sábado, 24 de janeiro de 2015

O mundo vaza-me do peito

 
Morte de Clarice Lispector
 
Enquanto te enterravam no cemitério judeu
do Caju
(e o clarão de teu olhar soterrado
resistindo ainda)
o táxi corria comigo à borda da Lagoa
na direção de Botafogo
as pedras e as nuvens e as árvores
no vento
mostravam alegremente
que não dependem de nós
 
Ferreira Gullar
 
morre-se!
morre o inseto que vive horas
morrem os mundos que vivem zilhões de anos
morremos um pouco todos os dias,
lentamente,
e está trancada a incognoscível algaravia da vida
no fim, tudo é assim, tão igual
sonhos, desejos, apegos, ilusões, egos, paixões,
a confusão dos sentidos
tudo tão banal
findo o caminho o que sobrou?
sobraram as pedras, as nuvens, as árvores
ao vento
sobraram os pássaros e a música do ruflar de suas asas
chamando as noites
abrindo as janelas para o escuro das noites entrar
sobrou a última flor inescrutável,
volitiva, dentro do instante
 
Talvez restem as ruínas do sonho?
a morte ao fechar os olhos mata o sonho?
o sonho me traz de volta e bota-me a caminhar
os mesmos enganosos caminhos?
as folhas secas ainda estão na beira da estrada
caminhos que já passei
as flores todas, sabedoras do mistério, não dizem nada
preparam com essências e perfumes a certeza da noite incomensurável
a tarde derruba o sol
silenciosa e inelutavelmente
a vida adormecendo
céu e lua e estrelas tantas vezes já vistos,
porém nunca os mesmos
 
o mundo vaza-me do peito
de repente tudo é lembrança, ausência e tardes trêmulas
faço tudo de que não preciso
amo o engano e os liames dos sortilégios e de tantas memórias
ando desertos incendiados de desejos
mergulho na inconsistência do sonho de agora
que me trouxe até aqui e me deu um nome
e me tornei o que não sou
mais uma aurora depois da noites por onde andei
colhendo e semeando o que a minha mente discrimina
se não sonho podia ser uma estrela
se o sonho se rompe invade o mar inconsciente
naquele instante em que ser mente
minha alma não sonha: diz saudades
como um grande sol lilás depois da chuva
como o silêncio da última gota de chuva que cai na solidão do mar
 
o sonho não é o que sou
o que sou
fica para outra hora
fica pra daqui a pouco
fica para o mês que vem
o ano que vem
quem sabe pro século seguinte
pro milênio seguinte
numa outra vida
que se tudo correr bem
vai começar em 3020
em Liechtenstein
ou Santarém
se chover na Indonésia
e Urano estiver
em conjunção com Marte
se a fumaça vier junto com o trem
se um dia for de todos os anacoretas
se o outro for de ninguém
só se a dor doer faminta
e a noite sozinha doer também
em 3020
na penumbra da primeira noite
entre retalhos da lua cheia
e da adrede estrela de brilho risonho
darei ao silencio tudo o que tenho
e tudo que tenho é tão pouco:
um grito que nunca gritei,
as asas que nunca usei,
a obra inacabada do meu destino,
a janela milenar onde minha alma
se debruça a olhar os transeuntes
e os pássaros procurando ninhos
no final da tarde,
quando a luz se esvai esbatendo as cores
um amor que me encharca a essência desde a infância
em um coração antigo, de antigas vidas
sem saber que era poesia
e o tempo passou folheando
este livro de páginas em branco e versos por fazer
me deixando só diante do mistério
 
por que é 3020
e o que sou tange o passado
como a semente ao fruto
como o tempo tange o instante
e de agora em diante
o que serei é o que realmente sou
é do que sou que me componho
na boca nenhuma palavra
nos olhos nenhum choro tristonho
que a vida prosaica é inaudível
que só há vida no caminho silencioso
e turbulento onde se deslinda a ilusão
e o coração, então, se aquieta, em paz

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Houve um tempo


Houve um tempo
Em que havia flores o ano inteiro
O sol cheirava a janeiro
Estrelas acendiam luzeiros
A música vinha do rio
E o rio era o diapasão da vida
Destino, Necessidade, Sabedoria da Transformação

