quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Eu digo a ela


Eu digo a ela
que tenho transtorno bipolar
ela olha para mim,
sem me olhar
seus olhos vão para um outro tempo
e choram em um outro lugar
e fala de uma prima que também teve
e que revirou-se dentro do mistério
cavucou todos os escuros possíveis
desamparada, teve vertigens
caiu dentro de todos os abismos
perdeu o pulso diante do pânico
lanhou-se com os insultos
e os tormentos que lhe cingiam a alma
sorriu demente para as humilhações
vagueou pelas alucinações
chorou todas as lágrimas doloridas
e indecifráveis
até seu coração cansar
e soluçar ausente
viu-se no meio da guerra obscura
caiu prisioneira da dúvida
e dos pensamentos tiranos
a alma prisioneira do escárnio
sentiu no despojo do chicote os seus crimes
temeu as noites
e tudo o que as noites escondiam
temeu os dias
e tudo o que os dias lhe diziam
esqueceu quem era
algo dela se desprendeu
e ela desapareceu em si tantas vezes
molhada de sombras
tremeu envolta na solidão
derradeira dos pesadelos
que a mutilaram com os cacos do espelho
insondável
e os destroços do seu ego frangível
andou nua
embriagada com o nada
afogada na frouxidão do grito
e na saliva amara dos lábios das madrugadas
enrodilhada na tempestade
retirou-se para lugares secretos
esqueceu o nome em lugares incertos
lugares cegos e desertos
sapateou nos dejetos
engoliu a beleza na face
junto com as lembranças sem sentido
mergulhou com as carências no chão fendido
calada
sempre calada
a voz, quando falava,
imperceptível e infatigável
já não lhe dizia nada
eram ontens
intrusos e estranhos
---
delirou
definhou
cuspiu a escuridão
que ela ouvia na neblina espessa
da mente tirana e carrasca
revirou os últimos baús
deu surdos baques à caixa de pandora
e correu para dentro de si
quando o primeiro demônio surgiu
desarvorou-se
acorrentada às madrugadas
buscando em uma das muitas vidas que lhe tinham
uma que lhe fosse grata
nada encontrou
pegou-se exilada e náufraga
partiu sem ela a fragata nefelibata
arrancou o mundo de si
sem ter a quem dizer adeus
se imola
se mata
(obedecendo ao que ou a quem?)
enforcada com uma gravata

E tudo,
depois dela,
numa indisfarçável indiferença,
continua a contemplar o mesmo distraído vagar
delirando outros delírios
que a sociedade decrépita
doente e maniqueísta
costuma aceitar
e estimular
nas alcovas alcoviteiras
onde a noite enlouquece a gargalhar
dos medos da multidão

Lá fora,
na noite engolindo o asco
um cão gane e uiva mentiras
para outros cães distantes
que respondem
ganindo e uivando imposturas
ensandecendo o instante
das noites dicotômicas e escuras

Imagem: Pooneh Jafari Nejad

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