quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O sofá não é lugar para os fracos


Aposentou-se há mais ou menos 10 anos

Desde então os seus dias 
são dardos lançados ao ar
cujos paradeiro e destino,
invariavelmente,
é o pacato e mudo sofá

Dias que nascem exóticos
narcóticos
há mais de uma década cumpre o mesmo ritual
café tomado
ainda mal informado das excrescências do dia
sentindo falta do inferno
sentido falta do capeta a proclamar o fim do mundo
sentindo falta do ópio televisivo
aloprado de tanta calmaria
para precaver-se de ser enganado
e manter-se um homem atualizado
refestela-se no sofá
anestesiado
os olho secos
jamais chora
ou demostra qualquer tipo de emoção
hipnotizado
indolente
crente
não só crente, como crédulo
cheio de certezas insofismáveis
liga a televisão
e para começar bem o dia
já tendo perdido o arrebol
rende-se às amenidades
da litania das notícias do futebol

Depois notícias e "fatos"
misturados com boatos
dos programas de variedades
fofocas
futilidades
mexericos de toda sorte
entrega-se ao estrume da morte
subliminar e subjacente
numa leseira demente e contente
de quem ouviu dizer que leite quente dói o dente
de quem ouviu o galo cantar, mas não sabe onde
sandices ditas como verdades
muito "acho"
muito "pitaco"
em transe, engole tudo que a tv lhe dá já mastigado
como se ele fosse um filhote de passarinho
e que ele posteriormente regurgitará
como se fosse a insofismável Verdade
recendendo sabedorias como um Sócrates midiático
e seu oráculo eletrônico

No almoço, arroz com feijão
em frente à televisão
prato na mão
a mente embotada
sem tirar as nádegas do sofá
assiste ao jornal local
para não perder nenhuma informação
entre uma garfada e outra
um pouco mais dos dejetos da vida
fétida e pustulenta
e da mental opilação

O dia, lá fora, caminha
sob o sol de um final de inverno
num agosto petulante e terno
brincando de ser verão
onde floreiam corpos, pernas e passos
andando no calçadão

O nosso aposentado sesteia
cochilando no sofá
ao fundo o blá, blá, blá, blá...
adstringente da televisão
ninando-lhe com seu ramerrão
obstinado, incessante
e fatal
a mente, é um peixe de aquário,
atávico e inerte
embrulhado em jornal


Na tarde o silêncio da casa se compraz
em se entregar aos programas policiais
No dia banal e infindo
a mão sonolenta e peregrina zapeia os canais
buscando o circo
seja ele de cavalinhos, de antas, ou de outros animais
ou embrulhado no jornal dos horrores
com tanta gente oferecendo
a tirana mixórdia para o rebanho displicente
indolente
que a engole convindo
zapeia buscando a estupidez da vida
na telinha que alucina
que mata e aleija sorrindo
nos programas sensacionalistas
chauvinistas
onde a matéria prima é a ruína social
os criminosos mais bárbaros
os crimes mais execráveis
a degradação humana perorando na sala
a miséria exposta feito bosta nas valetas
como uma fratura
que não calcifica
que não tem cura
o bordel político
o Estado sifilítico
o desvalido faminto e raquítico
com um cérebro paralítico
aberrações usufruídas e festejadas
 índices de audiência


À noite os sonhos estão no ar
melosos ou desesperados
novelas e jornais
convertem-se em pré-canção de ninar

NOTICIÁRIO NACIONAL

Chacina do Carandiru
dos meninos da Candelária
do Vigário Geral
chacina na porta do bar
chacina em rede nacional
assiste a todas
cada vez mais animado
deslumbrado
e digressivo com o faroeste nacional
assiste
com a alma ausente
o deprimente deambular
dos meninos
e meninas
que se drogam pelas ruas
tentando se enganar
e chamam caixas de papelão de lar doce lar
"escândalos"
corrupção
todo dia a mesma história chinfrim
que não tem começo nem fim
desde 1500 é assim
nesta terra onde se plantando tudo dá
e dependendo de quem pede ela dá sem nem plantar
a apodrecida grei
mandava suas singelas cartinhas
pedindo favores ao rei

Intervalo entre uma miséria e outra
entre a tragédia nacional
e a tragédia internacional

O homo sapiens se remexe e resmunga no sofá
os estertores da extinta? cauda a incomodar
se remexe e resmunga no sofá
sem no entanto tirar a bunda de lá:
"Assim não dá, assim não dá..."

