do mar" do hino nacional, para muitos brasileiros, manifesta-se no som dos esgotos correndo a céu aberto nas vielas e becos da onde moram e que a "luz do céu profundo" não passa de um cotoco de vela aceso sobre uma lata enferrujada ou a bruxuleante luz de um lampião a querosene.
 
Quantos As e Bs já governaram o país?
 
O que fizeram, ou não fizeram?
 
O que realmente mudou em cada governo em prol das pessoas comuns, eu e você?
 
O que mudou a não ser as moscas?
 
Eleição após eleição sempre acaba em decepção.
 
Neste jogo sujo e de cartas marcadas que é a política nacional o nosso voto, que nada mais é do que a expressão dos nossos anseios, me parece que é um mero gesto simbólico a fim de nos fazer crer que temos voz ativa nesta patacoada, nesta grande mentira chamada eleição. As eleições são uma farsa para dar a sensação ao eleitor de que ele tem vez e voz neste sistema podre e impregnado de interesses escusos, mentira e embuste.
 
Acredite em eleição quem quiser ou for muito carente de atenção e cuidados.
 
E mais, depois de todos os governos que por aí passaram acredite em partidos e políticos quem não tiver memória ou não tiver vergonha na cara, ou os dois.
 
Depois do papai noel e da fadinha do dente a eleição, os partidos políticos e os políticos são a maior mentira, a maior trapaça nacional, quiçá, até mesmo mundial. Digo mundial por que não acredito que nós fomos capazes de desenvolver sozinhos um "modus operandi" tão sofisticado na sua mais precípua canalhice.
 
Você já viu algum governo, seja de que partido for, seja de que corrente for, incomodar, enquadrar, os detentores do dinheiro (banqueiros, empresários, escroques... et catraia)? Pois é!!! Nem eu.
 
Os banqueiros e empresários deitam e rolam nesta terrinha em que se plantando tudo dá e se conchavando dá mais ainda.
 
Vide o descalabro dos juros bancários, os juros do cheque especial chega a 457,24 % ao ano, e a usura nos preços e produtos praticados neste brasilsão de "meu deus!!!", de sol e mar, cerveja e cachaça, futebol e novela, muita "night" e muito "face", whatsapp, coisas que tal, fofoca e discurso vão, bundas, sonhos de consumo, mulheres com o cartão de crédito e o cheque especial de fora. Só se for agora.
 
Os preços das mercadorias e serviços, as tarifas de toda sorte e os impostos impingidos ao "cidadão?" são de primeiríssimo mundo. Os juros bancários extrapolam qualquer limite de compreensão e são do outro mundo. Já os serviços públicos colocados à disposição do incauto e sempre crente "cidadão?" e os salários pagos ao trabalhador são coisas do fim do mundo.
 
Aqui eu lembro Cazuza:
 
Brasil
Mostra sua cara
Quero ver quem paga
Pra gente ficar assim
Brasil
Qual é o teu negócio?
O nome do teu sócio?
Confia em mim
 
Muitos já cantaram ou escreveram as mazelas nacionais. Gregório de Matos Guerra, nos anos de 1600, já denunciava o jeitinho brasileiro. Portanto não há nada hoje que já não tenha sido visto antes. Vivemos um déjà vu constante, mas o único neurônio em ação do símio não capta e/ou não processa a informação.
 
Eu fico me perguntado aonde é que as pessoas se escondem que não tomam conhecimento destas coisas e, se tomam, por que é que nada fazem?
 
2) - "...o momento que a gente tá vivendo é muito sério e o desmonte político que tá havendo em cima da presidente, em cima da governabilidade..."
(A frase foi dita assim, truncada. Mas eu acho que quem está acompanhando o momento político entenderá)
 
O momento seria sério caso houvesse o mínimo de seriedade neste país. O que há são interesse de grupos que, não obrigatoriamente têm compromisso com a seriedade. A vivência mostra que seriedade não é o nosso forte. Nem por parte do "cidadão?" que, para alguns, tudo é motivo para piada e chacota, conduzido como boi de boiada, nem por parte dos sistema político, nem da tão aclamada "democracia". Ou seria melhor dizer "merdocracia"?
 
