terça-feira, 23 de outubro de 2012

Dia de chuva

A chuva veio como uma canção irrequieta
macerando as primeiras cores do dia
Soluçam as flores
como se soubessem da dissonância do grito a dilacerar-me
pois que já nem sei desvendar o pressentido mistério
e o medo trêmulo da minha vida
O vento sopra na ilha,
nostálgico
derrubando pétalas e silêncios das rosas
As andorinhas acordam o dia
chilreando nas árvores 
A canção dos pingos da chuva caindo
canta lembranças onde um dia foi amor
Meu coração dissolve-se no ar afogueado e úmido,
dissolve-se nas palavras olorosas que retornam nos lírios
e nas maneiras de as dizer,
se com o peito e a dor vadia
ou como quem amou e agora cala
nas noites em que o próprio poema esconde-se
na dor que já não se sente
nos hirtos pensamentos transformados em vício
sucumbidos pela mágoa
e pelo cansaço
Pássaros cantam nas árvores trazendo a manhã translúcida
A aurora inquieta,
muda de amor,
acena  para o adeus sem nome
que faz a ilusão da noite verter-se na fantasia do dia
Um anjo antigo,
de asas rutilantes,
urde as cores e os gestos que irão despir o horizonte
O sol,
ausente,
por entre as fitas das chuvas morria,
longe,
inerte,
atado a traços,
ao tempo (se é que o tempo existe),
aos ventos e à nevoa imarcescível
que assoma aos infinitos espelhos refletindo
um céu cinza pintalgado pela aragem
e pelo lirismo do vôo das aves retomando o caminho do mar
O mar incendeia-se
tecelão das vagas e de seus idílios
O mar espera
a ressumação sub-repitícia dos destinos
e da inelutável eternidade candente do amor
Cativo entre meus mundos oscilantes
e estes meus sonhos desertos
como a praia que arde e devolve ao mar meus passos inexatos
que me trouxeram até a tua ausência e o teu segredo
Entre nós dois este caudaloso rio de águas imprevisíveis
esta sombra escura,
oculta,
extensa
esta dor áspera como a memória que assoma
umedecida na maciez da argila
na primeira lágrima de orvalho que o vento derruba
para apascentar a flor
Contemplo a névoa que envolve o silêncio
e que a bruma da manhã trás envolta em grande leveza
Os pingos da chuva escorrem nos fios de seda do casulo
onde os dias fiam poesia
e as noites agonizam a ausência dos teus olhos
A meiguice e a mansidão afagam os teus cabelos
Os olhos fechados em ti refazem a nesga de luz
derramando-se por entre as frestas da janela
Me aconchego ao teu corpo
Tua nudez me abraça,
sonolenta,
indefinida
Centelha a beijar-me a língua
A beijar-me a palavra onde se esconde
a ingenuidade de te amar como se a infância fosse todo dia
e aquele menino que te beijava os seios
fosse ainda solidão quando já era ilha
nos fragmentos de um mar ancorado no sonho
                                  [de um dia ser por inteiro

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