NOTICIÁRIO INTERNACIONAL

Avião cai em Toka Gadu
morreram todos
sangue misturado à gasolina
fezes, suor e urina
e ele nem se azucrina
os olhos fixos na telinha
a desgraça como rotina

Furacão em Ku Dojudas
extravagantemente devasta a população
os olhos sequer se movem
em completa encantação

Trem descarrila no Caguistão
mata 236 e deixa 408 feridos
e ele fica esperando passar as imagens
do primeiro ao último vagão
para ver se não lhe escapa
algum cadáver fujão

Onde é Toka Gadu
Ku Dojudas
Caguistão?
Qual a relevância destas notícias
para um pacato brasileiro
desnutrido e desdentado
um Macunaíma, talvez?
Isto não importa
se houver sangue e desgraça
a mídia nos mostrará
fazem da nossa cabeça banheiro

Sangue e miséria jorram na tela
labaredas gritam na televisiva janela para o mundo
(ou seria melhor dizer: para o fim do mundo?)
convulsas as labaredas gritam
a ânsia sanguinolenta
a pulsar-lhe na retina
a tragédia estagnada na sala
defecando
numa mente que usam como latrina


Ele é um homem bem informado
ele sabe tudo o que é relevante
do Ribeirão da Ilha ao Ondeéquistão
sabe diferenciar com precisão
quem é bom
quem é ruim
onde é que está o bem
onde mora a danação

Nas eleições
bem informado
e ciente de que as coisas não são bem assim
como diz em seu discurso original
que todo político é ou será ladrão
vota no que ele chama de "o menos ruim"

Passada a eleição
sem qualquer responsabilidade pelo que o cerca
sentadaço no indefectível sofá
assistindo aos indefectíveis noticiários
ele resmunga de si para si
para não ter o trabalho de abrir a boca e se cansar
"assim não dá, assim não dá..."

Graças à televisão
ele é um homem de vasta visão
com um discurso despossuído
desmilinguido

Entre um jornal e uma novela
entre um programa de futilidades,
digo de "variedades"
e os do esporte do povão
ainda achou um tempinho
para um infarto despótico do coração

Guerras
tragédias humanas e sociais
lamentos da vida besta e tola
assaltos
corrupção
a canalha
ladrão saindo pelo ladrão
jogos de poder
loucos de toda sorte
a escória social
os militantes da morte
vísceras expostas
o circo de horrores dando função na sala
são-lhe coisas indiferentes
banais

Ele é muito racional
nada lhe comove ou lhe faz mal
além do que
o mundo foi feito para se acabar mesmo
ele só está se antecipando ao fato
se adiantando ao fim
assistindo-o de camarote
com volúpia
em tempo real
só mudando de canal
com o controle remo(r)to nas mãos
sem precisar tirar a buzanfa do sofá

Acha a vida moderninha bacaninha
com este "guru" em plena sala
trazendo-lhe tanta informação indispensável
e impensável
e muita orientação
da saúde à unha quebrada
da política à religião
de como educar os filhos
(cada vez mais mal educados)
e aumentar a erudição
até que o humor negro da sina
numa disputa intestina
obscureça-lhe o entendimento e a arguta visão
e o ponha a repousar
até o juízo final
ou a próxima encarnação
isto quem decide são os dogmas que acumulou
assistindo televisão

Lamuria-se por que na época da segunda guerra
os lares não tinham televisão
para a gente poder assistir
sem tirar o bundão do sofá
a um reality show num campo de concentração
onde os povos da babilônica aldeia global
votariam em quem deveria viver ou não
quem que iria pro gás
ou pro reles paredão (no caso aqui de fuzilamento)
ou o espetáculo espetaculoso da "Little Boy" e da "Fat Boy"
dissolvendo milhares de pessoas na exuberante explosão
que fez o dia do Japão parecer noite de São João
condenando outros milhares a dias de provação
ia ser tão educativo, informativo, lenitivo,
humanitário e relevante para a alma e o coração

Ia ser tanta diversão que uma vida seria pouca para tanta pândega

Por tudo que já viveu
por tudo que já viviu
só uma coisa ele lamenta, inconsolável,
na sua vida (que morreu sem ele saber)

o tempo que falta no dia para ver mais televisão
e aprimorar seus conceitos à luz do Iluminismo
caboclo que vigora aqui então

Imagem: Caroline Westerhout

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