Democrático país este nosso onde o degredado filho de Eva não come
Democrática nação cujo o rei, o déspota ou o gigolô,
seja lá quem for que nele impera, nem lhe sabemos o nome
Democrático país no qual a plebe,
esta pústula exposta,
é uma massa faminta e esquálida,
amorfa, vassala e sem resposta
fedendo à bosta
A plebe que entre uma eleição e outra torna-se invisível e some,
servilíssima massa de manobra,
Geni boa para apanhar
Democrático país este nosso, sem alma,
cujos eleitores majoritários são a ignorância e a fome
 
3) - "...as pessoas estão se iludindo muito fácil..."
 
Eleição após eleição
Entra governo sai governo
Vendendo a alma ao cão
Ou aos anões do orçamento
Faz tempo que está no ar
esta catinga de excremento
Poder e corrupção
Mensalão e petrolão
Sempre a mesma ilusão
Sempre a mesma decepção
E o pacato cidadão
chacoalhando no busão
à mercê do Grande Irmão
O Grande Irmão te conduz
do colinho da mamãe
até o inelutável caixão

(Quem é o Grande Irmão? Leia o livro "1984" de George Orwell para ver se os neurônios pegam... nem que seja no tranco)

Aí você me diz: "Ah! Mas tem que ler? Eu não gosto de ler!!!
Aí eu te digo como os meus amigos de Mountain View diriam: "No problem"!!!
Alguém já leu ou vai ler e fez e faz de você isto que você é hoje. Simples assim!!!

 
Passado o festim e a embriaguez homérica da eleição, calado o canto da sereia partidária, sossegado o facho, a fúria e a estrepolia midiática do pseudo e sempre requentado "o maior escândalo que já se viu", o crédulo e insonte eleitor "patrão" (lembra da propaganda?) volta ao marasmo do sempre mesmo ramerrão e retoma a boa e velha resmungação.
 
Incrível como a massa é crédula e facilmente manipulável. Deve ser algum problema genético que vem desde a origem do homem.
 
4) - "...enquanto isto a oposição fica brincando não sei exatamente de que e achando que quanto mais sangrar a presidente melhor..."
 
A oposição brinca hoje do que o PT brincava antes de ser governo, quando era oposição: tocar fogo no capim seco em meio à vegetação. Só que com um agravante: a oposição de hoje encontra respaldo e eco nos interesses e interessados que de fato mandam no Brasil, independente de partidos políticos. E, desculpe-me desaponta-lo, não foi Sarney, nem Itamar, muito menos Collor, FHC nem pensar, não foi Lula, não é Dilma, nem serão os próximos que você elegerá como o eterno e indefectível salvador da pátria quem comanda o Brasil. Ouço, vindo da coxia, o repique de moedas, o tilintar de muitas moedas, dizendo a hora de falar e de calar. Como diz o velho deitado: quem é rei nunca perde a majestade. O ditado é surrado, mas, no nosso caso, reluz como uma pérola de sabedoria. E o rei gargalha a não mais poder diante da nossa simplória antropofagia.
 
5) - "...o Brasil é o único país do mundo, na minha opinião, que metade dos passageiros do avião querem que o avião caia só por que não gostam da presidente, só por que não gostam do piloto..."
 
Na queda do avião, entre vivos e mortos, salvam-se os de sempre, que pairam sobre a vida e a morte, pairam sobre a condição (des)humana e miserável em que vive boa parte da população e o outro tanto que sobrevive somente para pagar impostos. A bem da verdade não vivem, nem sobrevivem: já estão mortos. Só esqueceram de deitar.
 
A íntegra da entrevista do economista André Perfeito pode ser vista no site:
www.bandnewstv.com.br, programa Ponto a Ponto de 07/08/2015.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

O filho da puta e o senador


Sob o estigma de "supostos" desvios e falcatruas
Vossa Excelência se dirige ao palanque
A vida,
de repente,
malbaratada e enxovalhada novamente
Nas mãos a malícia de um discurso tantas vezes lido
torcido, distorcido, retorcido e repisado
Um jogo de gato e rato jogado todos os dias

