segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

A escravidão da razão


o homem embosca e deturpa sonhos
abre-os pela metade
passa os olhos viciados e soturnos
e deposita-os no chão
cego de tantas certezas
descarta-os
palmilha medos
enganos
bebe venenos
aspira gases
corre do tempo
preso ao destino
apega-se ao supérfluo
desintegra a matéria
e grita "Heureca!"
o homem perde o alento
no passo incerto e lento do vento
soçobrando nas areias
a andar por caminhos penosos
pelos tempos da memória ancestral
e indecomponível
como o Universo que une o verso
e o homem
siderando o passado
com infrangíveis amarras
com os olhos resignados no chão
e o engano ingente e coagente
da escravidão da razão
morre
entre cansadas certezas
e o grito estancado da solidão

sábado, 25 de fevereiro de 2017

O poema se diz sozinho

 
as minhas mãos espalmadas esperam outras mãos
que venham acariciando o silêncio que se levanta
da noite imensa e imprecisa
ecoando recordações
reminiscências deslindadas no tempo

espero outros olhos
que fitos no abismo que habita em mim
expressem peremptórios
a evidência inconteste de nada sermos
para além do pensamento e do tormento desta existência
onde a minha alma eterna espelha e reverbera os sentidos
a procurar pela liberdade dentre poemas inacabados
que já não sei escrever
dentre os sóis flutuando sobre tardes derradeiras
dentre o alarido da vida clamando vida e vida e vida
poemas que nascem como sílabas recusadas
de emoções ancoradas a um verso e a um tempo
onde as palavras e gestos incontidos e sem nome
dizem das distâncias e das solidões caindo
como tristezas sobre os meus olhos cansados de não te ver
caindo sobre o meu corpo cansado de não te ter
calando a minha voz numa incognoscível saudade

a poesia, tão tímida quanto os sentimentos pueris, silencia
e em silêncio condena de amores a minha alma
e faz voar borboletas num céu de elude tessitura
e de saudades insinuadas por tanta ilusão
decompondo sonhos
espreitando a tarde
que se demorava inextinguível nos teus peitinhos pequenos
colhidos pelas minhas mãos

hoje, com as mãos sobre o rosto, balbucio o teu nome
lentamente
enquanto as lembranças inventam carinhos que não te fiz
e que me dizem da inquietação que era te amar
hoje, balbucio o teu nome
como o dia balbucia a manhã e se despe do escuro
vestindo-se da nua luz ainda adormecida da aurora
e na manhã leitosa e insonte
voam pássaros em direção ao passado
para além da tua  ausência
e do meu medo

o poema, então, se diz sozinho
como uma voz no deserto
que a vastidão perpetua
em te querer, mas és lua
iluminando a ficção das noites inomináveis e cambiantes
que, deste nascer sem morrer,
não me deixam te esquecer

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O silêncio quebrado


o pensamento esvoaça e inventa
o silêncio quebrado
pelo vento trazendo o passado
porejando antigas canções em lábios sem faces
abrindo as janelas indecifráveis de um mundo impronunciável
abrindo a voz da manhã florida de sons
onde as pétalas caídas das flores enternecem
a recordação dos teus lábios dizendo canduras e silêncios aos meus
dizendo dos tantos instantes imutáveis e imorredouros
que pode haver nos laivos da vida cruciante e translucida
no gesto encoberto por esta nostalgia precária e deambulante
por esta agonia e por este pranto
intocados anátemas modelando a minha alma
pelos níveos véus da neblina suspensa na manhã que acorda
e acende as cores nas flores
que sangram consumidas pela efemeridade de ser
e esmerilam incessantes o perfume frágil que a noite suavemente entornou
fazendo do aroma das flores a eternidade imponderável  de ser
desenham olores nas folhagens e coligem as manhãs
e os rios correndo para os abismos de tanta solidão
para tanto desassossego
e tudo, tudo, ofegando na plenitude desordenada e ambígua
do que pode vir a ser poesia
na imarcescível página em branco do dia
pergaminhos (pelos séculos)
minuciosamente lançados aos mares dos sonhos
trazidos no sono da noite súbita
embalados na cantiga das ondas em chamas
na ebulição irrevelada dos versos
na mansidão absoluta dos ventos
que trago mudas em meus braços
garrafas soçobradas no mar dos meus sentimentos

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Longe, longe, longe...


palavras...
as palavras de repente doem
carrego-as por que é noite
longe, longe, longe...
é noite
carrego-as por que o pranto é insuficiente
e as horas caminham acordadas
sem descanso
lentamente
e o tempo vem sangrar a minha alma

já não escuto teu nome quando olho para o silêncio e para a lua
já não me alcança o punhal pungente das tuas palavras
longe, longe, longe...
ainda é noite
já não carrego o engano das palavras
e a voz cega que os teus lábios diziam aos meus

longe, longe, longe..
no horizonte onde a tarde morreu sob o frêmito da luz
amadurece o pulsar circular do tempo
para nascer um outro dia
sem você