domingo, 22 de abril de 2012

Antes que a flor morra em mim

Deixo para minha irmã a lembrança da primeira vez que vimos o mar,
a onda dobradando aos nossos pés
a alegria da areia
a bola colorida
globo terrestre
tão desprotegido o mundo em nossas mãos
Deixo as sensações e as respostas flamejantes do imponderável "Patinho Feio"
Deixo os gestos imóveis
as palavras que eram só carinhos
eram só ternura
aconchego
e mansidão
A lembrança dos quintais que já não existem mais
Deixo os passos a perguntar para onde ir
depois que  a flor desabrochou no pequeno canteiro onde os cravos
pintam de branco e vermelho a pequenina vida em pétalas de uma poesia tirante a Deus
depois da aurora subindo pelas escadas cheia de sugestões para o dia,
depois da sandice da dor

Para Pingo deixo nos lábios o gosto da infância doce e curiosa
Deixo incessante no ar o odor da noite pintalgada de pequeninas contas azuis
Deixo os dias dourados pela luz dos fins das tardes de outono
Deixo o branco da espuma das ondas soando distantes
o mar imerso na noite de lua
amante
companheira
A voz da fonte marulhando na penumbra leve da noite que chega com seus olhos
O colo aconchegando as linhas de um poema
O beijo nu
O poema nu
o soneto em sua boca

Para meu irmão deixo um verso condenado ao silêncio abrasante das areias
Deixo esperanças e uma saudação a possíveis extra terrestres que, por ventura,
nos visitem em suas máquinas voadoras,
com seus poderes de deuses (quem sabe?)
e suas tristezas ocultas no enigma das galáxias que os abrigam
Deixo um raio de sol incendiado nas frestas do quarto
Deixo no antigo relógio da sala os olhos sem poesia das horas
Deixo barcos em meio à névoa dócil das manhãs nascendo numa praia de pescadores
Deixo o sorriso lavrado com a goiva da infância

Para Diva deixo a jóia perene das noites engastadas nos anéis do Lua Nova
Deixo um horizonte resplendente de cores de um arco-íris nascendo depois da chuva,
por sobre a Avenida Ipiranga
Deixo as noites bucólicas onde cantarolávamos Chico, Caetano e Gil
Mais uma dose da sinuosa conversa,
cicios
que a noite é todo o Universo na Teodoro Baima
Deixo, também, meus discos do Pìnk Floyd
e um grito atordoado que a cidade tenta abafar
E no silêncio que se segue ao grito eu deixo-lhe o meu baú da infância
rampa para meus vôos noturnos
pra eu não morrer de tristeza
constante no nevoeiro das lembranças lacrimejantes e eternas

Deixo para Bruno um automóvel sob a sombra de pelúcia do abacateiro

Deixo para Rafael os arabescos do mar que riscam em grafite os sóis poentes

Deixo para Simone a sede destas décadas irredutíveis dormindo entre saudades que as noites trazem de longe
Deixo o sabor do amor molhado na sua pele de urgência e carinho olhar suspirando um desejo polaco
e chorando um gozo com a inocência de um anjo
Deixo o afago que cingia meu peito entre as chuvas douradas dos seus cabelos
e onde ficaram retidas as canções ciciando as descobertas
dos sentidos que em fogueiras se faziam arder no corpo alvo
como uma gatinha ronronando meu nome pra ser saudade

Para Cida deixo este olhar esquecido na janela de um abril
a espiar pela frincha por onde seus olhos partiram sem volta
Deixo os mistérios que pode haver numa vida
e a vida mesmo acontecendo: mistério?
Deixo, na sua vida ausente,
nas suas tardes hoje tão sós,
as canções e os cantos gregorianos para alegrar sua alma,
para mitigar o choro amiudado dos seus dias
Deixo uma lágrima suspensa que ainda não aprendi em qual pedaço da nossa história eu devo guardar
Olho para você
o que sobrou de você
pergunto: por onde andará sua alma?
Caminhará campos floridos?
Pedras agudas e doridas? 
Por onde andam suas tristezas?
Não choram nem riem
A vida carregando seu silêncio inconsciente
inexcedível se supera
Quando te libertarás, amiga minha, desta prisão surreal?
Lá fora, nos quintais, as borboletas já deixaram os seus casulos
indiferentes ao medo,
ao espanto da vida vista de perto
A vida a ser cumprida mesmo quando escondida nos seus olhinhos anímicos,
brisa soprando no bambuzal a dizer:
Senhor, tende piedade de nós!