Inicia sua defesa
A voz calma e pausada
Se culpa havia na entonação desaparecia
Desaparecia nas entranhas arcaicas
e na amnésia providencial da política
As rusgas e anomalias prosaicas da retórica pedem
a saliva afogada das palavras inescrutáveis
No gesto e no tom a admoestação e o protesto à vil perseguição
Negações
Evasivas
Fugas
Alienações
Juízo de valores
Valores sem juízo
Faz-se urgente tirar a pedra amarrada aos pés
quando o corpo já pressagia o fundo onde a lama o espera
Emparedado
busca nas coxias do teatro político
decadente e velhaco,
as personagens ressentidas
que darão vida e voz ao discurso
que os dentes tantas vezes mastigaram
como se mastiga o adversário
e entregaram à boca articulada do boneco do ventríloquo

Diz da sua vida ilibada
Da compatibilidade de renda e de bens
Da intriga sórdida e pusilânime
Do seu vigor intemente diante da injustiça
Da incandescência luminar da sua pessoa
Da vida que se pretende jogar ao chão à toa
Ficam subtendidos
a humilhação
o soco
o choque
a delação

As palavras pungentes borbotam
distraídas e insontes como o silêncio
que estimula a voracidade do rato
e impele sua coragem
em direção ao queijo na ratoeira
antes do baque surdo da ratoeira a lhe pegar
Palavras recortadas aqui e ali pela ira contida e dissimulada
que se encontra amordaçada em cada homem

Em seu ninho a serpente vocifera e chacoalha o guizo de anéis

De repente
a ira aferrolhada entre grades complacentes
deixa escapar entre dentes
numa outra voz mais humana, mais insondável
o murmúrio
o sussurro
dito para o vazio ali parado sobre o momento
diz, somente para os átomos do corpo,
de si para si,
mordazmente,
o que pensa do procurador que o acusa:

"Filho da puta"

A frase, grito invertido,
perversa,
escorre, escapa e foge
assim como quem solta um punzinho
achando que ninguém vai ouvir
e o "punzinho" se rebela virando sonora proclamação

No Senado Federal,
"casa do povo"
onde o povo não se atreve a entrar
só olha de fora
cabeça baixa e calado
no máximo a petulância de resmungar, resmungar...
o axioma moral pende solenemente dos lábios
operísticos do preclaro senador
como um resmungo sonâmbulo
e deixa-se ficar no silêncio ilibado da sessão

Da verdade pouco ou nada resta
O rio seguirá seu curso e as margens o coagirão
seja ele um rio de planalto ou de planície
que seca na seca ou perene de aluvião

O procurador que procure na genealogia familiar
e perquira nas atividades laborativas de sua genitora
a confirmação ou não do aventado
ou se o impropério veio da danação
de um homem acossado e supostamente aviltado
em sua honra, em suas dúvidas em suas dívidas sociais

Com palavra pomos flores e perfumes na pocilga que é este país varonil
e em momentos de ira incontrolável ou conveniente
desembestamos a colocar putas e luzes vermelhas pelos lares do Brasil

Senhor Senador,
Por mais palavras que usemos
Por mais que os passos escamoteiem por onde fomos,
de onde viemos
A consciência nos diz com fragor aquilo que somos
A máscara rasgada e combalida ainda é máscara também
Senhor Senador.
Vossa Excelência foge do que ou de quem?

A natureza é concisa
mata e morre
quando deve matar ou morrer
e não se equivoca
onde deve por o ponto final.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Domingo


Domingo
Agosto amadurece
na brisa da madrugada amena
que respira solidão
Seis horas da manhã
A madrugada ainda dorme na  sacada
de onde vejo a mulher que passa sozinha
caminha
passos apressados
arranhando a ainda madrugada
a manhã adormecida
compondo formosura
e fragrantes silêncios transparentes
Aonde vai
sem que a luz a veja?
A cada passo faz o passado
faz o instante do fim da espera
O que busca na cidade ainda vazia e dormente?
O que deixou na cidade além dos gestos e dos passos
que somente as esquinas viram?
Busca o mar que se escondeu na memória da infância?
Deixou sonhos?
Deixou os olhos no céu
entre os astros que já descem para as águas azuis do mar
e se afogam de vida
para poder ressuscitar?
Busca os barcos ressoando nas areias?
Busca o beijo do dia e o seio das rosas?
Deixou alguma tristeza na melodia ritmada dos passos?
Leva o tempo passado adormecido em seus braços?
Espera o sol tecer o pólen dos seus raios
e amadurecer favos de mel entre os seus dedos?
Talvez nada busque
Talvez nada deixe
Talvez nada espere
Anda sozinha a estas horas por que ama o sossego
das praças e jardins ainda molhados
por uma lua inacabada
Caminha pisando a solidão das folhas
que o vento antigo e insone derrubou
Quantas vezes?
Na quilha da madrugada,
anda absorta
do jeito que os rios profundos e ensimesmados andam
O silêncio transbordante das ruas é diferente
na madrugada que passa com a mulher
percute uma vária melodia dentro da madrugada sem gente
O vento, se espremendo em cada esquina,
aos movimentos da mulher e aos seus sonhos de menina
acorda pássaros pressentidos,
bilrando nas árvores,
trinando entre os ramos adormecidos
nos derradeiros escuros amarrotados pela noite