Houve um tempo
Em que não se precisava esperar papai Noel
A vida era o presente de todos os dias
E o brinquedo mais interessante
Mais do que pular ondas no mar
E carregar baldinhos d'água para erguer castelos na areia
A vida era cega, terna, doida, insonte
A vida era pra ontem
A vida era incomum
E amor era o nome de todos os dias, de todos os meses
E de ternura chamavam-se as eternidades dos anos
Por entre calendários rabiscados de tempos e gestos absolutos

Houve um tempo
Em que o vento soprava recados teus
A chuva caia e se molhava e se banhava toda
E se acumulava nas poças do quintal refletindo um pedaço de telhado,
Uma nuvem encardida pela tempestade,
O sonho nos olhos, o beijo nos lábios,
O silêncio e o medo do silêncio

Houve um tempo
Em que os pássaros pousavam na janela
E trinavam inquietos, miúdos e maviosos
A janela já não há mais
O dia já não levita ao gorjeio dos pássaros
Tampouco é mais a incoercível fantasia
Ainda hoje se ouve o trinar dos pássaros,
Mas são outros pássaros,
Outro tempo

Houve um tempo
Onde havia princesas e castelos
E a vida evolavasse da solidão do sol
E do amor que estremecia feito versos entre os meus dedos
E onde borboletas declamavam os dias
E beijavam flores
E sopravam os ventos
Trazendo o entardecer
E o pranto argênteo da lua

Houve um tempo
No qual giravam carrosséis coloridos
E rodas-gigantes amarelas

Houve um tempo
Onde havia você

domingo, 18 de janeiro de 2015

Menina do Moçambique


Menina do Moçambique
Amiga que o Universo dá pra gente gostar
Assim, sem entendimento
Assim, como quem se encanta por um pensamento
e a voz que o recita silenciosa e ternamente
este sossego,
esta calma
de rede balançando à tardinha
Um gosto alvo e doce de paz
Te gostar é substância,
inconstância,
é a distância entre as noites
e as manhãs que trazem você
Você olha pra mim com olhos de sabedoria,
pássaros sem pouso,
estrelas viajando segredos
Amiga minha, não sabes quanto da minha noite é caminho
Aqui dentro tudo em desalinho
Amiga minha, não sei quanto do teu mundo escolheu ser solidão
Acho lindo o seu silêncio
A sua livre solidão de passarinho
Como sede que se bebe devagarinho
Como palavras buscando um peito para dormir,
ou a tessitura do papel em branco,
hesitando em se fazer poesia
Há palavras antigas que dizem o teu nome
Há tardes, quietas
Há o tempo passeando nossa memória,
brincando de ser
A ilusão que sobrou e não se deslinda
A vida escrita com as coisas que ainda não sei
Você, eu já te conheço, ainda
Dentre as flores sempre há uma mais linda
Você me encanta
Você fala à minha alma
insaciáveis gestos de ternura
como a manhã que se abre e enche de teus olhos o dia
brisa brilhante cheia de atenção
O instante é este
A vida é esta
Nem tudo é sempre claro
Cada dia é um e sempre e raro
Olho você como o autor de um crime indefensável
Você estaria na minha morte, na minha condenação, na minha expiação?
Você seria parte da sentença de mais uma vida dentro da minha prisão?

Você é a amiga que eu gosto
Você é a amiga que os Deuses me deram pra eu não chorar
Você é
sossego
calma
tarde quieta
balanço de rede
canção
às vezes sim, às vezes não

sábado, 10 de janeiro de 2015

Eu não

 
"Quantas vezes tremi
coberto apenas pela luz do verão
enquanto te descrevia pelo meu sangue."
 
Juan Gelman.
In "Fábricas de amor".
Amor que serena, termina? Editora Record, 2001.
 
 
 
 
O tempo derrama sobre o dia o ópio das horas
As sombras vêm para a tarde
Erguendo a noite do chão
 
A luz do verão consome-se lentamente
O dia morre, então
 
O Universo que desconheço,
meu universo em meus livros,
meus textos,
o grande engano dentro de mim,
o que penso, o que intuo, o que sinto,
são impermanentes e perecíveis
A vida é indagação
 
O passado vivendo irremissível dentro do velho espelho da mente
É medo  o outro   e divagação
 
O sonho indigitado já vem usado, surrado
É sonho de segunda mão
 
O menino que ama Pingo
Soluça sua entrega na rua em busca de sensação
 
Um dia você falou tanto silêncio aos meus olhos
E disse tanto gesto cheio de ilusão
 