Para Cláudia deixo os poemas de amor inacabados
Deixo a lágrima posta na face da memória
Deixo a semente e a possibilidade da flor
Deixo na flor as quatro estações dissolvendo-se nos orvalhos azuis de uma manhã de sol moreno
e nos braços abertos de Iracema a evanescência do abraço

Para Maria deixo cinco pétalas da flor que trazia nossas noites
Uma janela aberta
Um quarto em penumbra
A inexistência das horas nos nossos braços
Maria, eu nunca te disse, mas eu gozei naquela noite de lentos murmúrios
enquanto sussurravas teu amor de mulher com uma voz de criança
Maria, deixo para você, meus dedos percorrendo o teu corpo
teu cheiro de terra úmida,
teu travo de perdição,
teu gosto de mistério e segredo

Deixo, comovido, para meu pai
esta sensação de desamparo que está no âmago da minha vida
Deixo os erros do caminho por onde nós passamos,
um tão longe do outro
Deixo as pegadas prisioneiras na estrada deserta e árida por onde não andou o amor
Deixo o esquecimento do drama e a evocação do meu olhar triste qua ainda hoje vejos nos espelhos dolorosos e nestes gestos de barro a anotar, indiferentes, tudo que não fui
a minha palavra retraída
o choro escorrendo pela terra no meu rosto
Deixo para o meu pai o meu perdão

Para o Gera deixo a canção solitária da flauta transversal
O vento cheio de solidão
Solidão, tarde no cais
Solidão que me escuta
Solidão dos dedos brincando com as notas musicais

Deixo para minha mãe esta saudade sem entendimento
Esta pergunta dos meus onze anos: de onde vem tanta dor?
Mãe, meu riso nunca está onde estou
e a dor, porta da noite deserta, abre-se quando os dias chegam amedrontando
Deixo pra você, mãe, meu coração
aquele mesmo que eu tinha quando inundou em você o sonho infrangível da morte
Deixo meu coração de onze anos que um dia se calará
O sol da tarde confunde-se com os telhados das casas em Americanópolis
A rua era Maria como você, minha mãe
O choro é como um cativeiro que o tempo incongruente traz em seus ritos,
mãe
Pra senhora, minha mãe,
deixo meu amor, 
só meu amor...
                    [que nada mais tenho de meu. 

Não plantei árvore,
não escrevi livro
Deixo minha inquietude no enigma que é um filho

Deixo para o meu filho
uma rua de terra onde ele possa se trajar de barro e poeira
onde a bolinha de gude escorra ágil e certeira
e a pipa voe no céu
por entre nuvens que não se explica como é que já nascem poesia
uma rua que seja Maria
Deixo os céus verdes- azuis do Perí
Deixo ao meu filhos um lugar que não é meu
a estrela que não é minha e que apareceu bem em frente da minha janela,
deve ter sido o vento que trouxe,
e que trazida por ali ficou pipilando seus ares de madrugada
Deixo um navio no porto
no porto eu deixo um mar e uma vida por começar
Deixo uma mão que é a minha
pra quando ele escorregar
Deixo o desespero e a esperança
junto a um sonho
Deixo a nostalgia de agosto
e a fúria dos anos diante da existência
Deixo as poesias escondidas nas paisagens
vermelhas dos outonos
nas flores dormentes do inverno
no bulício da primavera
na inocente infância do verão
Deixo um beijo carinhoso
Um abraço terno e companheiro
Deixo o meu amor
e este jardim sem mourões e sem pecados de afeto
                                                                          [e emoção

Deixo a todos estas cantigas inatas das aragens dos dias
que enfeitam as janelas e os batentes das portas das casas
onde em criança brincávamos e inventávamos a vida
Deixo a flor orvalhada pelas lágrimas de uma manhã que chora
a despedida de alguém
Deixo, por fim, este carinho incomensurável e misterioso que cantarola
o que eu, atrevidamente, chamei de poesia.

Imagem: Joan Miró

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