Passa na rua uma mulher
na rua que vai passando
A mulher
que o tempo todo esperava
o tempo todo esperando
Anda apartada do mar
pela rua que vai passando
No tempo que esperava
o tempo todo esperando
as estrelas saírem das águas
por que não sabem nadar
e vão acabar se afogando
E a mulher na rua passando
A madrugada se desmanchando
A aurora se recriando
à luz dos passos
da mulher na rua passando
como quem dança ao caminhar
como quem dança flanando
esquecendo as horas no ar
fazendo-se a parceira do sonho
que na vida vai passando
e com ela põe-se a dançar

domingo, 9 de agosto de 2015

O canto silencioso da lua atravessando o céu


O sol vai trespassando a ausência e a distância
entre solitárias sombras
se desprendendo do ar
mergulha lentamente no horizonte
e se cala
e aspira a ternura fragrante do céu
meus olhos a beber das cores que vão caindo
das esquinas
falam de saudades
extasiados e tontos de entardecer

A noite espera,
graciosamente nua,
envolvendo as casas e os ventos

Por entre a vegetação a noite se alteia
sagrada e simples
comovidos, os sinos tangem os céus
bimbalhando Ave Marias na semi-escuridão
alento para as vidas se esboroando

A lua, palmilhando folha a folha,
pedra a pedra,
estende-se languida nos telhados onde o barro
pode ser gente ou flor

Outra noite

O gesto e o passo envelhecem

Caminham os caminhos prosaicos
e monotonamente infindáveis
dos homens reclusos em suas certezas
e nos medos que não sabem partir
sorvendo nos próprios lábios o gosto travo
da solidão de existir

Escuto pelos vieses da noite
a rouquidão do silêncio
falando de mim mesmo
o choro dos galhos ao vento
o medo da flor úmida de sereno
esta fragilidade que não cessa

Na noite inextinguível
tardo a olhar o enigma
o tudo
e
o nada
ludicamente ouvindo

o canto silencioso da lua atravessando o céu

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Não sou nada


Nasci chorando

E desde cedo achei que o mundo era estranho
Não o mundo exatamente
As pessoas
As pessoas eram estranhas
Com seus sorrisos amarelos apesar dos dentes alvíssimos
Com suas certezas arraigadas
Com seus orgulhos contemplando a demência
Com seus deslumbramentos cansativos e fúteis lambendo enormes egos
Com seus medos inviolados
Com seus passados que não passam nunca
Com suas impiedades cheias de frustrações e segredos indizíveis
Com suas casas caiadas olhando o passar do tempo
Com suas noites inquietas admoestando a existência
Com suas vidas resignadas
Com suas religiões fretadas a um deus do escambo e da usura
Com seus anjos e demônios,
céus e infernos
Com medo de uma derradeira morte
Com suas vontades insofismáveis de irem para o céu,
mas não querendo morrer
Rezando repetidas ave marias e pai nossos para purgar o mal
dos seus corações expulsos de um paraíso que se perdeu lubricamente
Mas a reza é apenas pró forma
diante da irreprimível tendência de repetir sempre os mesmos erros,
vivendo da sempre mesma luxúria
da insinceridade da intenção de corrigir-se
que um padre ou pastor mendicante ouvirá em nome de um deus
oferecendo linimento e salvação: Ide e pecai,
que nada é o bastante para a renuncia de deus