A saudade me olha com seus olhos baços
A saudade é inverno e consumação
 
eu não
eu não
eu não
eu não tenho bem certeza
se a morte ainda me quer
ou se me dissolverei no vento
como a poeira do chão
se a morte não me quiser
 
Tremi
Quando o vento passou
E o mundo tremeu comigo
Abalando a luz que sustentava o dia
Enquanto te descrevia
Como o silêncio escreve,
Reescreve e descreve
Na noite volátil e leve
A mais delicada e terna poesia

sábado, 3 de janeiro de 2015

Noite sem luar


Noite sem luar –
Lá, o negro silêncio;
aqui, mudo sonhar.
 
Claudio Miklos
In O Bosque de Bambus
Coletânea de Poesias Haiku Zen


A noite acordou e entrou pela escuridão
escondendo a lua
Apagou o silêncio e a montanha
Encheu o ar de aromas sensuais e de passados
Meus olhos dormiram
encantados pelos sonhos de Mara
Meus lábios esqueceram as palavras
Meu coração não atravessou o rio
Minhas mãos tremeram diante
da possibilidade da flor
No céu a noite continuava caminhando
seus passos escuros
As estrelas queimavam-se,
crepitantes candeias
O vento soprava cinzas no caminho
Vou tateando e andando passos hesitantes
A mente cria os vários mundos,
do engano à submissão
Há que se arrostar o samsara
e viver e morrer e reviver no samsara
O tempo passou e já é quase hora de voltar pra casa
e nem sequer sei onde estive
Minha alma oscila entre o silêncio e o grito,
entre a sabedoria da inocência
e a cupidez e os vícios
Há campos e tempos a serem trabalhados,
flores a serem cultivadas,
véus a serem despidos,
há que se atravessar tantas pontes
sem que se possa refrescar-se nas águas límpidas do rio
há a noite e o silêncio e as folhas secas que o vento leva
e as portas por onde se entra na noite
e dentro da noite infrangível
e sobre o lodo do lago
brotam flores de lótus

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Prece

 
Desperta, Ananda, meus olhos para que eu veja além das ilusões de Mara. Acalma meu coração envolto na falaciosa teia dos devaneios. Abre o caminho insondável para o que sou e deita minha cabeça em teu colo quando a cegueira se fizer incandescente, atiçada pelas brasas da minha ignorância. Que a minha boca professe as palavras do teu cântico. Que a minha mão siga a tua e os meus passos caminhem após os teus pelos caminhos verdejantes aonde a minha alma vem te visitar por entre os ipês de agosto. Espelha o rio que traz as águas desta torrente de Verdade da qual tem sede a minha alma. Tocai a cítara durante meu sono para que meu coração se reconheça no dedilhar singelo do poema dos teus dedos. Ananda, Ananda, dá-me saber quem sou nesta Alma infrangível refém desta matéria que o tempo corrói em memórias tão curtas, em enganos infindos, neste contumaz adormecer. Ananda, concede-me a estrela que a minha Alma aprisionada é, como ela, Fulgor de Luz, Grito Fremente, Pulsação e Semente. Se fora da mente nada existe dá-me vivenciar a sabedoria e o grande Amor que em mim vivem como a flor que desabrocha e suas cinco pétalas começam a brotar. Dá-me a luz do sol para afastar a escuridão dos meus olhos e a luz que vem de ti para afastar a escuridão da minha Alma cativa desta matéria que, como o galho ressequido pela intempérie, cai ao chão e putrefa para nutrir o solo e gerar outras vidas tão sequiosas quanto a minha da tua voz e do teu olhar. Que a minha Alma eterna saiba das noites o tempo, saiba dos dias o frescor e a aragem que vem das matas e da completude do mar. Que a minha Alma saiba que os sentimentos bons ou ruins nascem em mim e eu sou eles nestes momentos. Ananda, dá-me clareza para identificar o supérfluo do essencial. Que eu reconheça em mim a tua dócil Sabedoria e este Saber suplante em mim o fogo intenso das vaidades. Que o meu coração seja cheio de ti. Faz do silêncio a minha voz mais alta. Que eu possa perdoar meu semelhante no momento em que sou raiva e arrogância e a mágoa tinge meu coração de tristeza e rancor. Namastê! (Curvo-me perante ti)