e, então, tal como a pedra, já não lhes dói outro dia

Hoje, exausto de tanto morrer a morte de todos os dias,
sei que não sou nada
e não sendo nada sei e/ou intuo que o diverso e estranho sou eu
que, insolente, apontava-lhes o dedo
não vendo o lobo
só enxergando a manada
deambulando na jaula das aparências
Não encontro par entre meus semelhantes
Ninguém diz meu nome
Ninguém sabe da minha fome
Erro e não tenho a quem suplicar linimento e paz
Deito e levanto com meus demônios,
cansaços e remorsos a me fustigarem
Diante do rosto fragilizado da dor
sinto os olhos marejarem
O que restou das horas emigraram da terra,
tornaram-se vendavais dessangrando o destino
Meus gestos resvalam a vida
Vislumbro outras possibilidades para a vida e para a morte
porém meus olhos estão desatentos
exaustos de mim
minha vontade, complacente
A mesa está posta
Vencida a fome
no chão restará poeira e migalhas
quando eu acabar de comer e me for
e submergir nos labirintos das humilhações

domingo, 2 de agosto de 2015

O silêncio não existe


O silêncio não existe!

Posto que haverá sempre
o sibilar poroso do vento se insinuando
pelas frestas do dia
infatigável, doce e claro
Rumores de passos andando
no cimento das calçadas
na madeira carcomida da ponte
nas ruas de terra
nos paralelepípedos escorregadios
depois da chuva da noite
nas ruínas de antigos tempos
nas distraídas saudades
nas vielas baldias da loucura
em direção aos botequins
no caminho indeciso do bêbado voltando pra casa
chorando sem pudor
tanta dor
tanta dor
regressando para os braços do seu amor
na madrugada caiada de abandono
onde um cão ladra
e sombras descem das luzes dos postes
Asas ruflando
num céu escapando
se espremendo e se misturando ao horizonte
pássaros migrando
voando vôos sobre os campos ofegantes e impregnados
destas solidões que levam os pássaros
daqui para ali
dali para acolá
e de volta para cá
numa insustentável leveza de quem esquece o peso e o ar
e entrega-se à liberdade evanescente
a flutuar, flutuar...
Sempre haverá o gorjeio dos pássaros poetizando as manhãs
encobrindo a impiedade dos dias
Pombos arrulhando nas cumeeiras das casas
nos beirais dos edifícios
debicando restos nas praças encarceradas no solilóquio das cidades
Haverá dias em que a chuva cairá
tamborilando nos telhados
repenicando no chão
esfarelando-se, estrídula,
na terra seca dos quintais que ainda restam
Ocasionalmente uma gota de orvalho
ou uma lágrima se desprenderão
de uma flor
dos olhos dos anjos
leves e translúcidas
e cairão
revolvendo a terra do canteiro com inefável ternura
Quando menos se espera pode soar
o monótono tic-tac escorrendo das engrenagens infrangíveis
de um relógio antigo
evidenciando passados
ritmando lembranças
matraqueando entediantes horas de um tempo arcaico
e desprovido de sentido
Sempre haverá uma porta rangendo nos gonzos
assombrada
na casa escutando o silêncio se arrastando vagaroso
pelas estruturas vazias
pelas paredes caiadas pelas puídas cores do nada
Em algum momento
dentro de um inverno debruçado sobre à mesa
alguém sorverá uma colherada de sopa
na noite manchada pelo som do deslizar do talher no prato
levando sonhos à boca

O silêncio não existe
e mesmo que o mundo inteiro se cale
que a morte taciturna me fale
indizivelmente triste
inescrutavelmente antiga
sempre haverá um poema cingido a alguma voz
flutuando em memórias antiquíssimas
no burburinho dos dias enchendo o ar de rumores
no que diz as noites e madrugadas que não dormem
no tempo soerguido no ar
na hora íntima
olhos cerrados
em noites cheias de solidão
e de luas passeando na janela atravessada por um mar
passeando nos telhados e quintais
dissolvendo palavras
sílaba a sílaba

Sempre haverá um poema semeado no branco nostálgico de um livro
absorto como as ilhas demorando-se a fitar o mar
paciente como as hastes do trigo esperando os ventos de agosto
latejando versos
de inefável encanto
ou de quieto desespero